Texto de Elton Francisco, publicado originalmente na coluna Flor de Lótus, do blog Diário do Adeptu
Recentemente, chorei pela passagem de um amigo de longa data. Sua partida foi sentida por muitos e choramos, juntos, por sua presente ausência em nosso meio. Ele se foi, dizíamos. Ele se foi e um pouco dele, talvez, ainda permaneça entre nós.
Por costume, celebramos sua partida cantando juntos suas músicas preferidas em volta da fogueira. Cantávamos e contávamos piadas, tirávamos lições de suas próprias histórias, fumávamos cachimbo com fumo e sálvia enquanto nos embriagávamos com um vinho tinto qualquer. Ele se foi, dizíamos entre lágrimas e risos.
Uma vez, em sua infância, ele disse que se perdera na pequena cidade onde morava. Perdera-se por se esquecer do nome de sua tia e da rua onde ela morava. Era disléxico e nunca assumiria isso. Esquecia-se de muito e ao mesmo tempo de nada. Dirigia mal e trocava nomes e datas como se fossem verdadeiras. Enfim, levava isso entre um tom jocoso e naturalidade, pois pouco entendia sobre como lidar com isso. Quando se perdeu na infância, tomou uma grande surra de chicote de su pai que o marcou profundamente: aprendeu a silenciar-se. Seu pai o agredia cada vez que se perdia, por isso deixou de sair. Para evitar confusões entre nomes, silenciava-se e deixava com que as lembranças brotassem de sua mente.
Um relato engraçado foi quando um dia ele entrou em um banheiro feminino e procurava irritado onde estava o mictório. Louco. Ele tinha as suas histórias divertidas, quando estava entre amigos. Quando, entre amigos, permitia-se ser sem medo e o silêncio era não mais companhia, pois expressava-se em plenitude. Mas ele se foi. Ele se foi. Sem dor, pois acreditava que a passagem deveria ser feita assim: com ciência e alegria, sem dor senão da saudade dos que ficavam.
Foi com ele que aprendi o poder da mágoa. Ele dizia que somente a mágoa seria capaz de nos libertar das tristezas mais profundas, pois teríamos contato com elas. Era uma espécie de catarse ao reverso, dizia. Como se na dor e na vivência da dor pudesse se libertar da própria dor. Juro que não o compreendia, mas aceitava a sabedoria desse ensinamento e a mudança que isso fazia nele.
E pouco antes de sua partida, em um dos jantares em sua casa, foi que me disse de como veio a descoberta do poder da mágoa, como ele chamava.
Relatou-me de quando visitou um casal de amigos e trocou pela milésima vez o nome do rapaz e a esposa dele, irritada, agrediu-lhe profundamente por conta disso. Meu amigo, assustado, perdeu completamente o raciocínio e, gaguejando, não conseguia concatenar os pensamentos. Ficou sem graça e saiu, em silêncio, da casa do casal. Saiu chorando, em silêncio, prometendo a si mesmo que jamais voltaria àquela casa.
Durante alguns dias, entristecido, ele meditou e procurou motivos para se sentir tão magoado, tão profundamente machucado com a expressão da tão querida amiga a respeito disso. Ele, que havia mergulhado em livros de filosofia e psicologia durante a vida, não compreendia porque se perdia nessa mágoa intensa e desconexa onde o único desejo era desaparecer por completo.
Mas nada é por acaso.
Como a fogueira que queimava suavemente, ele compreendeu a razão. Teve um momento de lampejo e epifania e sentiu-se liberto da mágoa, pois a compreendeu. Então levantou-se, saiu do quarto e banhou-se. Ligou para todos os amigos e os convidou para uma celebração em sua casa. Dizia que era preciso celebrar, pois sentia-se iluminado e em paz.
O poder da mágoa. Era como chamava a experiência. O poder da descoberta. O poder da catarse.
Era preciso que se sentisse triste e magoado para que voltasse a infância e rompesse o laço do chicote com que fora agredido cruelmente. Era preciso que voltasse ao tempo em que, por medo, se calava e nada dizia. Voltasse ao tempo em que odiava e nada fazia com seu ódio. E voltou. Voltou e vivenciou intensamente cada experiência, cada chibatada e cada palavra mal falada. Cada acusação recebida por seguir calado diante das acusações que vieram ao seu espírito. Voltou ao tempo e chorou. Chorou por horas a fio. Chorou e sentiu cada pedaço de seu corpo cortado pelo chicote do pai e a alma dilacerada pelas experiências causadas por seu silêncio. E após sentir e chorar com toda sua alma, libertou-se. Rompeu o laço com sua falta de coragem e prometeu a si mesmo nunca mais calar-se. Nunca mais fechar-se ou fugir sem levantar-se e lutar com toda força de sua alma.
Prometeu se amar mais e falar o que sentia, ainda que isso lhe causasse alguma dor.
O poder da mágoa. O poder de mergulhar na inconsciência e trazer superficie o que for preciso para se tornar a si mesmo. O que for preciso para compreender a essência da dor. A essência da luz que ilumina a lua. O poder de passar o portal limpo de mágoas antigas que impedem de seguir.
Foi a última lição que tive dele antes que partisse.
Agora, enquanto me recordo dele com um novo choro, acendo meu cachimbo com sálvia e alecrim como se estivesse a homenageá-lo. Pego minha taça de vinho e continuo a ouvir as mesmas músicas que ouvíamos juntos.
Que ele siga em paz. Que ele esteja em paz. Que ele viva em paz.
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Leia Também:
–Quando Ele Não Quer Mais Fazer Sexo – Por Osho
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PH Alves é autor do blog Diário do Adeptu, colunista do Autoconhecimento & Liberdade com a coluna Hinduismo o Místico e o Sagrado, membro do Projeto EntreMentes e apresentador do Podcast Conversa entre Adeptus.
Respostas de 6
Bela homenagem, amigo. Muito bom.
O diálogo com a sombra.
Sabe, sou uma pessoa muito sensível, do tipo que chora por tudo. Hoje, acessei o TdC para desopilar um pouco, já que tinha me estressado hoje por bobagem, e me deparei com seu artigo. Antes, uma quiromante também já havia me aconselhado a expressar mais meus sentimentos, mas a princípio não dei valor (não acreditava em quiromancia na época. Só me consultei com tal mulher porque, enfim, estava em companhia de uma prima e ela insistiu que eu me consultasse também). Bem, ultimamente, analisando os motivos das minhas mágoas, achei que talvez fosse bom seguir o conselho da mulher, mas estava com minhas dúvidas se compensaria. Agora, tenho mais certeza do caminho que deverei seguir para controlar meus sentimentalismos. Obrigada, PH 🙂
E pêsames por seu amigo. A homenagem foi linda.
É um dos textos mais sinceros e lindos que eu já li nesse blog. A profundidade, com certeza, vem dos sentimentos envolvidos.
Fumando salvia e alecrim, caramba deve ficar doidão!
@ph_mage – Possivelmente meu irmão rs
O mais interessante é o texto ser verídico… a morte, real, reverberou positivamente em todos nós.
PH, esse irmão que tive o prazer de voltar a encontrar, sempre me surpreende com coisas tão fantásticas como a convivência com ele.
Gratidão, em Luz.
E.
Belo texto. Parabéns pela postagem!