Era um planeta minúsculo, não mais do que 100 km quadrados, a vagar em torno de alguma estrela de alguma galáxia do universo. Mas os deuses que o habitavam não se importavam com o restante do cosmos, estavam bem atribulados com suas existências imortais. Nesse distinto mundo, contavam-se ao todo seis deuses:
O primeiro deus era o Legislador. Era quem determinava as relações entre os demais deuses, cuidando para que ninguém fosse injustiçado. Ele recebia um imposto dos demais por seu trabalho, de acordo com as condições de cada um.
O segundo deus era o Lorde. Foi quem primeiro descobriu a única mina de ouro que existia em seu planetóide, e portanto a proclamou como sua posse. Era com o ouro do Lorde que a economia girava, e obviamente ele ficava com a maior parte dele (“para o caso de alguma crise”, explicava).
O terceiro deus era o Mercador. Era o responsável pelo giro financeiro do mundo. Através dele todos os outros deuses podiam comprar e vender mercadorias, de modo que todos ficavam satisfeitos de poder fazer alguma coisa com o ouro que recebiam. O Mercador sobrevivia da taxação de todas as transações comerciais. Muitos diziam que ele certamente teria mais ouro que o próprio Lorde, embora ninguém soubesse onde o escondia…
O quarto deus era o Minerador. Foi quem primeiro descobriu as técnicas para se extrair o ouro da terra, a convite do Lorde. Desde então trabalhou incansavelmente para extrair a maior quantidade de ouro possível, visto que seu pagamento equivalia a uma percentagem do que conseguia extrair. Obviamente que a maior parte ficava com o próprio Lorde.
O quinto deus era o Agricultor. Era ele quem conhecia os segredos das plantações de árvores frutíferas, folhas e legumes em geral. Apesar de imortais, todos os deuses precisavam comer para se manterem saudáveis. Estranhamente, o Agricultor era quem recebia menos ouro pelo seu trabalho, já que quase todos os outros deuses (menos o sexto) valorizavam mais o ouro do que a própria saúde. Dessa forma as frutas e verduras eram vendidas por preços ínfimos.
O sexto deus era o Sábio. Ele se recusava a trabalhar para outros deuses, e como era amigo do Agricultor, aprendeu com ele o necessário para plantar as próprias sementes. Tirando seu amigo, todos os outros deuses eram inimigos do Sábio: O Legislador não gostava dele porque quase nunca tinha qualquer imposto a pagar (já que não tinha renda alguma); O Lorde o ignorava solenemente porque abominava seu discurso de que “o ouro não é tão importante quanto à sabedoria”; O Mercador o tratava como um reles mendigo porque nunca tinha ouro suficiente para comprar qualquer mercadoria; Já o Minerador nunca havia compreendido como o Sábio podia viver sem o fascínio pelo ouro.
Então veio uma catástrofe mundial: o ouro que havia na montanha do Lorde acabou! Não havia mais nada para se extrair, e o ouro que já havia sido extraído estava adornando as mansões e os cofres secretos dos deuses mais abastados… Mas não havia mais como pagar pelos trabalhos do Minerador ou pelas frutas e verduras do Agricultor!
De um dia para o outro, todos eram tão mendigos quanto o Sábio. Porém, ao contrário do sexto deus, que dedicou sua imortalidade a estudar a si mesmo, eles haviam relegado a existência ao estudo do ouro, e de tudo que ele podia comprar e adornar – tudo que de nada mais serviria a eles…
Após confabularem entre si, para evitar um colapso mundial de seu sistema de existência, foram humildemente pedir conselho ao sexto deus, que fora chamado a fazenda de seu amigo Agricultor. O Legislador falou por todos:
“Sabes que sou responsável por manter nosso sistema justo para todos. Sempre me pareceu que o sistema de mérito pelo trabalho era o mais adequado, e que todo mérito deveria ser pago em ouro… Mas o ouro acabou e não sabemos mais com o que pagar nossos irmãos. Tu sempre fostes alienado de nosso sistema, nunca concordou com ele. Por isso viemos lhe pedir conselho sobre o que fazer agora. Acaso durante todo esse tempo tendes pensado em um novo sistema para o mundo? Acaso havia previsto que o ouro acabaria?”
“Eu nunca previ que o ouro acabaria, mas fico satisfeito que finalmente acabou. Tu dizes que eu era contra o sistema de mérito, mas não é verdade: sou contra o pagamento em ouro. Durante todo esse tempo tenho pensado numa melhor forma de pagar pelo mérito alheio.” – Respondeu o Sábio.
“E achastes uma forma melhor?” – Prosseguiu aflito o Mercador.
