Questões Infernais

A palavra inferno, que hoje conhecemos, origina-se da palavra latina pré-cristã inferus, que significava "lugares baixos"; foi dela que surgiu o termo infernus. Na Bíblia latina, a palavra é usada para representar o termo hebraico Seol e os termos gregos Hades e Geena, sem distinção. A maioria das traduções ao português seguem o latim, e elas não fazem distinção do original hebraico ou grego.

Geena, do grego, se refere a um lago de fogo. Já o Seol hebraico e o grego Hades parecem se referir a uma mesma ideia, muito anterior à própria Bíblia: um reino dos mortos (que ficava abaixo da terra, daí a conexão com infernus).

Segundo a mitologia grega, os deuses olímpicos saíram vitoriosos da batalha travada contra os titãs (a titanomaquia), e Zeus, Poseidon e Hades partilharam entre si o universo; Zeus ficou com os céus, Poseidon ficou com os oceanos e Hades ficou com o mundo dos mortos, que leva o nome deste deus (além disso, todos eles partilharam a terra igualmente, daí a ideia de que poderiam influenciar os vivos).

A influência de Hades no reino dos vivos é quase que estritamente negativa e maléfica, vinculada à pragas, doenças, destruições e guerras, mas também é tida como influência de desafios, afinal nas tradições antigas, para seguirem o "caminho do herói", testes e provações físicas e psicológicas eram necessárias… Da mesma forma, o reino de Hades, o reino dos mortos, não é um conceito que poderia ser associado somente ao que o cristianismo passou a compreender por inferno.

No Hades as almas eram julgadas por três juízes [1], com responsabilidades específicas: Minos tinha o voto decisivo; Éaco julgava as almas europeias; e Radamanto julgava as almas asiáticas. Nem mesmo Hades interferia no julgamento deles, a não ser em raras ocasiões. Este tipo de julgamento moral se assemelha a concepção cristã do julgamento do final dos tempos, mas o que ocorre com as almas boas? Elas saem do Hades?

Aí é que está: não saem, pois o próprio Hades é um reino com o seu céu e o seu inferno. O céu é conhecido na mitologia grega como Campos Elíseos; o inferno, como Tártaro. Ambos ficam no reino dos mortos, no Hades. Dessa forma, apesar de a mitologia bíblica haver bebido da fonte da mitologia antiga, há algumas contradições importantes… O exegeta bíblico poderá dizer que o cristianismo é uma espécie de refinamento das ideias pagãs anteriores, mas será que isto se sustenta?

Por “refinamento”, quero dizer “interpretação mais espiritualmente aprofundada”. Porém, ocorre que, apesar de tanto a mitologia bíblica quanto a grega concordarem que os mortos são julgados pelas suas obras, o julgamento do deus bíblico me parece mais autoritário e implacável. Dependendo da interpretação, mesmo um ladrão de galinhas pode ser condenado ao inferno. Outro problema é a gradação de penas: na mitologia bíblica, o ladrão de galinhas e o assassino parecem destinados a receber a mesma pena (arder eternamente num lago de fogo); na mitologia pagã, pelo contrário, as penas são dadas de acordo com as faltas, como ocorre num tribunal de justiça terrena. Eu, sinceramente, não vejo refinamento algum nesta exegese bíblica.

Há, em todo caso, uma primeira questão infernal que se aplica ao inferno bíblico: Os bons, aqueles que chegarão ao céu, não ficariam tristes por saber que boa parte de seus familiares e amigos estarão condenados a arder num lago de fogo por toda a eternidade?

Ora, segundo a mitologia grega, no Hades os julgamentos ocorrem após a morte, e não após um juízo final. Ainda assim, a questão persiste… Mas no caso pagão, há muitas interpretações alternativas que dizem que o condenado ao Tártaro pode eventualmente cumprir sua pena e assim se elevar aos Elíseos; Ainda outras teorias, mais antigas, simplesmente afirmam que após o cumprimento da pena no Tártaro o condenado estaria apto a reencarnar na terra. Enfim, no paganismo não haviam dogmas infalíveis, e os mitos eram constantemente reinterpretados.

