por Mazarol Rosmarin
Quando se fala em bruxaria italiana ou stregoneria, estamos falando de uma infinidade de práticas e crenças dos povos que compõem a península itálica. O que nos mostra que é mais correto falar em bruxarias itálicas, por não se tratar de um movimento unificado, não havendo organização social nem religiosa, e muito menos uniformidades nas crenças.
As crenças mágicas dos italianos começaram a ter repercussão na mídia escrita a partir das publicações de Charles Leland, principalmente com o seu Gospel of the Witches e Etruscan and Roman Remains. No Gospel of the Witches, ele parte de um suposto relato de uma bruxa da Toscana, Maddalena, enquanto no Etruscan and Roman Remains ele descreve lendas e crenças mágicas dos camponeses da Romanha, e devido ao recém movimento de unificação da nação e língua italiana, generaliza como sendo absoluta em toda a Itália. No final dos anos 90 se utilizando das fontes de Leland e fragmentos familiares de magia popular, sob uma perspectiva wiccana de culto, o autor ítalo-americano Raven Grimassi lança a sua stregheria, ajudando a intensificar a nostalgia pela velha Itália, de muitos já nostálgicos ítalo descendentes em todo mundo. Atualmente, Brasil, EUA e Argentina são os países com maior número de ítalo descendentes, superando até mesmo a Itália em número de italianos, por isso, somado aos movimentos de Nova Era, esoterismo e revivalismo pagão, o trabalho de Grimassi teve uma aceitação muito grande.
Nos anos 2000 a antropóloga ítalo descendente Sabina Magliocco, da UCLA, apresenta uma série de artigos referentes à magia e espiritualidade italiana e ítalo-americana, classificando a stregheria de Raven Grimassi como uma “bruxaria neo-pagã de origem ítalo-americana”, desvelando o purismo que Raven Grimassi clamava existir em suas tradições.
Atualmente, na segunda década do século XXI, vemos em termos de Brasil um considerável crescimento de uma bruxaria chamada italiana, baseada nos escritos de Raven Grimassi, mas que devido à toda rejeição acadêmica que esse autor possui, mascara-se na forma de uma Bruxaria Tradicional supostamente desintoxicada dos escritos e conceitos desse autor.
As motivações do crescimento dessa bruxaria italiana no Brasil são os mesmos expostos acima. O Brasil é o maior país com concentração de ítalos descendentes, e a cultura italiana influenciou e ainda influencia a cultura de toda região Sudeste e Sul do país, acabando por refletir em muitas áreas das outras regiões brasileiras.
Porém muito do que exposto como bruxaria italiana por essas correntes neopagãs não passa de releituras da religiosidade romana, sem nenhuma relação como os movimentos de bruxaria na Itália medieval. Poucas são de fato as crenças desses stregoni modernos que possam ser classificadas como bruxaria, mas podem e devem ser classificadas como crenças neopagãs baseadas na Roma Antiga.
O trabalho de Leland deve ser lido com olhos cuidadosos e contextualizados na época e cultura no qual foi concebido. Ele relatou uma série de lendas oriundas de um período histórico confuso, onde a Itália tentava estabelecer uma identidade única, que nunca havia ocorrido em sua história. Por isso figuras de exaltação à romanidade dos italianos eram exaltadas, como o poeta Virgílio, tentando enaltecer nos italianos o sentimento de união e patriotismo como se vindo dos antigos romanos. Nunca desde o Império Carolíngio a Itália apresentara uma união.
Nesse clima de ultranacionalismo italiano é que Leland recolhe seus relatos.
Percebe-se nos dois escritos mais famosos de Leland sobre o folclore italiano, uma diferenciação muito grande entre os conceitos expostos no Etruscan and Roman Remains e o Gospel of the Witches. No primeiro ele trata de uma reminiscência de elementos oriundos do paganismo etrusco e romano, que havia sobrevivido na forma de crenças mágicas entre a população rural da histórica Toscana Romagna, não um culto em torno de divindades, mas uma operacidade com espíritos sobreviventes, o que ele nomeou de bruxaria ou ‘vecchia religione’. Se analisarmos o material levantado por Leland em Etruscan and Roman Remains, veremos uma série de descrições de espíritos folclóricos, bem como feitiços operacionais, muitas vezes sem sentido aos olhos dos homens modernos e urbanos. Já em The Gospel of the Witches, Leland apresenta um culto de bruxaria centrado nas figuras de Tríade Bruxa, Diana, Lúcifer e Aradia.