“Não. Mas o que importa é que tenho sobrevivido esse tempo todo sem participar do sistema de vocês graças ao que o Agricultor me ensinou. E ele não me ensinou apenas a plantar sementes… Ensinou também a plantar amizades. Não tenho, depois de todo esse tempo, uma resposta simples para nosso sistema futuro. Mas tenho uma resposta simples para o que me manteve contente e mentalmente produtivo durante todos esses ciclos: sementes e amizade.”
raph’09
» Veja também em meu blog a continuação deste conto, “O sétimo deus” (obrigado a Mariana e a todos que comentaram abaixo, as vezes comentários se refletem e viram novas histórias…)
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Crédito da imagem: Divânia
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Respostas de 20
Muito bacana Raph! Gostei muito do fim: sementes e amizade… realmente o Sexto deus era um sábio…
@raph – 🙂
Grande texto!!! Obrigado por partilhar conosco!!!
Desculpa aí, raph, mas eu achei os 4 deuses uns bobos e o deus sábio um chato. Gostei mesmo do Deus Agricultor, que era o único Sábio o suficiente pra ensinar algo pro suposto deus sábio, e ainda transitar entre os dois mundos sem se perder. Ele entrou mudo e saiu calado, e me mostrou mais sobre amizade, sobrevivência e vivência tranquila que o suposto deus sábio e palavroso.
@raph – Talvez você tenha mesmo razão. Uma das “curiosidades” de se escrever sob inspiração é que nem sempre compreendemos muito bem tudo o que queremos passar… O Agricultor, pelo menos, era quem mais compreendia a própria Natureza, e talvez exatamente por isso fosse mesmo o mais sábio de todos – sem que se dessem conta.
@raph – Esse comentário acabou gerando um novo conto, obrigado a todos os outros que também comentaram, alguns foram igualmente levados em conta: http://textosparareflexao.blogspot.com/2012/03/o-setimo-deus.html
Acho que, para que o texto faça sentido, precisamos supor que o deus agricultor plantava para vender o produto e receber ouro. Entendo que o que está implícito no texto é que o sexto deus é o unico que usa o conhecimento que obteve para garantir seu próprio sustento. Se o deus agricultor tivesse autoconsciência suficiente para suprir suas próprias necessidades sem buscar o ouro, não precisaríamos desse sexto deus.
@raph – Por outro lado, ele provia alimentos para os outros deuses, que não sabiam plantar por si mesmos, em troca de um pouco de ouro apenas, embora não o fizesse gratuitamente… Acho que o sexto deus é necessário, é um símbolo afinal, mas o deus mais primordial do sistema acredito que seja mesmo o Agricultor.
Ainda que os outros deuses foram sábios o bastante de ir pedir um conselho depois que o ouro acabou…
O sistema agrário deste planeta que o diga…
Muito legal este conto!
até mais ver
mr.poneis
Muito interessante esse texto apesar de me sentir um mero minerador com seu trabalho terceirizado e sem nenhum conselheiro…
@raph – A Filosofia é o melhor conselheiro, a verdadeira auto-ajuda 🙂
Quer começar por algum lugar? Leia o Fédon, de Platão…
Opa, dica anotada.
tu já fez textos melhores tio
“Mas tenho uma resposta simples para o que me manteve contente e mentalmente produtivo durante todos esses ciclos: sementes e amizade.” ”
é realmente uma resposta muito simples. simples até demais para estar aqui.
@raph – Na verdade, essa era a ideia 🙂
Precisa ser complexo, incompreensível ou indecifrável? Haha
Gostei muito do texto, Raph. Me deu um insight sensacional enquanto eu lia 🙂
Aliás, deixo registrado que também achei que o mais sábio ali foi o Agricultor, o que mostra que as atribuições/títulos de nada valem (ou pouco valem). É a atitude perante a vida que conta, e muito.
@raph – Vou te falar, o comentário da Mariana já me levou a pensar em escrever um sequencia desse conto, falando exatamente sobre o Agricultor… Isso é sensacional pois eu mesmo não havia percebido isso 🙂
Deph, talvez seja melhor observa com mais “depth” o texto, rs
Brincadeiras a parte, neste texto, o personagem do sexto deus me lembrou o indio personagem da música do Caetano: http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/44788/
”
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos, não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio
”
(até arrepiei!)
@raph – Respiração e pensamento, coisa que todos fazem, por exemplo, mas que podem ser muito mais do que são, aparentemente, em mentes devidamente “treinadas” 🙂
Bela história, meu amigo.
