Poucos se interessam pela etimologia – o significado e a origem das palavras –, talvez porque nunca tenham pensado mais aprofundadamente sobre o assunto, talvez porque creiam que todas as palavras e todos os idiomas tenham surgido de uma forma meio mágica, como no mito da Torre de Babel.
Eu penso na cor laranja: ela compartilha seu nome com a laranja, a fruta. Eis um belo exemplo de como o nome de uma coisa concreta – a fruta – deu origem ao nome de um conceito abstrato – a cor, nada mais do que um dos espectros da luz quando refletida pela superfície de uma laranja madura. Mas a cor laranja é assim chamada na língua latina, originária da antiga Europa; certamente em outros lugares do mundo, em outros idiomas, não teremos essa curiosa associação entre a fruta e a cor, simplesmente porque as laranjas não cresciam em todas as partes do mundo…
Ainda numa analogia próxima, podemos nos lembrar dos esquimós, ou de todos os povos que se desenvolveram nas zonas gélidas, mas principalmente os da América do Norte. Se perguntarmos quantas cores um esquimó vê no horizonte gelado de suas casas, eles nos darão uma lista de praticamente meia-dúzia delas – no entanto, nós vemos apenas branco. É preciso um longo convívio com os esquimós para compreender a importância das variadas gradações de “cinza-creme” para “cinza-branco” e finalmente o “branco-branco”: é através delas que eles conseguem se orientar em um “deserto de gelo”, inclusive identificando onde temos o gelo mais fino, onde é arriscado trafegar com muito peso (bem, hoje em dia eles estão modernos, caçam com motos de neve e aposentaram os trenós puxados por cachorros – some o peso da pesca e da caça e não é difícil compreender a necessidade de se evitar o gelo fino).
Nas civilizações e crenças humanas, ocorre algo um tanto parecido. Cada povo desenvolveu um sistema próprio de escrita e linguagem, um sistema próprio de arte e cultura e, sobretudo, um sistema próprio de lidar com o sagrado. Todos nós lidamos com os mistérios do nascimento e da morte, com as atribulações da vida em sociedade, com a doença e os vícios, a guerra e a paz, o amor e a indiferença – mas acima de tudo lidamos com a natureza, com esse Cosmos infinito a nossa volta, com esse “Deus-Branco” ao qual cada povo deu um nome, e talvez ao qual, assim como os esquimós, cada povo defina através de inúmeras gradações de branco, muito embora o chamem simplesmente de Deus, de “O Grande Branco”.
Essa talvez seja a origem de tantos conflitos entre os povos: é que um não consegue compreender o outro, pois cada povo traz consigo séculos de cultura e linguagem, séculos de interpretações de conceitos e símbolos, e às vezes é muito complicado fazer com que outros povos o entendam. Não adianta simplesmente dizer: “Olha só, eu creio em Krishna e você crê em Allah, e nosso vizinho crê em Jeová, mas eles são todos nomes para uma mesma coisa, um mesmo conceito.” – Pois falar é fácil, difícil é se fazer entender. Porque o deus de um afirma que somente aqueles que rezam ajoelhados em uma direção são dignos, enquanto outro afirma que somente aqueles que crêem em seu filho serão salvos, e ainda outro afirma que antes da salvação ainda serão necessárias inúmeras vidas de purificação espiritual… E daí que todos criaram nomes para o mesmo conceito? A questão é que nenhum parece ter compreendido o conceito em si, a abrangência do sagrado.
Dessa forma, assim como as gradações de branco das cores dos esquimós no fundo são simplesmente branco (embora seja necessário para eles identificar todas as gradações), no fundo um Criador universal, uma substância primeira que originou todas as demais, só pode ser simplesmente “O Grande Branco”. Mas ninguém parece se preocupar em compreender o porquê de cada povo dar um nome diferente ao Branco – e a todas as suas gradações.
Ao invés de colocarmos um “deus-barreira” entre nós, seria muito mais interessante nos focarmos na compreensão uns dos outros, e do porque cada povo chegou a sua conclusão sobre o sagrado, o Grande Mistério, a substância primeira. Dessa forma não nos isolamos uns dos outros, nem entre espiritualistas nem entre agnósticos e ateus – pois em todo caso todos vivem na mesma realidade, todos caminham pelo deserto do mundo e eventualmente encontram laranjas e horizontes de gelo. Todos têm de lidar com o sagrado, mesmo que sua forma de lidar seja o ignorando.
Levantemos a barreira, criemos um ponto de encontro nas vielas estreitas de nossas metrópoles existenciais. Que seja uma praça, um bar, um lugar onde se toma café, um jardim, um pórtico, uma trilha em torno da cidade… Qualquer lugar onde possamos falar do mundo, do sagrado, de Deus e de nós mesmos, sem que um “deus-barreira” ou um dogma se interponha entre nós. Os pensamentos cristalizados, solidificados, represados, não são nem pássaros a voar nem rios a fluir, mas a mais pura angústia, o mais puro sofrimento de ter de se viver ancorado a crenças impostas, a “mandamentos” que não fazem mais sentido – pois não somos mais fugitivos em um deserto escaldante.
