O Aprendiz de Feiticeiro


Quem leu Harry Potter, o famoso aluno de magia, talvez não saiba o quão famoso era o personagem anônimo de “O Aprendiz de Feiticeiro”, protagonista  de um poema do século XVIII, escrito pelo alemão Johann Wolfgang von Goethe. Mas J.K. Rowling não foi a única a inspirar-se neste personagem, como disse Neil Gaiman: “o arquétipo do jovem feiticeiro tem vários outros precedentes na literatura”.

Em 1897, um compositor francês chamado Paul Dukas resgatou o poema de Goethe em um poema sinfônico intitulado “L’Apprenti Sorcier“. Quatro décadas depois, sob influência tanto do poema de Goethe como na obra de Dukas, Walt Disney elaborou a conhecida sequência do filme Fantasia, onde Mickey é representado como um aluno de magia.  Nem o escritor brasileiro Mário Quintana escapou dos “feitiços” desta obra.
Goethe, o aprendiz
A idéia para a balada “Der Zauberlehrling” foi tirada do texto Philopseudes do escritor grego Luciano de Samósata, onde o personagem Eucrates narra a história de um feiticeiro, que  na verdade é um sacerdote de Isis chamado Pancrates.
É possível que “O Aprendiz de Feiticeiro” descreva o próprio Goethe, pois ele mesmo dedicou-se a experiências com ciências naturais, alquimia e astrologia. Além disso, teve contato com Cagliostro, um famoso alquimista da época, e foi membro da sociedade secreta os Illuminati, a qual, posteriormente tornou-se “Maçonaria Iluminada”.
“Hat der alte Hexenmeister  /  O velho feiticeiro 
Sich doch einmal wegbegeben!  /  finalmente desapareceu! 
Und nun sollen seine Geister  /  E agora seu espírito deve 
Auch nach meinem Willen leben. /  Viver de acordo com a minha Vontade”.
Cansado das atividades domésticas, o aprendiz utiliza-se da magia, que ele ainda não domina por completo, para encantar sua vassoura. Esta trabalha ininterruptamente trazendo cada vez mais água para casa até causar uma inundação.
 “Und sie laufen! Nass und nässer / E elas correm! Molhadas e cada vez mais molhadas 
wirds im Saal und auf den Stufen: / transformam-se nos aposentos e nas escadas: 
welch entsetzliches Gewässer! / que terrível enxurrada!”
Desesperado, o aprendiz resolve destruir a vassoura com um machado, e parte-a ao meio. Logo, cada metade se transforma em uma nova vassoura, trazendo o dobro de água para casa.
“Herr und Meister, hör mich rufen! – / Senhor e Mestre! Ouve-me chamando por ti! 
Ach, da kommt der Meister! / Ah, ai vem meu mestre! 
Herr, die Not ist groß! / Senhor, o perigo é grande! 
Die ich rief, die Geister, / Os espíritos que invoquei 
werd ich nun nicht los. / Agora não consigo me livrar deles”.
Ao fim o mestre reaparece e resolve o caos provocado pelo aprendiz. Mas do que seria o aprendiz sem a intervenção do mestre? O mago de Nazaré já alertava “(…) de todo aquele a quem muito é dado, muito será requerido; e daquele a quem muito é confiado, mais ainda lhe será exigido.” (Lucas 12:48) Daí sai o lema do tio Ben para o “aprendiz” Peter Parker, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades“.
A Música
Paul Abraham Dukas (1865 – 1935), foi um compositor, professor e crítico musical. Atuou como professor catedrático de composição e foi eleito membro da Academia de Belas-Artes da França.
Em 1897, finaliza seu Poema Sinfônico, intitulado L’Apprenti Sorcier”. Obviamente inspirado no poema de Goethe, trata-se de uma obra nitidamente descritiva,  muito brilhante tanto do ponto de vista melódico como da orquestração.
Mas o que vem a ser um Poema Sinfônico? Trata-se de uma obra musical inteiramente baseada em uma história, um romance, um poema, um conto, um tratado filosófico ou até mesmo uma pintura. Não há um esquema formal para isso, em geral são obras orquestrais imprevisíveis quanto a forma.
No entanto, mesmo sem assistirmos a versão animada da obra, é possível visualizarmos apenas com a música, o “passo a passo” das vivências do aprendiz. A fórmula mágica, a invocação, a marcha das vassouras, o pedido de ajuda e etc. Tudo isso graças a utilização de uma técnica criada por Richard Wagner chamada Leitmotiv. Esta técnica consiste em associar um tema musical a um personagem ou situação que vem a ser recorrente em toda a peça.
Dukas faz um verdadeiro trabalho de magia com todos os naipes da orquestra. Desde o tema cômico da marcha das vassouras introduzido pelo fagote (naipe das madeiras), até a brilhante participação do glockenspiel, dos címbalos e do triângulo, coincidentemente todos representantes do elemento água.
Quarenta e três anos depois do lançamento da obra, um mago da animação nascido em Chicago resolve ilustrar a obra em um de seus filmes.
Fantasia
Em 13 de novembro de 1940, o tio Walt Disney (Demolay e Rosacruz) lança seu clássico “Fantasia“. O filme  é um misto de animação com música erudita, algo que ele já havia trabalhado em uma série de animações chamada Silly Symphonies.
No decorrer das suas oito sequências observamos lições de magia, hermetismo, ciências, cosmologia, mitologia e espiritualidade. Tudo isso sem nenhuma palavra e ao som das composições mais populares escritas pelos grandes magos da música.
A fusão das palavras de Goethe com a música de Dukas, resultaram em uma das sequências mais famosas do filme. Altamente simbólico e repleto de elementos magísticos, o que assistimos é praticamente um ritual de iniciação protagonizado pelo personagem Mickey.

