A imagem acima foi publicada em 1496 na obra Practica musicae de Franchinus Gafurius, músico contemporâneo e amigo pessoal de Josquin des Prez e Leonardo da Vinci. Ela representa o pouco que sabemos sobre o sistema musical da Antiguidade e suas correspondências simbólicas com as musas e os planetas astrológicos.
Sentado ao trono temos Apolo, líder das musas, deus dos oráculos da poesia e das artes, representava a harmonia, a beleza e o equilíbrio. A serpente, que divide a imagem simboliza a sabedoria, é também uma alusão à Pythia, serpente dominada por Apolo. É tricéfala porque representa a memória, o tempo e a imaginação, como a mente do músico. Pode ser também uma representação das três Hespérides, guardiãs das fronteiras entre o dia e a noite, e das fronteiras entre os mundos.
No lado esquerdo da imagem observamos as nove musas, deusas inspiradoras da música, poesia, literatura e outras ciências. No sistema musical dos gregos não havia algo que hoje chamamos de notas, haviam funções. Isso mesmo, as notas eram conhecidas por suas funções e não pelos nomes usuais cuja invenção remonta ao século XI. Logo, cada uma destas funções era atribuída a uma determinada musa.
Na esfera correspondente a Terra e ao lado de Apolo temos Thalia, musa da comédia. Debaixo pra cima temos Clio a musa da história e das Epopéias, está associada à função Mene Proslambano, que por sua vez está associada ao elemento Terra e a corda mais grave dos seus instrumentos.
(Musas dançam com Apolo, por Baldassare Peruzzi)
E assim prossegue com Calíope (poesia épica), Terpsicore (dança, poesia lírica e flautas), Melpomene (tragédias e elesias), Eratho (a poesia erótica e lírica), Euterpe, musa da música, representada com uma flauta, Polihymnia, musa dos hinos sagrados e das meditações, e por fim Urania, musa da astronomia.
Do lado direito temos uma relação de modos musicais associados aos sete planetas. Estes “modos”, de que temos uma vaga ideia através do canto gregoriano, tinham um valor completamente diferente e também características que hoje são ignoradas. Em nossos dias, é quase impossível ter uma noção correta das concepções musicais desenvolvidas antes do estabelecimento definitivo do “cristianismo constantino”.
Os modos atuais são estruturados a partir da escala temperada ocidental, mas antigamente eram as únicas possibilidades para a execução de determinados sons. Na antiguidade, um modo ou uma harmonia era (ao contrário dos nossos modos modernos, simples escalas de notas) um conjunto complexo de características comparável aos utilizados pelos músicos árabes.
Havia informações quanto aos intervalos, fórmulas rítmicas, melodias típicas, tessitura, timbre de voz e instrumentos definidos para cada situação. O conjunto estava ligado a uma ideia social, religiosa, moral ou outra, determinada e, por conseguinte, simbólica. Assim, os modos, bem definidos, eram aplicáveis de acordo com a situação em que a música seria executada, se a música remetia ao culto de um determinado deus deveria ser em determinado modo, e assim para cada evento que envolvesse música.
Os modos gregos levavam os nomes das regiões de onde se supunha serem originários. O sistema dórico ou dorius por exemplo, é originário da Dórida, desenvolvido por Tarimas, músico cego que acrescentou uma quarta corda à lira, é um modo grave. E neste sistema musical esta relacionado com o Sol (Tiferet).
O modo Phrygius é atribuído Mársias, o flautista vencido por Apolo, caracterizava uma música guerreira, obviamente associado a Marte (Geburah). O modo Lydius é atribído a Anfião, o tocador de cítara, era reservado às lamentações e aos cantos fúnebres (Chesed). Mixolydius, próximo do lídio, seria devido à invenção da poetisa Safo; tanto podia apaziguar como excitar as paixões. O modo hipermixolídio, simbolizado a justo título pelas estrelas e pelo firmamento, correspondia à oitava corda acrescentada à lira.