Hoje temos o mundo todo no controle remoto, e principalmente, boa parte do conhecimento do mundo ao alcance de uma máquina acessível à imensa maioria dos que tem o luxo de poder se dedicar a amar tal conhecimento. Mas toda informação e toda tecnologia do mundo de nada nos adiantará se continuarmos a viver isoladamente, sem nos encontrar alguma noite da semana em nosso ponto de encontro, sem procurar compreender como o outro pensa, como o outro sente, como o outro lida com o sagrado.
É preciso aprender a pensar por si próprio, a romper à represa e deixar a água correr livre para o oceano, a abrir à gaiola e deixar o pássaro decidir que rumo tomar no horizonte; Então poderemos acordar num céu de liberdade, onde todos foram convidados, e onde os primeiros a chegar não se preocuparam em adorar o “deus-ausente”, mas se comprometeram a serem eles mesmos as mãos e os olhos de Deus.
No ponto de encontro, os anjos comparecem todos os dias com os convites para esse novo mundo – um mundo onde o laranja e as demais cores, e todas as gradações de branco, se unem em uma só luz, em um branco infinito… Basta-nos achar o jardim onde os anjos pousam, e prosseguir nessa viagem sem fim pela imensidão do Cosmos.
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Crédito da imagem: jlmccoy
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
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Respostas de 8
As pessoas se apegam demais a formas e procedimentos, discutem demais interpretações mais baseadas em reafirmar seus interesses pessoais não importando o quanto isto possa ser contraditório aos exemplos dos mestres da própria linha que ele diz seguir. Se discute qual a melhor forma de seu líder espiritual em vez de tentar colocar em prática os seus exemplos em sua própria vida e entender que é apenas um caminho e não uma imposição e que cada um tem o potencial de encontrar um outro caminho com o mesmo efeito no final. Não se entende o mapa do caminho, não se enxerga o destino, só ficamos presos a fazer parte de um grupo para nos reafirmarmos estar certo no apoio míope uns dos outros, criando mais uma ilusão em vez de nos libertarmos das já existentes. Entendemos a metáfora como algo concreto, a sugestão como imposição, queremos aparentar algo em vez de ser algo, queremos benefícios contraditórios aos objetivos apresentados, queremos um alivio mágico em vez de trabalharmos a nossa transformação.
Se não entendemos nem os nossos próprios preceitos, muito menos a nós mesmos, como vamos aprender e respeitar os outros?
@raph – Perfeito Flash. A caridade começa quando nos importamos e nos interessamos pela visão “do outro”. Mas como vermos como o outro, se nós mesmos ainda estamos vendados? Somente o amor desvenda…
É muito bom ter pessoas com quem se pode conversar sobre diversos assuntos, de Deus a música. Porque caminhar sozinho? 🙂
Ótimo texto, Rafael.
Abraço
@raph – De Deus a música: a beleza ainda salvará o mundo…
é o que o TdC se transformou: um ponto de encontro. Sempre vivi a senda espiritual pelo caminho solitário, somente tendo ajuda de um amigo aqui, um professor ajustando o que foge demais dos eixos acolá, uma experiencia mística e astral ali. Não é o ideal. O caminho é único e pessoal e devemos ser nossos próprios mestres sim, mas o ser humano é social e apesar de ser seu próprio mestre, nada o impede de fazer de todos a sua volta, professores e amigos, companheiros de jornada. Quem sabe um dia criemos não Ordens, mas famílias espirituais; não igrejas, mas jardins, como os de Epicuro. Criemos relações onde o ego é só um ponto de manifestação e não o centro do universo. Talvez, até criemos pessoas para quem a divergencia de ideias sejam nuances diferentes e aceitáveis de um algo e que não nos fazem, necessariamente, inimigos. Sou incorrigível…kkkkk… utopia é logo ali, na próxima esquina do tempo. Mas voltando a realidade nua e crua do agora, ao menos o TdC se tornou um protótipo virtual disto. Parabéns a todos os colunistas e leitores que compartilham ideias por aqui, com respeito e amor ao próximo.
@raph – Assim seja! 🙂
Será que chegaremos a isso um dia? (Um dia em que a liberdade será plena)
Mesmo com os últimos acontecimentos no Mundo, mesmo olhando mais para o lado e o passado…
…reconhecendo nossos erros e o próximo, aceitando melhor as diferenças…
Ainda falta tanta coisa!
Ainda somos tão pouco evoluídos, ainda somos tão parecidos com o que eramos antes.
Sabe por que temos um “Deus-barreira”? É pecado questionar…
Não questione a igreja, não questione a hierarquia, não questione o Poder econômico (ou qualquer outro), não questione o Estado… é contra as regras!
Está na essência do ser humano menosprezar as diferenças! Impor-se sobre os demais!
E quando num lugar se questiona algo, quando num lugar se abre portas à evolução do pensamento, ali se levanta outro mini-ditador!