É muito gostoso trabalhar pela Liberdade e por valores elevados. Tenho muito o que mudar em mim mesmo, até mesmo para alcançar os próprios textos que escrevo e que leio aqui. Mas é notória a felicidade e a satisfação que sinto em fortalecer esses conceitos. Minha alma ressoa profundamente com eles, empurrando-me para a mudança. Basta continuar reforçando essa ressonância 😉
Abs
Tiago.
@raph – Pois é, e o detalhe é que esse texto já é de alguns anos atrás (2009), o que torna ainda mais interessante o fato de por vazes falarmos sobre as mesmas coisas, ainda antes de termos nos tornado colunistas aqui. Aquela coisa que “atração por pensamento” talvez não seja tanto fantasia afinal, e acho que a internet tem feito disso algo mais comum (basta ver o Twitter e Facebook, como os “memes” se propagam)… Abs!
Apesar dos arquétipos dos deuses serem simples como já foi dito nos comentários, em minha visão eles abrangem todos os nossos papéis no nosso sistema sócio-economico…
O final foi bem tranquilo, mas na realidade as acredito que as coisas ficariam violentas!
@raph – Infelizmente eu acho que você tem toda razão 🙁
Perfeito. Quase uma prvisão do futuro, já que algo parecido está prestes a acontecer com o nosso planeta. xD
Se acabou o ouro, é só trocar para o padrão monetário. 😉
@raph – Aí é que está, como falo no artigo “Padrão-fé” (ver links ao fim do post), o dinheiro nada mais é do que papel impresso. Até décadas atrás, ainda existia uma lastro-material em ouro, ou seja: para imprimir dinheiro um país devia se assegurar de que existia aquele valor monetário em ouro estocado em algum banco do governo. Mas fazem décadas que os países, começando pelos EUA, não fazem mais isso, ou seja: não existe garantia nenhuma, nenhuma, de que o valor de uma cédula monetária seja baseado em algo mais do que fé. Dessa forma, não são os pastores da teologia das prosperidade os maiores especialistas em lidar com a fé, mas sim os especuladores, os governos, os banqueiros e os “gurus da economia”. Isso não é uma teoria da conspiração, pergunte a qualquer economista que conheça sobre o lastro-material e a história do ouro 🙂
ps. Sim, é claro que a atual crise na Europa, assim como a crise nos EUA em 2008, nada mais são do que uma grande “crise de fé”. Porque é exatamente pelo fato de o dinheiro não existir que muitos ficam preocupados com esses “estouros de bolhas”: é porque na verdade eles nada mais são do que a população em geral tomando consciência de sua real situação nesse sistema. O que nos leva a previsão do Ernani no comentário acima…
Sim @raph, eu estava me referindo exatamente a esse post e toda essa historia sobre padrao-ouro vs padrao-fe.
O problema ao meu ver, é que ainda não conseguimos pensar numa forma eficiente de distribuição das riquezas produzidas. O capitalismo em todas as suas variantes acaba criando um acumulo desnecessário e nocivo nas mãos de algumas poucas pessoas. Uma flutuação nas equações mais elementares, parafraseando o Arquiteto da Matrix, que com o tempo vai acumulando um desequilíbrio que coloca em risco todo o sistema.
No lado do socialismo, na pratica, você acaba caindo em governos totalitários e populações alienadas. Aqui também há um acumulo, dessa vez não de capital, mas de poder politico, que no fim das contas termina do mesmo jeito.
Mas enfim, vamos ver se até dezembro conseguimos pensar em alguma solução. Até lá, vamos cuidando das nossas sementes.
@raph – Exato, parece que hoje não funcionam mais nem monarquias e feudalismo (vide primavera árabe), nem o comunismo (que se na teoria é excelente, na prática é um desastre) nem o capitalismo “predatório” atual (afinal, um dia o mundo acaba, não há “extração infinita” de recursos). A resposta para tal questão, “o que será que vai funcionar no futuro?”, acho que é o que nos intriga a todos. Se eu tivesse ela, obviamente, já teria enviado aos líderes mundiais. O problema é que, exatamente, parece que hoje a maioria dos líderes mundiais não iria gostar de uma resposta para essa questão, já que é quase certo que seu poder irá diminuir em qualquer cenário… Abs.
Talvez o esboço de uma solução para esta situação, partindo do pressuposto de que o dinheiro de hoje é totalmente FAKE, sendo inclusive uma verdadeira “obra de FÉ da sociedade moderna”, seja colocar um freio no que pode ser chamado de “movimento especulatório de acúmulo de capital” existente hoje em dia, que consiste em jogar grandes montantes desse FAKE nas mão de pequenos grupos de indivíduos, gerando poder político, dominação, desigualdade e etc, de modo que uma pessoa tenha limites impostos ao quanto de capital ela pode acumular. ou que esta diferença seja meramente ilusória, pois afinal ILUSÃO NÃO PODE GERAR REALIDADE!! (rsss)
Não, isso não é socialismo, tão pouco comunismo, mas sim algo como um capitalismo social.