Historicamente, os modos eram usados especialmente na música litúrgica da Idade Média, sendo que poderíamos também classificá-los como modos “litúrgicos” ou “eclesiásticos”. Existem historiadores que preferem ainda nomeá-los como “modos gregorianos”, por terem sido organizados, também, pelo papa Gregório I, quando este se preocupou em organizar a música na liturgia de sua época. No final da Idade Média a maioria dos músicos foi dando notória preferência aos modos jónio e eólio que posteriormente ficaram populares como Escala maior e Escala menor.
Vale lembrar, que estes sistemas não eram os mesmos que os hindus entendiam como sendo ragas, nem o que hoje entendemos como modos, pois no lugar de uma série de sete notas contidas em uma oitava, eles continham até dezesseis no intervalo de uma oitava dupla. E a confusão causada pela maneira negligente que os escritores os apresentaram são tão intensas que nos é impossível, hoje em dia, definir, até mesmo para os três sistemas principais, se a tônica do Lídio era Mi ou Dó e se a tônica do Dório era Dó ou Mi.
Com o temperamento da escala e a estipulação de uma afinação padrão, os modos perderam gradativamente a sua importância, visto que a escala cromática englobava a todos e harmonicamente foi possível classificá-los dentro dos conceitos “maior e menor”. Entretanto, o pouco que sabemos sobre os modos serve apenas para facilitar a compreensão do campo harmônico e sua caracterização, mas perdeu-se totalmente o significado das suas funções individuais.
Referências:
Enciclopédia de Mitologia, Marcelo Del Debbio.
Música e Simbolismo, Roger J.V. Cotte.
The Harmony of the Spheres, Joscelyn Godwin.
Respostas de 8
93
Excelente este post, tinha encontrado essa imagem durante um estudo sobre modos, e tenho uma curiosidade legal também pra compartilhar, como os primeiros estudiosos da música pensavam em funções, assim como o Fabio disse (quinta justa = 3/2) eles deram para cada planeta uma função diferente, ou em termos modernos, um intervalo consonante diferente que seria respectivamente a vibração emitida por cada astro e invocaria sentimentos diferentes ao ser humano.
Estranhamente essa associação de planetas/consonâncias não batem com esta imagem de Franchinus Gafurius, saturno seria uma 3ª menor por exemplo, que não existe dentro do mixolídio moderno, então não sei hahaha, talvez essa curiosidade que eu comentei seja um caso a parte, sem tanta relação assim com este diagrama modal.
(Se quiserem eu posso colocar a lista inteira, são 7 consonâncias usando 3ªm/M, 6ªm/M, 5ªJ, 4ªJ e 8ª.)
Um grande abraço!
93,93/93
@FDA – Obrigado por comentar Coutinho, pode mandar a lista inteira sim, ou se você tiver um texto sobre isso eu posso postar no blog. Tenho percebido que muitos autores se contradizem, e frequentemente até a si próprio. O segredo é filtrar, analisar as idéias que coincidem e testar qual funciona melhor. A meu ver, a sistematização da música como um “método magístico padronizado” ainda engatinha…
Manda sim! Agradeço desde já
Falei com o Coutinho, vamos fazer isso num próximo post.
Me incomoda muito que todas as vocalização que se vê na net é feito em dó central, eu faço meus testes pelo método tentativa em erro, e no máximo usando notas simples, mas (re)criando os modais dariam para ir muito mais longe
É uma pena não poder ouvir estes modos agora. Pensar em música representada de uma forma tão diferente é quase como imaginar uma nova cor.
O mais próximo (que tá longe ainda) que temos:
http://www.youtube.com/watch?v=U2zRuYWl4aU
http://www.youtube.com/watch?v=elERNFoEf3Y
http://www.youtube.com/watch?v=KjHNEbVKIGk
Esta última é a música mais antiga que sobreviveu escrita por inteiro, com sistema de notação e letra. Até hoje é debate acadêmico sobre como interpretar de forma “autêntica”.
@FDA – Obrigado pelos links Rodrigo 😉
A Música e seus mistérios revelados.
Ótimo post !
Eu esperando uma aula de como provocar sensações. Tolo mortal.
Como poderíamos representar os 7 planets nos 7 intervalos da escala ocidental???
Tipo: Raíz = SOl; 2ª = Mercúrio; 3ª = Lua (essa não poderia se encaixar mais perfeitamente que na 3ª, vezes alegre, vezes melancólica) 4ª = Venus, etc etc etc