As serpentes são nossas velhas conhecidas dos mitos de criação…
Diz-nos o Gênesis que a serpente era a mais astuta de todos os animais do Éden. Javé havia alertado ao primeiro homem e a primeira mulher, Adão e Eva, que jamais comessem do fruto proibido da árvore que estava no meio do jardim, pois que tal ato causaria a morte. Mas a astuta serpente disse a Eva: “Se o comer, certamente não morrerás. Porém, Javé sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Javé, sabendo do bem e do mal”.
Então Eva percebeu que o fruto daquela tal árvore era agradável aos olhos e desejável para o entendimento. Comeu o seu fruto, a depois ofereceu a iguaria também ao primeiro homem. E diz-nos o Gênesis que “então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus”. Eis uma excelente estratégia de Javé e da serpente…
Agora vejam esse trecho de um mito do povo Bassari da África Ocidental [1]: Unumbotte fez um ser humano e seu nome era Homem. Em seguida criou um antílope e o chamou Antílope. Também fez uma serpente chamada Serpente. E disse a eles: “A terra ainda não foi trabalhada. Vocês precisam amaciar a terra onde estão sentados”; e tendo lhes entregado sementes de todos os tipos, prosseguiu: “Plantem todas essas sementes”. Tendo obedecido às ordens de Unumbotte, perceberam que haviam criado um jardim sobre a terra, cheio de frutos os mais variados. Havia um tipo de fruto, entretanto, para o qual Unumbotte alertou que não comessem.
Um dia, porém, Serpente disse: “Nós também devemos comer esses frutos. Porque passar fome?”. Antílope então disse: “Mas não sabemos nada sobre esse fruto”. Então Homem e sua Mulher tomaram o fruto e o comeram. Unumbotte prontamente desceu do céu e perguntou: “Quem comeu o fruto?”. Homem e Mulher foram sinceros: “Fomos nós”. Unumbotte indagou-os: “Quem disse que vocês podiam comer desse fruto?”. Homem e Mulher foram um pouco mais maliciosos: “Foi Serpente quem disse”.
Pobres serpentes que levam a culpa pela suposta corrupção do homem e da mulher, a despeito de conhecimento prévio de Javé e Unumbotte acerca do que viria a ocorrer… Nem era preciso ser onisciente para saber: ofereça a possibilidade de conhecimento oculto, proibido, aos seres ávidos por conhecer, e eles arriscarão tudo por eles, tal qual Prometeu arriscou despertar a ira dos deuses (e de fato a despertou) para entregar aos homens os segredos do seu fogo. Seriam as serpentes e os titãs, seres tão astutos e conhecedores, o “grande mal” personificado, ou antes, meros atores a colaborar com o ainda mais astuto plano divino?
Diversos autores discutem sobre diversas religiões do Oriente Próximo, muitas das quais representavam a Deusa Mãe por uma serpente, e outras por uma simbologia de comunhão realizada pelo ato de comer uma fruta de uma árvore que crescesse perto do altar dedicado à Deusa. Estas deusas também representavam o conhecimento, a criatividade, a sexualidade, a reprodução, os novos ciclos naturais, e o destino [2].
De fato, não foi à toa que Eva levou a culpa do tal Pecado Original, juntamente com a serpente. Há aqui que se considerar que diversas sociedades matriarcais ancestrais foram sendo suprimidas pelo patriarcado. Por muito tempo após o advento da agricultura, as mulheres passaram a organizar a colheita, tornando-se, talvez, mais importantes para a sobrevivência da tribo do que os próprios homens, os caçadores. Tal sucesso, no entanto, fez com que o ser humano prosperasse e se espalhasse pelo mundo. Nalgum dia alguma tribo tornou-se próspera o suficiente para que despertasse uma antiga ideia brutal dos caçadores: “Porque arriscar caçar no campo selvagem, se podemos saquear os grãos e a colheita dessas tribos de ovelhas?”.
Então surgiram os lobos a assustar as ovelhas. Alguns dos lobos se ofereceram para proteger as ovelhas dos outros lobos, em troca de comida. Surgiu o primeiro exército. Os homens voltaram a dominar pela força, e a sabedoria das mulheres no lido com as colheitas e a natureza não era mais tão primordial. Com o tempo os mitos alcançaram tal história. Seguem alguns exemplos sugestivos…
Na mitologia babilônica: A morte da serpente-dragão Tiamat pelo deus Marduk, que divide seu corpo em dois, é considerada um grande exemplo de como ocorreu a mudança de poder do matriarcado ao patriarcado. Na mitologia grega: Na juventude, Apolo matou a serpente Píton, que vivia em Delfos e tomava conta do oráculo de Têmis, e tomou o oráculo para si. Depois foi punido, pois Píton era a filha de Gaia, a Mãe Terra. Ah sim, Apolo também tomou o cuidado de dividir o corpo da serpente em dois.
