O neurologista Oliver Sacks costuma referir-se a si mesmo como um “cientista romântico”, ele acredita que a mente não pode ser descrita de maneira mecanicista, e que a neurologia moderna só será completa quando considerar a forma icônica e sentimental com que experienciamos a consciência e armazenamos nossas memórias.
Seus livros são verdadeiros dramas, descrevendo casos neurológicos sempre no contexto da vida e experiência pessoal de cada paciente. Muitos desses casos são devastadores, e somente a habilidade com a escrita (ele tem vários best-sellers no mundo todo) do autor faz com que a leitura seja pouco menos impactante do que um soco no estômago…
Sacks faz questão de destacar que cada doença é uma história, principalmente em se tratando de doenças da mente, algo ainda tão desconhecido, tão distante da visão mecanicista da ciência moderna. Em muitos casos as habilidades perdidas são compensadas por novas habilidades ganhas, o que fica muito bem explicado nos diversos casos de autistas savants descritos em seus livros – e principalmente no caso de Temple Grandin (tema principal do “Um antropólogo em Marte”).
Em seu livro “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”, ele faz uma curiosa classificação dos diversos tipos de doenças mentais: (1) Perdas – quando a mente perde habilidades de interpretação da realidade que nos chega pelos sentidos; (2) Excessos – quando a mente se torna incapaz de filtrar a informação que nos chega a cada segundo, e fica em uma espécie de “curto-circuito mental”; (3) Transportes – quando a mente perde a capacidade de diferenciar o sonho da realidade, no que muitas vezes pode ser considerado um misto de doença com experiência mística; e (4) O mundo dos simples – que descreve os retardos mentais, sempre considerando que a mente de um retardado é “muito mais do que se pode ver a primeira vista”.
Nota-se em seus livros, sobretudo, a busca incansável pela essência de nós mesmos, pelo mistério que se esconde entre a consciência e a inconsciência, pelo verdadeiro eu que interpreta a realidade, e não poderá nunca ser reduzido a mero computador, a computar – e não computar e interpretar e elaborar respostas morais – a informação sensorial.
Em muitos casos, mesmo os mais extremos, Sacks consegue identificar esse eu profundo, lutando para se impor sobre as dificuldades da doença e produzir um novo sentido para sua própria existência. Mesmo que oculto em meio à escuridão de certas doenças, o eu sempre é capaz de voltar à tona, seja ouvindo música, seja produzindo arte, seja exercendo a espiritualidade. Em nenhum momento Sacks fala em assuntos metafísicos – toda sua ciência é perfeitamente compatível com a matéria –, mas ele sempre leva em consideração que a ciência atual não tem uma resposta bem elaborada para o que diabos possa ser este eu profundo a tomar as rédeas da própria consciência, essa essência do ser que não é perdida nem nos casos mais extremos…
Particularmente nos casos de amnésia extrema, quando os pacientes perdem por completo a capacidade de reter novas memórias por mais do que alguns momentos – alguns, menos de um minuto –, percebemos o quanto essa busca pelo eu profundo pode ser complexa. Porém, mesmo nesses casos, onde o ser vive em um eterno e confuso presente, a essência não é perdida. Fica ela lá, armazenada em algum lugar entre o cérebro e a mente, em alguma gaveta etérea da consciência, sempre esperando pelo próximo sinal capaz de fazê-la emergir da escuridão do não-ser.
Uma melodia, o tocar das teclas de um piano, uma oração, seja o que for: se é que somos computadores, fomos “programados” para tecer sentidos. Se tudo o que somos é um tilintar aleatório de partículas no cérebro, se somos pouco mais do que “coisas biológicas”, que pelo menos não se afirme que muitos de nós se recusaram a se deliciar com a “doce ilusão” do ser. Que não se diga que muitos de nós se acomodaram em serem máquinas, e não espíritos!
Afinal, o que seriam nossas memórias, nossos registros atemporais da existência? Sabemos que ficam em nosso hipocampo, mas e daí? O que isso significa? Sacks passou boa parte da vida tentando resolver tal mistério (citando o pós-escrito do caso intitulado “Reminiscência” em “O homem que confundiu…”):
“Estimule-se um ponto no córtex de um paciente assim [descrevendo casos de “alucinações musicais”] e desenvolve-se, convulsivamente, uma evocação ou reminiscência proustiana. O que serviria de intermediário para isso? Que tipo de organização cerebral poderia permitir que isso acontecesse? Nossas concepções atuais sobre o processamento e representação cerebral são todas essencialmente computistas. E, como tal, são expressas em termos de “esquemas”, “programas”, “algoritmos” etc.