Mas no mito bíblico nada disso ocorre. Há um julgamento final, e depois cada grupo irá para o seu canto, por toda a eternidade… Ora, de fato, ainda que o inferno cristão não fosse um local de sofrimento eterno, o simples fato de familiares e amigos serem separados pela eternidade inteira seria um motivo de sofrimento… Eterno?

Como se não bastasse esta, há uma segunda questão infernal ainda mais complexa. Segundo a bíblia, o governante do inferno é um anjo que, por haver se corrompido e escolhido o caminho do mal, tornou-se ele próprio o supremo representante do mal – o anjo caído. Eis a questão: Seria este anjo incapaz de arrepender-se, por toda a eternidade? Um anjo, quando cai, e se corrompe, não tem nenhuma, nenhuma oportunidade de se arrepender, de remediar sua situação? Haveria justiça divina nesta ideia?

Se não houvesse o livre-arbítrio, todos seríamos fantoches nas mãos de Deus. Portanto, é preciso a liberdade para que um ser exista enquanto ser, e não enquanto autômato [2]. Dessa forma, se o anjo caído, Lúcifer, não tiver a liberdade para decidir se arrepender, isto significa que ele é mero fantoche nas mãos do deus bíblico – o que equivale a dizer que tudo o que Lúcifer faz seria, no fundo, decidido pelo Mestre dos Fantoches. Eu não sei quanto a vocês, mas acho esta uma ideia absurda.

O exegeta bíblico poderá responder a tais questões infernais de forma superficial, quem sabe: (a) Ao chegar no céu, Deus apaga da memória dos escolhidos todas as lembranças daqueles que foram para o inferno, e dessa forma não sentirão saudades nem sofrerão pelo que ocorre a eles; e (b) Lúcifer simplesmente não se arrependeu, e talvez jamais se arrependa, por isso ainda existe o mal no mundo. Pois bem, vocês acham, honestamente, que tais respostas vagas resolvem essas questões?

Os pensadores contemporâneos têm concepções bem mais profundas e interessantes do mito do céu e inferno. Sejam cristãos, não cristãos, agnósticos, existencialistas, espiritualistas, estudiosos de mitologia, não importa muito, pois este é um mito que toca a humanidade inteira [3]: Não poderíamos interpretar o céu e o inferno como estados da consciência humana?

Seguindo esta bela reflexão, devemos considerar que cada um constrói o seu próprio céu e inferno em sua própria consciência. Portanto, aquele que encontrou Deus dentro de si [4], mesmo no deserto mais árido e seco, estará ainda num Oceano de Amor em sua própria consciência, dentro da alma, que carrega consigo para todo lugar.

E, assim, chegando neste céu, não titubeará nem por um segundo em descer ao inferno [5] para convidar quem lá está a se aventurar neste vasto Oceano. A questão, no entanto, é que apenas um convite não basta: é preciso mergulhar. Somente o ser em si poderá decidir por abandonar os dogmas antigos, e dar este verdadeiro salto de fé no desconhecido, na imensidão da própria alma… Então, quem sabe, alcance o céu. Então, quem sabe, seja salvo – salvo da ignorância.

Mergulhe suave. Os mensageiros orientam!

***

[1] Os juízes não são deuses e sim mortos que devido à sua forte personalidade e seu senso de justiça tornaram-se juízes. Em algumas versões Hades seria o presidente do tribunal dos mortos.

[2] Fôssemos criados “já perfeitos”, não somente não haveria mérito algum de nossa parte em “sermos perfeitos”, como na prática seríamos autômatos, robôs “programados para a perfeição” por algum deus estranho. Isto é, seja lá o que for esta “perfeição”…

[3] A concepção de alguns ditos cristãos que afirma que somente aqueles que aceitam Nosso Senhor Jesus Cristo serão salvos é tão absurda que nem a incluí neste artigo. Para início de conversa, isto seria condenar todos que viveram antes do Cristo, e todos que jamais ouviram falar do Cristo, automaticamente ao inferno. Isto dá um montão de inocentes condenados!