Finalmente, retornando a Bíblia: Diversos autores modernos analisam a história da criação do Gênesis como uma narrativa alegórica sobre a divindade Javé suplantando a Deusa Mãe, representada pela árvore da vida, e a religião hebraica suplantando este culto. Isto é demonstrado na passagem sobre a origem do pecado em que o conhecimento proibido relaciona-se a sexualidade e a reprodução, especialmente o conhecimento de que os homens participam da reprodução [3].
Eis que achamos à culpada por nosso conhecimento da sexualidade e dos mistérios naturais: a serpente-dragão, a Deus Mãe. Mas, se no Ocidente tais mitos carregaram as serpentes com características supostamente negativas, no Oriente foi algo diferente… Abaixo da Árvore da Iluminação, está o Buda sentado em posição de meditação. Quando uma grande tempestade se aproximou, uma enorme serpente levantou-se acima da caverna subterrânea e envolveu o Buda em sete espirais por sete dias, para não interromper o estado de meditação. Para os orientais, o conhecimento da natureza, não somente científico, mas sobretudo espiritual, pode levar a paz de espírito duradoura e, quem sabe, a grande iluminação interior.
Sim, há grande sofrimento no mundo, e os místicos orientais não negam isso, mas o reafirmam: nada pode ser mais prazeroso do que enfrentar esse sofrimento, e prosseguir no caminho de retorno ao Éden. A diferença é que o Éden não foi nem será – o Éden está aqui neste momento, dentro de nós, e fora de nós, espalhado sobre a terra, e os homens não o veem. Buda o viu, e esta visão o fez caminhar por milhares de quilômetros da Ásia, trazendo a “boa nova” para os desavisados, iluminando o caminho daqueles que combatiam incessantemente a natureza, sem perceber que estavam conectados a ela. Era preciso saber encarar o sofrimento face e face, e se renovar, se reinventar, à todo momento, para que os traumas e as cicatrizes fossem parte de nossa antiga história, de nossa antiga pele, e não mais do momento atual. Deste momento.
A serpente que abraça a terra e os galhos das árvores sagradas sabe: ela já provou do fruto proibido, e amargou, quem sabe, um conhecimento indesejado, o conhecimento do sofrimento e do mal; Porém, foi assim também que obteve o conhecimento da felicidade e do bem, e percebeu que o caminho para a luz da felicidade era infinito, enquanto que o sofrimento se acumulava apenas em sua pele, em sua casca. A serpente aprendeu a trocar de pele, e deixar seus antigos traumas para trás. Todo este veneno antigo não era mais necessário: fez do próprio veneno um antídoto para a vida. Serpenteia sempre renovada, pelos mesmos sulcos de terra criados por suas irmãs. A serpente sabe.
Até quando os seres de pouca visão permanecerão crendo que todo impulso natural é pecado, que a natureza deve ser subjugada, e que o sofrimento deste mundo de nada nos serve que não para esperarmos com ainda mais afinco, com as ancas ainda mais fincadas no solo do dogma, pelo suposto retorno ao antigo estado de ignorância do Éden, quando nada sabíamos e nada conhecíamos, nem éramos conscientes de nós mesmos, mas caminhávamos junto ao Pai Bondoso?
Pois saibam que este foi o grande esquema, a grande lição arquitetada por Javé e Unumbotte, com a ajuda de todas as serpentes do mundo, e com o aval da Deusa Mãe: tirar seus filhos de casa, para que sobrevivam e evoluam por si mesmos, e paguem suas próprias contas.
Está na hora de tornar-se adulto.
Então Ele percebeu, “na verdade Eu Sou essa criação, pois Eu a expeli de mim mesmo”; Dessa forma, Ele se tornou essa criação, e aquele que sabe disso torna-se, na criação, um criador (Upanishads)
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[1] Todas as citações do povo Bassari foram retiradas de O poder do mito, a célebre entrevista de Joseph Campbell para Bill Moyers.
[2] Ver, por exemplo, este artigo de Ana Maria Mendes Moreira: A mulher, o divino e a criação.