Os excedentes deveriam ser administrados por organizações especializadas, algo como empresas, mas onde CADA INDIVÍDUO, CADA CIDADÃO possuísse cotas EQUALITÁRIAS, onde a aplicação de capital (entendendo-se capital essencialmente como o excedente da troca de produtos de maior valor agregado x menor valor agregado entre a sociedade) fosse essencialmente revertido para projetos que contribuiriam para a EVOLUÇÃO e manutenção do bem-estar da sociedade. Isso nos permitiria elaborar um PLANO DE EVOLUÇÃO comum a toda a espécie humana, sem a palhaçada caçador x presa que existe hoje. E no administrada em cima de metas: a organização não conseguiu atingir as metas, conselho diretivo DEMITIDO, dando espaço para outros especialistas. Logo, percebe-se que o político de carreira não ia ter vez nessa, se é que me entendem…
Sempre viajando, mas no meu ponto de vista é mais ou menos por ái. Claro, tudo isso não passa de meras conjecturas… Mas, como dizem, após uma idéia maluca (e as vezes arriscada) pode vir uma grande solução.
🙂
@raph – Na verdade eu chamo isso de “visualizações do futuro”. É algo que muitos de nós intuem, e você soube sistematizar e explicar muito bem… Mas, infelizmente, é algo que parece que ainda vai demorar a chegar. Agora, vou dar uma dica aqui: porque será que a mídia não fala mais nada da Islândia? Há anos atrás, a Islândia não era o “primeiro país europeu a quebrar”? E agora, porque só falam da Grécia, Espanha, etc.? Talvez porque a Islândia tenha resolvido seu problema de uma maneira que o sistema atual não concorda, finge que não vê, finge que não sabe, não quer nem ouvir falar!
Falando ai de “sistemas” lembro-me que tive uma aula, acho que na faculdade de administração, que fiz pouco tempo, que dizia que o “futuro” são as cooperativas, inclusive foi dado exemplos de empresas que entram em falencia e não tem capital para pagar os funcionarios, na qual os funcionarios recebem a empresa como forma de pagamento (o normal é vender o patrimonio e pagar as dividas trabalhistas que são obrigatoriamente as primeiras a serem pagas).
Funcionando em forma de cooperativa os lucros são divididos igualmente (logicamente nas devidas proporções ou dando algum salário a mais em detrimento do cargo) dessa forma todos ganham bem em relação ao lucro obtido e estão sempre motivados para para trabalhar, pois são donos e sócios de onde trabalham.
@raph – Acho que as cooperativas são sempre a melhor solução sempre que há qualquer razão para haver algum sindicato. Em algumas áreas, como algumas empresas de TI, não há tanto motivo ainda para as cooperativas por conta da maioria dos funcionários ser já valorizada (estou aqui lembrando de Google e Facebook, não exatamente de “qualquer empresa de TI”)… Mas, sempre que os trabalhadores são explorados de alguma forma, e existe razão de haver sindicados, as cooperativas são a melhor alternativa, e ainda corrigem distorções que permitem que alguns trabalhadores vivam “as custas da empresa”, já que no sistema de cooperativas será do interesse do trabalhador trabalhar, e quem não quiser trabalhar será mandado embora…
Sementes e amizade.
Amizade(s).
“A-miz-ades”.
“A miss de Hades”, ou seja, a Semente.
A Semente o símbolo da “Volta à Forma” ou “Ciclo da necessidade”, popularmente a “reencarnação”.
“A Semente” nos Arcanos Maiores:
Arcano 13 – A Transformação (Morte), que tem como contraparte o :
Arcano 10 – A Roda da Vida, os Ciclos de nascimentos e mortes, Samsara.
@raph – Puxa isso é realmente curioso, até mesmo porque eu não fazia a menor ideia disso 🙂
Finalizando o comentário anterior:
– Sementes. Amizade. Hades. Deuses, etc …
… E tudo isso relacionado com a simbologia da “Primavera” ou “Primeira Era” ou “Satya Yuga” ou “Idade de Ouro” … afinal, “Deuses fomos e nos temos esquecido”.
E por aí vai …
Obrigado pela atenção.
A continuação ficou muito boa, parece até que foi “premeditada” ;p
Abraços
@raph – Valeu, Abs.