[4] Ou “o amor”, ou “a iluminação”, ou “a vida”, ou “o Cosmos”, ou “o Verdadeiro Eu”, etc.

[5] Como Sartre já disse: “o inferno são os outros”.

Crédito da imagem: John Springer Collection/CORBIS (cena do filme Dante’s Inferno)

 

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.

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Respostas de 26

  1. Rafael, outro belo texto muito explicativo!
    Fui criada na ICAR, confesso que naquela época eu nunca me senti bem participando de missas e todo aquele conhecimento sendo passado. Muitas dessas dúvidas infomadas no texto também eram as minhas, e não foram respondidas com a profundidade que minha alma necessita para que possa transformar a palavra em informação útil. Hoje, depois de anos estudando não tão afundo as mitologias, percebo o quão fantoche esse deus bíblico quer que sejamos (quando falo deus bíblico, me refiro as igrejas na maioria).
    O que me encanta nas mais diversas mitologias é essa proximidade com a natureza humana que os deuses carregam em si; defeitos e qualidades coexistindo e tentando lembrar a todos nós que no fundo, somos esses deuses!
    Obrigada por compartilhar o conhecimento conosco! 🙂

    @raph – “Os símbolos da mitologia dizem respeito a você… Você renasceu? Você morreu para sua natureza animal e voltou à vida como uma encarnação humana? Na sua mais profunda identidade, você é Deus. Você é um com o ser transcendental” (Joseph Campbell)

    Foi o que Jesus conseguiu, ser um com o Pai… E foi também ele quem nos disse que somos deuses, e que dia faremos tudo o que ele fez, e ainda muito mais.

    Liberdade, liberdade… Devemos romper a represa do dogma.
    Um pensamento de cada vez!

  2. Samael aun weor tem teorias que botam mais medo sobre o inferno do que a igreja católica e outras. Deveriam pegar umas idéias com ele, hue.

  3. Ora, segundo a mitologia grega, no Hades os julgamentos ocorrem após a morte, e não após um juízo final.
    Para o catecismo da igreja católica também!

    Se não houvesse o livre-arbítrio, todos seríamos fantoches nas mãos de Deus
    Bom, mas há o livre-arbítrio. Quem o nega?

    Ao chegar no céu, Deus apaga da memória dos escolhidos todas as lembranças daqueles que foram para o inferno, e dessa forma não sentirão saudades nem sofrerão pelo que ocorre a eles;
    Qual seita cristã tem essa doutrina? De novo, no catecismo católico isso não ocorre.

    O tema interessante e gostei do texto. No entanto, como há várias vertentes cristãs o autor fez uma salada mista. Recomendo que identifique qual seita se trata. Por exemplo, se for para fazer uma crônica dos preceitos católicos, recomendo que leio o catecismo primeiro.

    @raph – Realmente o conceito de Purgatório, ainda corrente no catolicismo, evita uma série de problemas lógicos expostos acima. Mas não todos… A começar pelo mais grave deles: que possa existir um ser condenado a ser mal por toda a eternidade, sem poder se arrepender. Isto também vai contra o livre-arbítrio.

    1. Raph, a minha formação religiosa é católica, e eu venho complicar mais um pouquinho ainda a situação. No meu caso, me foi ensinado que Lúcifer (nesse sentido mais mitológico de criatura e adversário dos homens) não foi condenado eternamente a ser mal, mas sim que foi condenado por se portar (quase que) eternamente de maneira má. Então, há sim uma escolha por parte desse Lúcifer.
      Aliás, quando pequeno, também aprendi que a história de Lúcifer deveria ser entendida, principalmente, como uma lição contra o orgulho, o que não significava que o mal não existia, o que por sua vez também não significava que ele necessariamente seria personalizado.
      No final das contas, há católicos e católicos e, paradoxalmente, há Igreja Católica e Igreja Católica, e mesmo assim, nunca vi ninguém se sentir menos ou mais católico em decorrência do modo como entendia esse assunto.
      Um abraço.