Mas será que esquemas, programas e algoritmos nos fornecem, por si sós, a qualidade ricamente visionária, dramática e musical da experiência – a vívida qualidade pessoal que faz dela uma “experiência”?
A resposta é, claramente, e até mesmo com veemência, “Não!”. Representações computistas jamais poderiam, por si sós, constituir representações “icônicas”, as representações que são o encadeamento e a essência da vida.
Assim, surge um hiato, na verdade um abismo, entre o que ficamos sabendo por nossos pacientes e o que os fisiologistas nos dizem. Existe algum modo de transpor esse abismo? […] Existem conceitos além dos da cibernética com os quais possamos compreender melhor a natureza essencialmente pessoal […] da mente?”
Sacks prossegue citando Sherrington em seu livro “Man on his nature”, onde este imagina a mente como um “tear encantado” a tecer padrões mutáveis porém sempre significativos – tecendo padrões de sentido:
“Esses padrões de sentido transcenderiam programas ou padrões puramente formais ou computistas e dariam margem à qualidade essencialmente pessoal que é inerente a reminiscência, inerente a toda mnesis, gnosis e práxis. […] Padrões pessoais, padrões para o indivíduo, teriam de possuir a forma de scripts ou partituras – assim como padrões abstratos, padrões para computador, têm de estar na forma de esquemas ou programas. Portanto, acima do nível de programas cerebrais, precisamos conceber um nível de scripts e partituras cerebrais.
[…] A experiência não é possível antes de ser organizada iconicamente; a ação não é possível se não for organizada iconicamente. “O registro cerebral” de tudo – tudo o que é vivo – tem de ser icônico. Essa é a forma final do registro cerebral, muito embora o feitio preliminar possa ser moldado como cômputo ou programa. A forma final de representação cerebral tem de ser, ou admitir, a “arte” – o cenário e a melodia artística da experiência e da ação.”
Tal qual tecedores de tapetes mágicos, somos os eternos artistas de nós mesmos. Ainda que perdidos em poucos instantes de retenção da memória, ainda que tecendo desesperadamente um fio que logo depois se perde na escuridão do não-ser, estamos aqui lutando bravamente. Somos os grandes artistas da vida, resta-nos apenas reconhecer o quão belo e sagrado é todo esse mecanismo que nos permite existir – e existindo, tecer nossa própria história, nosso próprio sentido do existir.
***
Crédito da foto: Dinorah
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
» Ver todos os posts da coluna Textos para Reflexão no TdC
» Veja também nossa página no Facebook
Respostas de 10
Maneiro ……muito maneiro. È interessante como um cientista não bitolado pelo cartesianismo pode ver algo além do que a comunidade científica acredita e mesmo postula.O homem é uma máquina(podendo assim ser compreendido em termos mecanicistas) , mas o que move essa maquina é que um eteeeeeerrrrno mistério.
Interessante..vou procurar as obras deste autor. Abraços.
@raph – Eu recomendo as citadas acima, Um antropólogo em marte e O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. Se gosta de música, além desses, recomendo também Alucinações musicais.
Todas as “Ciências Psicológicas” (uma denominação que uso para tentar englobar as neurociências, a filosofia e a psicologia em suas variadas vertentes) tem apontado neste sentido: “tecer nossa própria história”. Desde a revoluçãlo cognitiva, é possível perceber que a maneira de construção subjetiva de mundo é o que mais vai contar para a definição de realidade e a relação que o sujeito vai ter com ela.
Abraço, raph!
@raph – Valeu Igor… Eu acho que você vai gostar dos livros do Sacks, se ainda não leu nenhum, vale a pena ler ao menos um, pois no geral são todos bem parecidos (o estilo de “cientista romântico” do autor), o que mudam são os casos clínicos analisados.
Raph, tenha consideração e pare de aumentar minha lista de leitura, que eu ainda não consegui terminar a Viviane Mosé. Assim eu vou precisar de um daqueles cursos de leitura dinâmica…
@raph – Mas o Sacks é fácil de ler, é daquele tipo de livro que você não vai querer parar de ler… Se ler um caso clínico por noite, vai rapidinho 🙂
Também prefiro entender a “doença mental” como uma história, como algo que se constrói e faz sentido, do que como uma disfunção. Mesmo que seja uma disfunção física, um AVC, um ferimento no cérebro, nós somos estruturados de uma maneira a fazer sentido das coisas. Mesmo em uma aleatoriedade, o ser humano constrói um enredo para si mesmo, para sua vida.