A visão de bruxaria de ambos os escritos é contraditória. Enquanto em Gospel of the Witches, Leland, evoca o imaginário medieval da bruxaria sabática, centrada em figuras antítese do cristianismo, conforme os relatos inquisitoriais de Francesco Guazzo, com grande influência do folclore cigano, ao qual Leland era fascinado, em Etruscan and Roman Remains ele mostra uma bruxaria rural, uma forma de religiosidade popular da gente ignorante do campo.
Qual dos dois, então, apresenta uma visão verdadeira do que é a bruxaria? Numa resposta simplista nós poderíamos dizer que nenhum e os dois, porém vamos nos atar a entender o processo de formação de cada um, dentro da cultura no qual submergiram, e então tentar concluir o que é a bruxaria apresentada por Leland.
Primeiramente podemos observar que ao serem escritos contraditórios, eles não são complementares, como apresentado, mesmo que indiretamente pelos praticantes neopagãos da bruxaria, embora possam se tornar se estiverem inseridos no contexto rural do Centro-Nordeste italiano.
As descrições de Leland no Gospel of the Witches, nos mostra uma bruxaria satânica, que embora não apresente a figura de Satã, se apresenta como uma antítese ao cristianismo, a religião dominante vigente, incluindo no cânon de deuses uma “messias” mulher, Aradia, antítese ao messias homem, Jesus, cuja salvação é terrena, contra os homens opressores, diferindo da salvação espiritual apresentada pela Igreja. O eixo central do Gospel of the Witches é a antítese cristã. Figuras como Lúcifer, Aradia (Heródias) e Caim, declaração da demonidade do Pai, do Filho e da Madonna, e as invocações ao ‘mais maléfico dos espíritos’, mostra que a bruxa apresentada por Leland é muito mais próxima da satânica bruxa apresentada pela Inquisição, do que a pagã feminista que as correntes modernas de bruxaria apresentam.
A visão pagã de uma bruxaria está muito mais presente no Etruscan and Roman Remains, visto o caráter rural dos feitiços e o próprio trabalho de campo por ele desenvolvido. Porém, não se trata de um paganismo, pois enquanto são invocados antigos deuses, transformados em espíritos, são invocados santos e orações cristãs são recitadas. Leland tenta demonstrar que os camponeses chama a isso de ‘vecchia religione’, um termo bem possível, pois são crenças anteriores à Reforma Protestante, cuja repercussão católica com o Concílio de Trento e consequentemente a Inquisição, baniu as crenças primordiais católicas dos camponeses para o campo da superstição e da infantilidade, inimizando esses espíritos. Porém, primordialmente aos camponeses, essas crenças faziam parte do catolicismo. Além disso, o Norte da Itália, principalmente as zonas rurais, foi alvo da pregação intensa dos valdenses, crença que muitos camponeses aderiram secretamente, pois ao aderirem a ela passavam a fazer parte de uma rede de ajuda mútua, o que garantiu a associação dos inquisidores entre bruxas e valdenses.
Então, qual das duas formas de bruxaria italiana praticam os stregoni de hoje, se valendo dos escritos de Leland? A resposta é: Nenhuma! Pois num movimento de retorno se formou uma nova forma de bruxaria italiana, cuja influência principal foi a Wicca de Gardner, e os movimentos anárquicos de espiritualidade feminista dos anos 60.
Leland não foi um doutrinador, ele foi um descritor, de algo contado a ele por pessoas que viviam um momento histórico conturbado. Ele apresentou duas formas de bruxaria que em nada contradizem as descobertas históricas mais modernas, mas que foram deturpadas para caberem na atual condição social, numa adaptabilidade forçada onde a essência do que foi por ele apresentado se perdeu.
Nota Biográfica: Mazarol Rosmarin é um feiticeiro de família italiana originária do Vêneto e Friuli. Sua família vem de uma longa linhagem de benzedeiros, feiticeiros e alfaiates. Pratica sua Arte de forma reservada, como é comum entre os bruxos na Itália, porém vem concedendo ao autor do Crux Sabbati diversas informações sobre as formas de Bruxaria Tradicional praticadas por sua família e pela população das regiões do Nordeste da Itália.
Respostas de 3
Quanto mais eu leio essa coluna mais eu me apaixono pelo tema… será que você poderia me passar uma lista bibliográfica por favor?
Um abraço bem grande!
Eu percebi que há uma grande carga de conhecimento vindo região Norte/Nordeste da itália
Há escritos bons sobre as práticas da região sudeste/sudoeste da Itália?
Um livro muito bom sobre esse tema é “Andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII”, o e-book relativamnete fácil de se achar na internet