      @raph – Eu entendo. Como eu disse: a concepção católica evita uma série de problemas lógicos… E, se formos considerar a história de Lúcifer apenas uma metáfora para o orgulho humano, está ótimo: é como Adão e Eva, que deixaram de ser “imortais” simplesmente porque se tornaram cientes da própria mortalidade, na medida em que se tornaram cientes de si próprios (coisa que a maior parte dos animais, senão todos, é incapaz… um animal, não sabendo que irá morrer, é dessa forma “imortal”). Ou seja: as metáforas elevam, os dogmas represam.

      Claro que Lúcifer escolheu ser mal, pelo menos naquela época (no mínimo há 6 mil anos, provavelmente a milhões ou bilhões deles). Mas, ainda que Lúcifer seja um ser individual com sua própria vontade e liberdade, penso que 6 mil anos é tempo mais do que suficiente para, pelo menos, abdicar do posto de “grande mestre do mal” (ou, alguns diriam, de “bode expiatório”). Ninguém pode ser tão ignorante, não por 6 mil anos, nem muito menos por bilhões de anos.

      1. ainda mais para um ser bem mais evoluido como ele deve ser, a mentalidade é coisa totalmente fora dos padrões conhecidos por nós, simples e ignorantes…. Existem coisas q não nós foram revelados por q não compreenderiamos, creio q o mito Lucifer é um deles….

  4. Excelente texto Raph!

    realmente não faz o menor sentido em pensar que Deus vai “condenar” eternamente alguém, isso não seria amor.
    Concordo qndo diz que tanto o céu como o inferno são estados de consciência e não algo literal.

    um abraço!

    @raph – Valeu 🙂

    Devemos considerar que “se o Todo é mental”, então um estado de consciência muitas vezes é, literalmente, algo real.

  5. Rafael,
    De todos os teus textos, acho que este é o que eu mais gostei.

    Parabéns cara, conseguiu explicar bem o que eu me esforço para por em palavras.

    @raph – Que bom! É importante não deixar o rio da mitologia e da religião represar… Represados pelo dogma, jamais chegaremos ao Oceano. Abs.

  6. O Todo mental…até que sim.
    A pedra filosofal é fazer a imaginação/mental tornar-se vida…se materializar. Isto conseguimos com “evocação cega”.

    @raph – Apenas nós temos esta dificuldade de materializar o que antes foi apenas ideia (embora nem tanta dificuldade assim, considerando tudo o que já materializamos na Terra, inclusive nem sempre para o bem do equilíbrio natural), já que para Deus (ou o Todo, o Cosmos, etc) tudo está já irradiado. Seu pensamento é a própria Criação. Por isso também se diz que fomos criados a sua imagem e semelhança…

    1. Tanto que temos a espiritualidade prática para nossa ascensão. O grande desafio é fazer isso enquanto vivo, ser um deus encarnado.
      Materializar coisas que não eram reais a serem reais, usando a imaginação vivente.
      Adeptos de evocação e também os que conseguiram visitar o Lago de fogo dos gurus ou passar pelo abismo e subir acima dele revivido como um deus vão ser dos grupos de humanos que ganharam este poder. Agora o tempo que vai levar para o objeto ou objetivo ser ganho pelo operador … depende do poder de cada um.

      O ser humano tem potencial incrível, podemos observar isto nas tradições e sistemas mágickos africanos.

      @raph – Algumas das tradições mais antigas que nos chegaram ao conhecimento…

      Belo post.

      @raph – Valeu 🙂

  7. O interessante que cristo era e se não me engano morreu judeu, é estranho a mudança da concepção de Gehinom, que eu acho muito boa aliás, para uma de inferno eterno…aonde você ficaria a brincar de roda com Deus e logo abaixo seus irmão a sofrer no inferno.

  8. Meu Irmão, valeu! Belo Texto! Sou Gnóstico e, em nossos estudos, são inseridos parte dos conceitos por vc elencados (até aqui!). O que vc me diria do “Inferno de Dante Aliguieri” e a sua co-relação com os nove planetas (lua, mercúrio, vênus, sol, marte, júpiter, saturno, urano e netuno)? O que dizer do “inferno amarelo dos chineses? O que dizer do “inferno de gelo” dos Nórdicos?… Aguardo Vosso contatato! T:.F:.A:.