No início da animação, o mago chamado Yen Sid (Disney escrito ao contrário), faz uma borboleta surgir de um crânio. A borboleta é considerada símbolo da transformação, enquanto que o crânio representa a mente. Logo, o aprendiz compreende o conceito hermético da transmutação: “A Mente pode ser transmutada de estado em estado, de grau em grau (…) A verdadeira transmutação hermética é uma Arte Mental”.
O famoso chapéu azul, ilustrado com a lua e as estrelas, além de ser uma referência ao próprio universo e a astrologia, representa o primeiro princípio hermético: “O Todo é Mente; o Universo é mental”.
Ao transferir suas tarefas domésticas para a vassoura encantada, Mickey realiza uma projeção astral. Desta forma, ele governa os céus e os mares, demonstrando literalmente o princípio hermético da correspondência: “O que está em cima é como o que está embaixo. E o que está embaixo é como o que está em cima”.
O sobe e desse das marés nos remete ao princípio do ritmo: “Tudo tem fluxo e refluxo; tudo, em suas marés; tudo sobe e desce;” Ao final desta cena Mickey provoca uma tempestade unindo nuvens opostas, eis aí o princípio hermético de polaridade.
Ao retornar de sua viagem astral, Mickey percebe que o seu “sonho”, de certa forma, afeta a sua realidade. Com isto aprende de maneira dramática o princípio hermético da causa e efeito bem como o princípio do gênero: “(…)o gênero se manifesta em todos os planos” físico, mental e espiritual.”
O fim de sua iniciação se dá aos 10’30” do vídeo. Sob uma “pirâmide” de três degraus e com o Sol ao fundo, Mickey é congratulado pelo mestre (maestro) por sua iniciação ao grau de aprendiz.
Curiosidades
O escritor brasileiro Mario Quintana, publicou um livro com o mesmo título do poema. Segundo o autor, o livro se deve do fato que ele se identificou com a aventura: a magia da palavra poética, assume vida própria e multiplica os poemas no laboratório do livro.
Um dos livros infantis mais bem sucedidos do artista gráfico e ilustrador Tomi Ungerer conta a história do Feiticeiro (1971).
Em uma das cenas do filme O Aprendiz de Feiticeiro (2010), há uma pequena homenagem  à animação de 1940.
O Aprendiz de Feiticeiro é utilizado muitas vezes como material didático nas escolas. (Se teve professor por aí com problemas ao utilizar o livro Lendas de Exu imagina com este…)

Share:

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn

Respostas de 12

  1. Nunca mais vou ver os filmes da disney do mesmo jeito : ) .
    Mas serio, muito interresante, pq pra que não é iniciado tem alguns detalhes que são dificeis de ver.
    Haveria alguma chance de vc fazer algum post sobre Wagner e suas obras??
    @FDA – Sim, Wagner merece uma série de posts tamanha a riqueza do conteúdo das sua óperas.