Não vejo como o modelo computacional prejudica isso, como se fosse impossível recriar algo com a complexidade humana, colocar essa experiência como inatingível. Acho que somos de uma certa forma como máquinas, temos nossos limites, temos várias partes dos nossos comportamentos como quase imutáveis. Não conseguimos desligar nossa audição, nossa visão, optar por não fazer sentido daquilo que vemos. Somos programados para aprender, pra lidar com uma vida inteira de novos dados, temos liberdade para alterar os métodos que usamos para entender o mundo, pra ajustar o nosso código, digamos. Temos uma complexidade muito alta, e voltada pra encontrar sentido mesmo onde não há. De uma certa forma, nós fazemos as coisas terem sentido, a nossa existência confere sentido às coisas.
@raph – Se nalgum dia conseguirem elaborar um modelo computacional que interprete informações, e não apenas as compute e compare com algoritmos para trazer respostas, daí poderemos dizer que somos, afinal, também um modelo computacional. Talvez até sejamos, mas nosso modelo mental está MUITO distante do que os modelos computacionais fazem hoje, ou farão daqui a alguns séculos (nem sequer “parecer humanas” e passar no teste de Turing, as máquinas conseguiram). Interpretar é algo infinitamente mais complexo e misterioso do que computar (o que uma máquina diria sobre a “vermelhidão” do vermelho?). E é exatamente da interpretação que surge a tapeçaria do Sentido 🙂 Abs.
Acho que quando conseguirmos fazer um computador com imaginação, sentimentos próprios, até mesmo independentes dos sentidos físicos (temos aparelhos com sensores bem melhores que os nossos para o olfato, por exemplo, mas que não sentem saudade do operador que sentou ao seu lado tomando café ou demonstra alguma emoção ao captar o odor) , teremos criado não uma máquina, mas um ser vivo não biológico, o que seria bem interessante… Talvez um dia cheguemos lá e criaremos “vida” de fontes ditas inanimadas (metais, por exemplo).Seria legal, de certo modo, ter um exemplo de que a “vida” independe do modelo biológico, tão frágil. Mais legal ainda seria verificar isso num modelo energético/vibracional… vixeee, descrevi um servidor, um ser astral ou um meme, na última frase viajada?!rsrs
eitaaa imaginação fértil…kkkkk
Adorei a indicação dos livros, vou busca-los, pois a muito acredito que doenças mentais são bem mais do que simples “coisas biologicas” como descritas no texto.
Muito bom! Bom como sempre, Raph!
Tô lendo “Muito Além do Nosso Eu”, do Miguel Nicolelis (sei que vc também tem esse livro) e também vejo que ele busca coisas diferente dos cientistas mais bitolados. E ele também não perde o fascínio e o encantamento pela mente humana.
Uma coisa que acho legal no Nicolelis é que ele investiga “o ponto de vista do cérebro” (similar ao “eu” do Sacks). Nessa linha, o cérebro constrói a realidade internamente e vai o tempo todo testando e refazendo os modelos mentais. E ele comprova essas teses cientificamente.
Recomendo a leitura a todos!
@raph – Realmente, apesar de ter um capítulo meio “técnico demais”, o livro, e a pesquisa do Nicolelis, são extraordinários… Mas, mesmo assim, achei que ele falou muito pouco da Brainet, o que é uma pena, pois o conceito tem analogia direta com conceitos do ocultismo e da espiritualidade em geral. Abs
Acho que tenho vocação pra racionalidade, porém saí (ou estou saindo) da matrix a pouco tempo. Tenho desenvolvido idéias bem complexas na minha cabeça de uns 2 anos pra cá, mais pencebi que tenho uma ligeira dificuldade em entender idéias complexas alheias. Você tem alguma dica de exercício pra que eu possa passar a entender textos como esse com clareza ????
@raph – No caso desse artigo em específico, não há nada de “oculto” nas entrelinhas, então é até uma vantagem ser racional, pois toda a obra de Sacks é exatamente uma visão “romântica” da racionalidade e da ciência… Abs
A vida ainda é um grande mistério. No entanto, estudando sobre o universo, descobrimos como é fantástica a teoria da evolução, de Darwin. Ela nos traz resposta para diversos questionamentos. Além de percebermos que não somos o centro do universo. Vamos continuar estudando…. Abraço