“O vazio consome, são tantas coisas em jogo…”
O ser humano sucumbe aos seus vícios morais e psíquicos com tanta facilidade!
Em pensar que o exercício da caridade (do amor) depende de um juízo de valor tão mesquinho e pequeno!
O amor e a bondade a título gratuito estão tão em falta!!
Que este ponto de encontro colabore p/ evolução de seus frequentadores e pessoas próximas!!
Rafael, mais um belo texto… Desde pequena eu tinha a impressão que o deus que falavam na igreja era o mesmo deus que falavam em outras religiões. Devia ter meus 5 anos de idade… Hoje vejo o quanto eu poderia ter evoluído para não criar atritos com pessoas queridas. Com tanta coisa ao nosso alcance, acho que as pessoas estão cada vez mais confusas, pois infelizmente a Internet é um meio pra “puxar a sardinha” pro lado de uma crença. Respeitar a si mesmo deveria ser ensinado desde criança. Mas o que eu realmente vejo é discussão. Espero que as pessoas começem a perceber que cada ser vivente nessa Terra é um pedacinho de Deus, e que mereçem ser respeitados como são.
@raph – Mas a primeira coisa que temos quando os pensamentos do mundo todo se unem numa rede digital (algo que já ocorria no mundo espiritual, ou “assim acima, assim abaixo”) é o conflito e o medo das opiniões contrárias, do desconhecido. Mas isso é melhor do que a ignorância do que ocorre “ao outro”, “ao país vizinho”, “ao continente vizinho”… É lógico que saber de um desastre de trem na Índia ou um atentado suicida no Oriente Médio não nos ajuda muito a sermos otimistas, mas talvez saber das atrocidades que são cometidas na África, e que não apareciam nem na TV, nos ajude a ter uma noção melhor do mundo como um todo… No começo desta verdadeira “união em teia de informações”, é mesmo angustiante, mas os benefícios dela vão sendo cada vez mais percebidos, passo a passo, até que as informações não sirvam apenas para o entretenimento vago ou a observação fria e indiferente, mas para causar paixões e catalisar vontades, ainda que sejam ódio de início, dia virá que se tornarão também ideias de amor. A estagnação é o que a Natureza abomina: o restante é parte da evolução a frente.
Para quem está pessimista em relação ao mundo (atual), recomendo ver isso aqui: http://textosparareflexao.blogspot.com/2011/07/involucoes-parte-1.html
Permita-me discordar da visão. Acho que mais importante do que aceitar ou não outras visões de mundo, e saber o porquê de aceitar ou não essas visões. Uma história que ouvi e que resume isso é de um governador inglês que foi deseignado pra tomar conta de uma província no Paquistão durante o grande Império Britânico. Chegando lá, ele proibiu a queima das viúvas, prática comum na região. Então, boa parte da população local chegou nele e disse: sua cultura não é melhor que a nossa, enquanto nós queimamos suas viúvas vocês enforcam seus criminosos; o governador disse: vocês têm razão, nós não somos melhores que vocês, façamos o seguinte- vocês quiemam suas viúvas e como isso será uma violação das leis nós enforcaremos vocês e assim todo mundo fica feliz.
Resumindo: mesmo que algo seja inaceitável, procure sempre entender aquilo pra poder pelo menos negar com argumentos. Afinal, entender e aceitar são posturar muito distintas, e mesmo eu discordando de um monte de coisas postadas aqui, procuro sempre(embora talvez não consiga em todas as vezes) tentar compreender a mensagem e o percurso dos textos.
@raph – Uma coisa é procurar o entendimento, outra é transgredir as leis de uma cultura ou sociedade… A religião cósmica, aquela onde encontramos os jardins onde os anjos pousam, jamais recomendaria o fim de uma vida, seja por que transgressão fosse, mas procuraria isolar o transgressor da sociedade, e no isolamento tentar educá-lo e sensibiliza-lo para que não mais cometesse atos que violam o direito do “outro”… Nesse sentido, mesmo falando em ecumenismo, eu não poderia conversar com um homofóbico religioso, que acha que pode “curar homossexuais” e coisa do tipo (somente para citar um exemplo polêmico tão comum hoje em dia) sem tentar dialogar respeitosamente com ele e expor a minha opinião(*). Mas, mesmo que ele discordasse de mim, eu não o queimaria vivo, nem enforcaria, nem mesmo jogaria pedra alguma nele… É isso. Abs.
(*) http://www.deldebbio.com.br/2011/11/11/levitico-pedras-nao-faltarao/
perfeito…
gostei mundo da parte que fala dos mandamentos mas e o amor ainda tem sentido pra vc? e também gostei do seu convite e algo sobre um deus ausente creio q o meu DEUS nunca esta ausente bom se acreditam q há outro mundo pra nos vão mas eu vou esperar o AMOR vir me buscar e ñ sei definir exatamente a cor mas posso com certeza posso chamar de LUZ e creio q sem ela minha própria sombra me abandona e enquanto eu olhar essa LUZ vou defender a minha fé porque a vida da fé porque isso ja é esforço suficiente em um mundo destruido.