[3] Acho proveitoso citar aqui uma das respostas de Chico Xavier no célebre Pinga-Fogo da TV Tupi (1971): “Nós temos um problema em matéria de sexualidade na humanidade, que precisamos considerar com bastante respeito recíproco: se as potências do homem na visão, na audição, na tatilidade das mãos, foram dadas ao homem para a educação e o rendimento no bem, seria então o sexo, em suas várias manifestações, sentenciado às trevas? A criatura humana não é só chamada à fecundidade física, mas também à fecundidade espiritual, transmitindo aos nossos filhos os valores do espírito de que sejamos portadores.”
Respostas de 9
Pistis Sophia: um motivo de reflexão, que me foi provocado por um amigo, levando em conta a Serpente.
Acredito que tenham existido Sociedades Secretas (ou Ordens Herméticas) que se auto denominaram “Escola da Serpente”. E, talvez, tenhamos que garimpar para entender o que significa esse ‘conhecimento’…
Um abraço e obrigado pela coincidência.
Francisco
@raph – Pistis Sophia, segundo os textos gnósticos, pode ser compreendido como “a versão feminina do Cristo em nós”, ou “a sabedoria de Cristo”:
Novamente, seus discípulos disseram: “Diga-nos claramente como eles desceram das invisibilidades, do imortal para o mundo que morre?”
O perfeito Salvador disse: “O Filho do Homem entendeu-se com Sophia, sua consorte, e revelou uma grande luz andrógina. Seu nome masculino é designado Salvador, progenitor de todas as coisas. Seu nome feminino é designado ‘Todo-progenitora Sophia’. Alguns a chamam de Pistis”.
Sophia de Jesus Cristo (achado em Nag Hammadi)
Falando do “lado feminino” no cristianismo… É interessante como o Evangelho de Maria também ressalta ainda mais a “autoridade espiritual” de Maria de Magdala dentre os outros discípulos de Jesus. Provavelmente ela era a maior “iniciada” depois do próprio Jesus, embora se formos considerar todos os “apócrifos”, talvez Judas também merecesse este “patamar”: http://textosparareflexao.blogspot.com/2012/09/o-evangelho-de-maria.html
Abs!
Pensei em Pistis com uma tradução livre de Serpente, anterior a Gnose, parte do Egito Antigo.
@raph – Bem, “pistis” é a palavra grega para “fé”. Diz assim Humberto Rohden, que entende muito mais de etimologia do que eu:
“Desde os primeiros séculos do Cristianismo, quando o texto grego do Evangelho foi traduzido para o latim, principiou a funesta identificação de crer com ter fé. A palavra grega para fé é pistis, cujo verbo é pisteuein. Infelizmente, o substantivo latino fides, o correspondente a pistis, não tem verbo e assim, os tradutores latinos se viram obrigados a recorrer a um verbo de outro radical para exprimir o grego pisteuein, ter fé. O verbo latino que substituiu o grego pisteuein é credere, que em português deu crer. Nenhuma das cinco línguas neo latinas — português, espanhol, italiano, francês, rumeno — possui verbo derivado do substantivo fides; fé; todas essas línguas são obrigadas a recorrer a um verbo derivado de credere. Ora, a palavra pistis ou fides significa originariamente harmonia, sintonia, consonância. Ter fé é estabelecer ou ter sintonia, harmonia entre o espírito humano e o espírito divino.”
Se o espírito humano não está sintonizado com o espírito de Deus, ele não tem fé, embora talvez creia.
(continua aqui: http://www.ieja.org/portugues/Estudos/Artigos/p_adiferencaentrecrereterfe.htm)
Dessa forma “Pistis Sophia”, ao menos etimologicamente, não parece ter nada a ver com “serpente”, mas sim com uma “sintonia com a sabedoria”. Por outro lado, a serpente é um símbolo universal de sabedoria, então a relação se dá pela simbologia (de imagem) e não necessariamente pela etimologia. Acho que é isso 🙂
Abs.
Isso me lembra a parábola do filho pródigo.
Estamos aqui dissipando os bens recebidos do pai, vivenciando nossas experiências, sofrendo e sorrindo.
Enquanto isso, o Pai nos espera de braços abertos e aguarda paciencioso por nossa volta.
Às vezes, vejo muitas pessoas afirmando que esse mundo é o verdadeiro inferno. Mas eu acredito que é apenas o mundo; o inferno e o paraíso estão dentro de cada um de nós.
Parabéns por mais esse belo texto Rafael.
