Texto do poeta inglês John Galsworthy, nobel de literatura de 1932, traduzido do original (Felicity) por Rafael Arrais [1].
Quando Deus é tão bom para os campos, de que uso são as palavras – essas pobres cascas de sentimento! Não há como se pintar a Ventura nas asas! Nenhum meio de passar para a tela a glória etérea das coisas! Um único botão-de-ouro dos vinte milhões em um campo vale mais do que todos esses símbolos secos – que não poderão nunca expressar o espírito da neblina espumosa de Maio a se chocar com os arbustos, o coral dos pássaros e das abelhas, as anêmonas a se perder de vista, as andorinhas de pescoço branco em sua Odisséia. Aqui apenas não existem cotovias, mas quanta alegria de sons e de folhas; de estradas a refletir o brilho das árvores, os poucos carvalhos ainda em dourado amarronzado, e a poeira ainda espiritual! Apenas os melros-pretos e os sabiás podem cantarolar este dia, e os cucos no topo da montanha. O ano fluiu tão rápido que as macieiras já deixaram cair quase todas as suas flores, e nos prados alongados, a grama verde já deixou crescer suas “adagas”, ao lado dos estreitos córregos ensolarados. Orfeu senta-se por lá em alguma pedra, quando ninguém passa por perto, e toca sua flauta para os pôneis; e Pan pode eventualmente ser visto dançando com suas ninfas nos bosques onde é sempre crepúsculo, se você se deita e permanece calmo o suficiente no barranco da outra margem.
Quem pode acreditar em envelhecer, enquanto estamos envoltos nesse manto de cores e asas e sons; enquanto esta visão inimaginável está aqui pronta para ser observada – os carneiros de face lisa ali ao lado, e os sacos de lã secando pendurados na cerca, e grandes números de patos ainda pequenos, tão confiantes que os corvos já pegaram vários.
Azul é a cor da juventude, e as flores azuis têm uma aparência enigmática. Tudo parece jovem, muito jovem para trabalhar. Existe apenas uma coisa ocupada, um passarinho, bicando larvas para sua pequena família, acima de minha cabeça – ele deve precisar fazer esse vôo umas duzentas vezes por dia. As crianças devem ser bem gordinhas.
Quando o céu é tão aventurado, e as flores tão luminosas, não parece ser possível que os anjos de luz deste dia possam passar à escuridão da noite; que lentamente essas asas devam se fechar, e o cuco se colocar para dormir. Insetos enlouquecidos dançam junto à tardinha, a grama se arrepia com o orvalho, o vento morre, e nenhum pássaro canta…
Ainda assim, acontece. O dia se foi – o som e o glamoroso farfalhar de asas. Lentamente, o milagre do dia passou. É noite. Mas a Ventura não se retirou; ela apenas trocou o seu manto pelo silêncio, o veludo, e a pérola da lua. Tudo está adormecido, exceto uma única estrela, e as violetas. Porque elas gostam mais da madrugada do que as outras flores, eu não faço idéia. A expressão em suas faces, quando uma se curva ao crepúsculo, é mais doce e astuciosa do que nunca. Elas partilham algum acordo secreto, sem dúvida.
Quantas vozes se renderam ao fantasma da noite e desistiram de cantar – restou apenas o murmúrio do córrego lá fora, na escuridão!
Com que religiosidade tudo isso tem sido feito! Nenhum botão-de-ouro aberto; as coníferas com as sombras derrubadas! Nenhuma traça apareceu ainda; está muito cedo no ano para os noitobós; e as corujas estão quietas. Mas quem poderia dizer que neste silêncio, nessa luz macilenta a pairar, nesse ar privado de asas, e de todos os odores exceto o frescor, existe menos do incomensurável, menos disto que as palavras são ignorantes em explicar?
É estranho como a tranqüilidade da noite, que parece tão derradeira, é habitada, se alguém permanece calmo o bastante para perceber. Um pequeno cordeiro está choramingando lá fora preso a sua amarra; um pássaro em algum lugar, dos pequenos, a cerca de trinta metros, assobia da maneira mais deliciosa. Existe um cheiro também, por debaixo do frescor doce das roseiras, eu acho, e das nossas madressilvas; nada mais poderia se espalhar de tal forma delicada pelo ar. E mesmo na escuridão as rosas têm cor, talvez mais belas do que nunca. Se as cores são, como dizem, apenas o efeito da luz em variadas ondas, alguém poderia pensar nelas como uma melodia, o som de agradecimento que cada forma entoa, para o sol e a lua, para as estrelas e o fogo. Essas rosas coloridas pela lua estão cantando um som bem silencioso. De repente eu percebo que existem muitas outras estrelas ao lado daquela ali, tão vermelha e observadora. O falcão passou por ali com seus sete amigos; ele se aventurou muito alto e profundamente na noite, na companhia de outros voando ainda mais distantes…
Essa serenidade da noite! O que poderia parecer menos provável de prosseguir, e se metamorfosear novamente no dia? Certamente agora o mundo encontrou o seu sono eterno; e o brilho de pérola da lua irá perdurar, e este precioso silêncio nunca mais irá renunciar ao seu reinado; a uva-flor deste mistério nunca mais irá brilhar novamente na luz dourada…
E ainda assim, não é o que ocorre. O milagre noturno se passou. É manhã. Uma luz pálida desponta no horizonte. Estou à espera do primeiro som. O céu ainda é nada mais do que papel acinzentado, com a sombra dos gansos selvagens a passar. As árvores não passam de fantasmas. E então começa – o primeiro canto de um passarinho, espantado em descobrir o dia! Apenas uma chamada – e agora, aqui, ali, em todas as árvores, repentinamente todas as respostas vêm em socorro, e o coral mais doce e despretencioso ecoa. Seria a irresponsabilidade alguma vez tão divina quanto isso, o piar dos pássaros? Então – açafrão no céu, e silêncio uma vez mais! O que será que os pássaros fazem após o primeiro Coral? Pensam em seus pecados e seus negócios? Ou apenas dormem um pouco mais? As árvores estão rapidamente soltando a imaginação, e os cucos começam a chamar. As cores estão queimando nas flores; o orvalho as saboreia.
O milagre acabou, pois a radiação iniciou seu trabalho; e o sol está desgastando essas asas negras e ocupadas com seu dourado. O dia chegou novamente. Mas sua face parece um pouco estranha, não mais como fora ontem. Estranho de se pensar, nenhum dia é como o dia que se foi e nenhuma noite como a noite que virá! Por que, então, temer a morte, que é noite e nada mais? Por que se preocupar, se o dia que virá trará uma nova face e um novo espírito? O sol iluminou o campo de botões-de-ouro agora, o vento acariciou os limoeiros. Alguma coisa me faz sombra, passando ali em cima.
É a Ventura em suas asas!
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[1] Admito que essa tradução estava bem além das minhas capacidades linguísticas, poéticas e zoológicas. Se você conhece inglês profundamente, recomendo ler o original – Felicity.
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Crédito da foto: Wikipedia (botões-de-ouro)
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
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