  2. Marcelo,
    Acabei de ler o post e fui ver trechos do Fantasia #curiosidade. Seria então, o castelo (um dos maiores símbolos do parque e etc) do nosso frater, o seu Sanctum Celestial!?
    PS – Ainda não entendi o propósito da criogenização dele, seria uma forma de se “mumificar” tal qual os egípcios pra se manter eterno físicamente, sei lá!? Enfim, devaneios à parte… Obrigado pelo post!!! Paz Profunda!!!
    @FDA – Não sei qual a opinião do Marcelo a respeito, mas apesar do Sanctum Celestial tratar-se de uma construção no plano Mental e Astral (não no Físico), com certeza aquele castelo (da Cinderela) não esta lá por acaso. Note que ele está justamente no parque com o nome de “Magic Kingdom”, no coração da Disney. E já que você citou Richard Wagner, Walt Disney construiu esta bela obra inspirado no castelo de Neuschwanstein, que foi construído por Luís II da Baviera no século XIX com referência ao cavaleiro do Cisne (Lohengrin) um dos cavaleiros da Távola Redonda da ópera de Richard Wagner, história para outro post….

    1. Fantástico!!! Vou pesquisando em paralelos aqui, aguardando os próximos posts!!! Obrigado e Paz Profunda!!!

  3. “Uma pequena homenagem” você foi modesto. Tem toda a cena das vassoras encantadas limpando e inundando todo o lugar.

  4. Ótimo post!
    Lembro dessa animação qdo era pequeno…..acho que vou ter que assistir denovo hehehe
    Cada fase da vida, a mesma obra, uma leitura diferente!

  5. “O Aprendiz de Feiticeiro é utilizado muitas vezes como material didático nas escolas. (Se teve professor por aí com problemas ao utilizar o livro Lendas de Exu imagina com este…)”
    Creio que não gera tantos problemas devido à ignorância dos zévangélicos. No que diz respeito à animação, tudo o que eles vêem é desenho animado para crianças. Nem passa pela cabeça deles referências ocultas. A não ser por aqueles fundamentalistas conspiracionistas (mais comuns entre os ianques), tipo “Torre de Vigia”, ou algo assim.

  6. você poderia me explicar a simbologia da ultima cena, em que apareçe um demonio gigante que chama varios espiritos para perto dele e os fica fazendo eles dançarem e a cena em que varios homens encapusados seguem em direção a uma especie de fenda que leva a uma floresta que anuncia o fim do filme,poderia me explicar essas cenas por favor?
    @FDA – Adianto que a primeira parte é inspirada em uma divindade da mitologia eslava e a música utilizada foi escrita por um compositor muito ligado ao ocultismo chamado Modest Mussorgsky. Além dos seus estudos sobre bruxaria, “Uma Noite no Monte Calvo” foi inspirado em uma peça chamada “A Bruxa”. Os encapuzados da segunda parte são monges, cantando “Ave Maria” de Schubert, dirigindo-se a uma capela. Estou pensando em fazer um post sobre cada sequência do filme Fantasia Ok?

  7. A-M-E-I a matéria e aprendi várias coisas e como músico fico no aguardo sobre matérias sobre R. Wagner!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Social Media

Mais popular

Receba as últimas atualizações

Assine nosso boletim informativo semanal

Sem spam, notificações apenas sobre novos produtos, atualizações.

Categorias

Projeto Mayhem

Postagens relacionadas

Deusas obscuras e o Sagrado Feminino – com Ana Clara Sitara

Bate-Papo Mayhem 383 – Ana Clara Sitara – Deusas obscuras e o Sagrado Feminino

O vídeo desta conversa está disponível em: https://youtu.be/ePqeDpO0TD8

Bate Papo Mayhem é um projeto extra desbloqueado nas Metas do Projeto Mayhem. 

Todas as 3as, 5as e Sabados as 21h os coordenadores do Projeto Mayhem batem papo com algum convidado sobre Temas escolhidos pelos membros, que participam ao vivo da conversa, podendo fazer perguntas e colocações. Os vídeos ficam disponíveis para os membros e são liberados para o público em geral duas vezes por semana, às segundas e quintas feiras e os áudios são editados na forma de podcast e liberados uma vez por semana.

Faça parte do projeto Mayhem: https://www.catarse.me/tdc