    @raph – Oi Zanelatto. Obrigado pelo elogio, mas no que consta estes assuntos que mencionou, não possuo conhecimento suficiente sobre eles para dar uma resposta elaborada. Recomendo perguntar ao Marcelo Del Debbio… Menos sobre o inferno chinês, neste caso recomendo o blog Magia Oriental: http://aoikuwan.com/?s=inferno Abs 🙂

  9. “E, assim, chegando neste céu, não titubeará nem por um segundo em descer ao inferno [5] para convidar quem lá está a se aventurar neste vasto Oceano.”
    __
    É complicado encarar a miséria intelectual todos os dias, pessoas que estão programadas por pastores e padres, e, por preguiça, vão continuar assim até morte, mas pior ainda é quem destrói por satisfação….
    Eu sinceramente nem tento e, quando tentam me programar, faço cara de quem está aceitando tudo.
    Não sei de onde vocês tiram forças para escrever nesses blogs.

    @raph – Acredito que quem já viu o Céu, ainda que de relance, jamais desistirá de tentar trazê-lo a realidade. Não há linguagem capaz de descrever a beleza do Infinito… O Reino está a nossa volta, e não vemos. É preciso criar olhos de ver.

    Um pensamento de cada vez…

  10. Sobre a palavra inferno e seu significado a confusão que se vê hoje se deve a duas razões principais:
    1º- O processo cognitivo entre comunicador e audiência no passado(Jesus, apóstolos x judeus, gregos, romanos) e o mesmo processo com público posterior sob as lentes de outros contextos culturais. As palavras e ideias que foram apresentadas aos expectadores do passado eram facilmente entendidas, visto que o termos eram comuns ao público e o processo de cognição dependendo da relevância era facilmente compreendido ou otimizada. Já o publico posterior, especialmente dos tempos posteriores a Jerônimo (tradutor da Vulgata Latina) possui grandes lacunas para processar a mensagem de forma ótima.
    A melhor ferramenta para o público atual é estudar o fundo histórico da época e os estudos linguísticos contextualizados. Isto quer dizer que é válido estudar o uso das palavras na Idade Média, nos períodos clássicos, mas melhor ainda e avaliar como os judeus, por exemplo, usavam o idioma grego nos tempos apostólicos.
    Neste caso, específico percebo que as pessoas se apegam muito aos termos do latim. Mas nos tempos de Jesus tanto os romanos bem como os seus dominados usavam mais o idioma grego. O grego e o hebraico são as chaves para os estudos linguísticos sobre a época. O latim é coadjuvante neste processo, visto que só apareceu no contexto cristão muito posteriormente ao período apostólico por meio de Jerônimo, como já comentei.
    2º – A tradução e a dominação da Igreja
    Entre o IV e o V século o erudito Jerônimo(Eusebius Hieronymus) traduziu os textos das Escrituras Hebraicas e das Escrituras Gregas Cristãs para o latim. Ele sabiamente preservou a palavra hebraica geena e não traduziu por inferno como os tradutores posteriores e os da atualidade.
    .
    Exemplo:
    Jos 18:16 descenditque in partem montis qui respicit vallem filiorum Ennom et est contra septentrionalem plagam in extrema parte vallis Rafaim descenditque Gehennom id est vallis Ennom iuxta latus Iebusei ad austrum et pervenit ad fontem Rogel
    Mat 5:22 ego autem dico vobis quia omnis qui irascitur fratri suo reus erit iudicio qui autem dixerit fratri suo racha reus erit concilio qui autem dixerit fatue reus erit gehennae ignis
    .
    Agora notem a incoerências desta tradução do seculo XVII, a mais venerada pelos evangélicos:
    .
    Jos 18:16 desce à extremidade do monte que está fronteiro ao vale de Ben-Hinom, que está no vale dos refains, para o norte; também desce ao vale de Hinom da banda dos jebuseus para o sul; e desce ainda até En-Rogel;
    .
    Mat 5:22 Eu, porém, vos digo que todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e quem disser a seu irmão: Raca, será réu diante do sinédrio; e quem lhe disser: Tolo, será réu do fogo do inferno. (Tradução de João Ferreira de Almeida)