@raph – Se não estivessem dentro de nós, onde mais estariam? Cada um carrega o seu próprio céu ou inferno consigo, a influência de fora é mínima se comparada a influência de dentro… Por isso que os anjos mal param no “céu”: é que eles trabalham no “inferno”, distribuindo convites. Só que, aí é que está: mesmo no “inferno”, estão amando; Estão, dessa forma, no céu a todo momento.
Raph, vejo que você tem particular atenção a esta questão do pinga-fogo
@raph – Com certeza… Bem, acho que está melhor explicado aqui: http://textosparareflexao.blogspot.com/2011/09/4-amores-um-caminho-de-evolucao.html
Simbolicamente:
A serpente que “troca de pele” = Sabedoria (Arcano 13).
A Serpente que morde a própria cauda = Eternidade (Arcano 10).
Eterno “vir-a-ser”.
@raph – É isso 🙂
A serpente é partida em dois.
Poderia ser uma relação com o mistério da kundalini.
Seria então cada parte Ida e Pingala.
E Apolo(Sol), poderia ser relacionado com o caminho de sagitario, a flecha que sai da lua em direção ao sol. Ou seja um poder advindo da sexualidade em direção ao espirito puro.
Acho meio confusa a ideia de que para a ascenção da kundalini tenhamos de dividila. Sempre pensei no junta-la. Mas faz sentido, são caminhos opostos que se continuam, não se sobrepoem, senão estagnariam.
@raph – Há também uma possível relação com a separação da Terra e do Céu realizada por um Deus criador, uma espécie de “ritual de afirmação de sua soberania sobre os outros deuses”. Há muitos “deuses jovens” que “castram o deus pai”, o que muitas vezes é também representado como a vitória de um “herói” sobre uma “serpente-dragão”, que quase sempre é dividida em duas… Estou aqui interpretando meio livremente de acordo com os mitos analisados por Mircea Eliade no seu monumental “História das crenças e das ideias religiosas, vol. I” (Ed. Zahar)
“Castrar” o Deus pai, poderia ser como afirmar o livre arbitrio. Seguindo a queda na terra. A serpente ou lucifer(luz astral), seria talvez a representação da luz que se desprendeu da fonte original para afirmar-se como individuo livre.
Se livrar da serpente, poderia ser algo como dominio da materia rumo ao sol ou a pedra filosofal como alguns chamam.
Falta entender mais sobre partir a serpente em duas. Talvez tenha a ver com polarizar e equilibrar no pilar do meio, bem no sol.
@raph – Faz sentido.
Rafael Arrais, tenho 51 anos de idade, desde os 15 leio e reflito sobre filosofia, yoga, ocultismo e religião.
O artigo acima é o melhor artigo que já li.
Contudo, se não houvesse lido e refletido sobre milhares de páginas, não poderia ter apreciado seu sabor.
José Elias
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Gostaria de contar uma experiência que tive. Certa vez tive um sonho com serpentes. Sonhei que estava num hotel, andando pelo corredor, e encontrei um salão onde estava acontecendo uma exposição de cobras, vivas, dentro de aquários de vidro. Eu entrei e comecei a olhá-las. Porém percebi que conforme eu andava entre os aquários e as cobras me viam, elas começavam a ficar agitadas, ferozes, se mexendo inquetas. Por algum motivo minha presença estava as perturbando. Fiquei com medo e saí da sala, e quando passei pela porta, vi uma mulher segurando uma cobra nos braços. Essa cobra escapou de suas mãos e começou a vir atrás de mim no corredor. Não tive nem tempo de sentir medo, pois eu não era seu alvo: a cobra passou direto por mim, e seguiu rastejando pelo chão na minha frente. E de repente eu soube que ela estava indo para o meu quarto, onde eu estava hospedado, pois no local onde estava a minha cama, era onde antes ficava o ninho dela.
Contei esse sonho para uma amiga que tem muitos estudos em temas ocultistas. Ela me apresentou um significado para a serpente: o de renovação, devido à sua mudança de pele, e todo o simbolismo dessa ocorrência. Em seguida eu tive a oportunidade de me sentar num banquinho num jardim, e fiquei refletindo sobre o que ela me falou. Rapaz! Parece que uma luz desceu sobre a minha cabeça. Não é que aquilo foi uma chave para decifrar meu sonho? Fez muito sentido para mim, para minha vida particular naquele momento, e desde então eu tenho um olhar muito apreciador para esse ser que é a serpente. 🙂