    .
    Se você ainda não entendeu, eu vou ajudar: Os Jebuseus foram os primeiros habitantes de Jerusalém, posteriormente tomada pelos judeus. Vale do Hinom ou geena em grego, e gee hin-nom (???) em hebraico signfica um lugar literal. Qualquer bom dicionário grego e hebraico explicam isso. O dicionário de Strong explica: “um vale (ravina profunda e estreita) com laterais rochosas e íngremes localizado a sudoeste de Jerusalém, separando o Monte Sião ao norte do ’monte do mau conselho’ e do planalto rochoso inclinado da ’planície dos Refains’ ao sul ”
    .
    Os tradutores modernos traduziram geena, hades(seol-hebraico) e tártaro pela mesma palavra INFERNO, o que gera uma enorme confusão quanto a interpretação.
    Geena era um lugar literal fora dos portões de Jerusalém onde segundo Josefo eram colocados restos, o lixo de jerusalém, e os corpos de pessoas julgadas e consideradas indignas de um enterro honroso, para serem queimados.
    Jesus, possivelmente, usou este lugar como exemplo(parábola) para explicar que os ‘ímpios’ não teríam esperança quanto a prometida ressurreição(os judeus e cristãos primitivos não acreditavam em imortalidade da alma, isto se integrou a cultura cristã por meio de Platão quando os primeiros padres integraram este ensino, alguns grupos de judeus (fariseus e outros) acreditavam numa futura ressurreição(Atos 24:15) . Isto é fácil de compreender quando consideramos vários textos como o de apocalipse : Apo 20:14 et inferus# et mors missi sunt in stagnum ignis haec mors secunda est stagnum ignis
    .
    Apo 20:14 E a morte e o hades# foram lançados no lago de fogo. Esta é a segunda morte, o lago de fogo.
    Ats 2:27 quoniam non derelinques animam meam in inferno# neque dabis Sanctum tuum videre corruptionem
    Ats 2:27 pois não deixarás a minha alma no hades#, nem permitirás que o teu Santo veja a corrupção;
    Há várias contradições quando consideramos estes textos a base das interpretações católicas e evangélicas. Por exemplo:
    .
    Se o inferno ou hades é um lugar de tormento em fogo, como o texto de Apocalipse pode afirmar que o hades ou inferno serão lançadas no lago de fogo?
    .
    Se hades e inferno são lugares de tormento, por quê o apóstolo Pedro em Atos 2:27 explica que Jesus, quando morreu, estevo por três dias no hades, ou inferno?
    .
    Hades, possivelmente era entendida como uma região espiritual de inatividade ou dormência. Já a geena talvez fosse uma morte eterna, final, sem esperança de volta. Quanto ao tártaro a bíblia explica como sendo uma condição dos espíritos(anjos) em escuridão(fora da luz de Deus).
    Esta é uma breve consideração sobre este assunto. Fiz vários trabalhos acadêmicos sobre este assunto. Obviamente, não posso afirmar nenhuma das considerações postas nesta consideração. Pessoalmente, quanto a questão do inferno de fogo, não tenho qualquer temor. Porque para mim o inferno simplesmente não existe.

    @raph – Uma contribuição extraordinária. Acredito que, independente da crença ou descrença de cada um, todos tem muito a refletir acerca do que foi exposto acima…

    Tonon, muito obrigado por compartilhar este conhecimento.

    1. Mais um adendo: Na doutrina da Igreja Católica temos uma tradução que inclusive é usado no Credo. Hades que Jesus desce é chamado de mansão dos mortos.

      “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra. E em Jesus Cristo, seu único Filho Nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria , padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu a MANSÃO DOS MORTOS (hades), ressucitou ao terceiro dia, subiu aos Céus, está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, donde há de vir a julgar os vivos e mortos. Creio no Espírito Santo. Na Santa Igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém.”

      Há uma clara distinção entre o inferno onde vão as almas que não arrependam dos seus pecados e o Hades ou Mansão dos Mortos, onde Jesus desceu para levar a salvação a aqueles que vieram antes dele.

      @raph – Isto (de se chamar de Hades) ao menos está de acordo com a mitologia: Hades sendo não o Inferno, mas uma dimensão de seres já “mortos”. Tanto que o Hades comporta tanto o Céu (Elísio) quanto o Inferno (Tártaro). Poderíamos interpretar a “descida de Jesus” como um auxílio dos pensamentos elevados, que vêm “salvar” aos seres perambulando perdidos pelo Hades (ou Tártaro), e os conduzir ao Elísio.

      “O Reino está espalhado pela Terra, e os homens não o veem”. Jesus foi um grande mensageiro…

  11. Raph muito bom o texto , mas só um adendo, o Tártaro não seria uma prisão mais profunda ainda que o Hades feita para os Titãs , e não um sinônimo de Hades já ouvi essa informação, confere?

    @raph – Oi Victor, valeu… É exatamente isso que quero dizer neste trecho:

    “Aí é que está: não saem, pois o próprio Hades é um reino com o seu céu e o seu inferno. O céu é conhecido na mitologia grega como Campos Elíseos; o inferno, como Tártaro. Ambos ficam no reino dos mortos, no Hades.”

  12. Parabéns Raph!
    Você foi preciso nas palavras. Qualquer ser “pensante”e movido por reflexão e consciência, irá chegar as fontes do teu raciocínio.
    Abaixo os dogmas!

    @raph – Eu tento quebrar represas. Mas elas são enormes e muito sólidas, então qualquer ajuda é sempre bem vinda 🙂

  13. a conclusão foi bem na linha do que entendo, que tudo é um estado de espirito, estejamos encarnados ou não….

  14. Muito bom o texto, abre idéias para cada segmento do conhecimento humano.
    o espiritismo não ….acredita num inferno ….eterno, se não me engano, e o velho….

    testamento também nos leva ao eterno, apesar do sofrimento dos profetas, e Jesus nos propõe o perdão se ele quiser…. e ….crermos. Grande abraço, obrigado…. tempo.

    1. O espiritismo não cita inferno como lugar fixo e imutavel, vc faz seu proprio inferno e sai dele quando bem entender, mas esse entender seria entender sua condição, aceita-la e querer muda-la para o seu próprio bem, sempre seguindo na moral do senhor Jesus Cristo.

  15. Inferno. Inferus.
    Também está relacionado com Atlântida-Agharta.
    A luta entre “Bestas”, Homens e Deuses.
    Lúcifer é o agente secreto de “Deus” que faz a oposição estratégica, forçando o “Fiat Lux” das consciências.

    @raph – É uma outra opção, que Lúcifer seja um grande ator fazendo o papel que lhe foi dado pelo Diretor do Espetáculo…

  16. Sei lá, as vezes me parece que nenhum castigo seja pior do que a não-existência, apagar como uma chama, deixar de existir… Mas talvez seja só um desejo e apego extremo do meu ego.

    @raph – Somente o ego teme a não-existência, pois o que existe sabe que existirá sempre. Ex nihilo nihil fit.

  17. Uau, que texto! Virei seu fã, muito obrigado por escrever!

    Uma grande dúvida que tenho é com relação a Lucifer…
    Lendo alguns textos do MDD levei a crer que ele foi criado para demonizar os deuses de outras religiões, talvez seja apenas a imagem então..
    Se ele realmente existe e caiu… qual será a “situação” dele no momento? Seu comentário sobre a ignorância durar 6 mil anos ou milhões ou bilhões me deixou muito curioso para saber mais a respeito.

    Novamente, parabéns pelo texto.
    Já iniciei uma busca por outros textos seu.

    @raph – Então, penso eu que o “aspecto monstruoso” da divindade é tão somente uma visão do ego sobre a divindade. Quando estamos reconectados com o nosso Verdadeiro Eu, o monstro é vencido ou, tanto melhor, torna-se nosso amigo:

    Renascemos numa nova vida e num novo mundo, que é basicamente uma nova visão do mundo em que já estávamos; mas em que vivíamos, conforme diria Fernando Pessoa, como “cadáveres adiados”. Agora despertamos, agora o Diabo não nos mete mais medo – pois que dominamos nosso lado animal, e não somos mais arrastados por nossas paixões, muito embora saibamos que elas continuarão lá, e que não merecem ser condenadas as trevas.

    “Em nome de Deus” muitos ditos religiosos realizaram as maiores atrocidades contra outros seres humanos, animais, e a Natureza em geral. Mas aquele que despertou não fala mais “em nome de Deus” – ele está em Deus, e cala. Sua sabedoria se dá pelo seu exemplo, não pelo seu discurso.

    O Cristo não fundou o cristianismo. Ele apenas amou – o Diabo foi vencido pelo Amor. Agora, são bons amigos…

  18. Gostei do post, lembrei de um frase de Milton:

    “A mente não deve ser modificada pelo tempo e pelo lugar. A mente é o seu próprio lugar e, dentro de si, pode fazer um inferno do céu e do céu um inferno.”

    E de um conto sobre um monge ensinando a um samurai sobre céu e inferno.

    @raph – Exato, talvez tenha sido quem primeiro chegou a tal conclusão, ou pelo menos quem mais influenciou os que vieram após dele, acerca desse assunto em específico. Trata-se de um pensamento extraordinário para a época, e que ainda hoje é, de certa forma, “revolucionário”.

  19. Muito bom o texto. Geralmente as traduções bíblicas não deixam claro as múltiplas vertentes dos seus textos originais, a passagem do hebraico para o grego e posteriormente para o latim causou muitos condicionamentos quanto ás interpretações bíblicas. Sheol, Gehena, Hades e Inferno são conceitos bem diferentes, desenvolvidos em épocas e culturas diferentes, mas infelizmente por conta da falta de senso crítico quanto á leitura bíblica, muitas pessoas deixam se levar por uma interpretação pré-estabelecida, tendenciosas e cheias de dicotomia, ditadas por alguns clérigos comerciantes.

    Da mesma maneira, é um equívoco atribuir Lúcifer, a serpente e Satã como a mesma figura entre o velho e novo testamento. Apesar dos sincretismos entre ambos, não há menções claras de que a serpente que ofereceu o fruto do conhecimento é tanto o anjo rebelde (que como referência á estrela da manhã, é parte de um imaginário compartilhado por outras culturas muito distintas, distantes e anteriores aos hebreus) ou o suposto inimigo de deus jogado sob o abismo. Creio que não só o nebuloso período da formação da igreja romana, mas também os períodos que se sucederam, destruíram potenciais fontes de conhecimento bíblico através de interpretações erradas. A junção de velho e novo testamento, não presente por exemplo na Septuaginta, da mesma maneira acabou por condicionar vários fiéis a uma leitura acrítica, como se as mesmas fontes da literatura hebraica tivessem sido as fontes da literatura proto-cristã.

    Muito das posições dogmáticas e cosmológicas, do que era a metafísica oficial do cristianismo, provém do gnosticismo dos primeiros séculos depois de Cristo.

    Quanto á tradição do inferno como um lugar punitivo que há de se revelar no julgamento final, essa tradição escatológica não é proveniente do Zoroastrianismo atestado no Avesta? A menção do Frashokereti antecede o apocalipse em séculos, e tem muitas semelhanças sincréticas, principalmente no dualismo cosmológico presente entre as duas religiões. A diferença é que os Zoroastrianistas acreditam que Ahura Mazda há de ser onipotente somente quando seu arqui-inimigo for derrotado, como uma plausível explicação do porquê o mal existir e Ahura Mazda não destruí-lo de uma vez por todas.

    @raph – Pois é, o zoroastrismo influenciou tanto o gnosticismo quanto o cristianismo, embora a grande maioria dos cristãos provavelmente nem saiba o que diabos é zoroastrismo… http://pt.wikipedia.org/wiki/Zoroastrismo

    O deus bíblico, por outro lado, tem o mal sob sua própria manipulação e permissão.

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