Quem chora pelos demônios?

» Parte 1 da série “Todas as guerras do mundo”

Guerra é um confronto sujeito a interesses da disputa entre dois ou mais grupos distintos de seres, que se valem da violência para tentar derrotar o adversário.

Columbine sempre fora um local pacato. Situada em Colorado, nos EUA, a escola sempre teve um dos índices mais elevados do país na aceitação de seus alunos em universidades, com cerca de 82%. Columbine também se orgulhava de não registrar casos de violência. O policial de plantão se limitava a multar alunos que estacionavam os carros nas vagas destinadas a professores. A escola também era famosa por ser conservadora e privilegiar aos atletas, que defendiam os times da própria instituição. Foi esse o provável estopim da tragédia…

Em Abril de 1999, dois alunos que se sentiam excluídos dos outros grupos, particularmente por não serem atletas e nem muito dados ao convívio social, entraram armados até os dentes em Columbine, e atiraram em quem viram pela frente, matando 13 e ferindo 21, dentre professores, alunos e funcionários. Quando a polícia chegou, os jovens assassinos atiraram contra as próprias cabeças, morrendo imediatamente. Deixaram uma nota, encontrada perto dos corpos, que dizia: “Não culpem mais ninguém por nossos atos. É assim que queremos partir”.

Mas não era apenas um suicídio, e sim um verdadeiro ato de terror. A mídia na época procurou analisar minuciosamente a vida dos dois jovens, na tentativa de encontrar uma possível motivação para ato tão brutal… Como não era conveniente culpar as grandes indústrias do entretenimento, na época a maior parte da “culpa” caiu no colo da indústria dos videogames que, há mais de uma década atrás, não tinha a força política e econômica de que dispõe hoje. Os assassinos de Columbine eram assíduos jogadores de Doom, um dos primeiros games de tiro com visão em primeira pessoa e cenários 3D.

Em Doom, o personagem controlado pelo jogador é um fuzileiro espacial de um mundo futurista fictício. Ele é deportado da Terra para Marte quando se recusa a atirar em civis desarmados (ordem de um oficial superior). Para seu infortúnio, em Marte uma experiência militar secreta dá errado, e abre uma espécie de “portal para o Inferno”, de onde saem demônios e zumbis, que precisam ser dizimados pelo jogador. O jogo foi muito criticado pelos conservadores por exibir muito sangue (apesar de ser o sangue dos demônios) e muitas “imagens satânicas” (afinal, eram demônios ora essa). O fato de o personagem estar agindo heroicamente para proteger a Terra e, principalmente, o fato de ele estar nessa situação exatamente por ter se recusado a atirar em civis desarmados, é sumariamente ignorado pelos críticos conservadores. Doom foi o primeiro bode expiatório que a sociedade americana encontrou para “explicar” o massacre em Columbine.

Mesmo após Doom, muitos outros games similares sofreram a acusação de incitar a violência nos jovens, incluindo outros baseados nas guerras modernas, onde os inimigos não eram demônios, mas membros de um exército inimigo… Com o tempo, as acusações foram “esfriando”, até que se soube que o próprio exército dos EUA via com muito interesse o impacto que tais games provocavam nos jovens.

Com o alistamento caindo ano após ano, o exército americano precisava de um chamariz que pudesse realmente “seduzir” os jovens. Assim foi criado o America’s Army, um jogo inteiramente gratuito onde todo o treinamento militar americano é simulado, até que os jogadores são aprovados no “exército virtual”, e podem então realizar missões militares pelo mundo afora, numa simulação de guerra que privilegia a estratégia, o trabalho em equipe, e que é elogiada por seu realismo. Interessante como, após o lançamento do America’s Army, os produtores de games de guerra passaram de personas não gratas para grandes colaboradores da tecnologia de treinamento e alistamento militar.

Ao contrário de Doom, no entanto, games como o America’s Army, Full Spectrum Warrior e outros, apesar de agora serem reconhecidos como “algo sério” pela sociedade americana, tem um grande problema, ironicamente ignorado pelos conservadores: neles os inimigos são soldados, pessoas como nós, seres humanos, e não demônios ou zumbis. Para um jovem americano, pode ser entusiasmante jogar uma simulação da guerra no Iraque. Para um jovem israelense, pode ser incrível simular um conflito com palestinos terroristas… Mas, para os jovens palestinos, iraquianos, ou árabes, nem tanto.

Dizem os generais que a guerra não tem nada de bonito há não ser a vitória. Eles talvez estejam errados: na guerra, nem a vitória é bonita. Ainda assim, segundo o psicólogo Steven Pinker, “provavelmente vivemos na época mais pacífica da existência de nossa espécie” — mesmo que, “confrontados com intermináveis notícias sobre guerra, crimes e terrorismo, pudéssemos facilmente pensar que vivemos na era mais violenta jamais vista”. Em seu livro Os melhores anjos de nossa natureza, Pinker defende a tese de que, grosso modo, a violência tem diminuído muito no mundo civilizado, ao menos se formos considerar números relativos, e não absolutos. E ele provavelmente tem toda razão, se hoje vivemos alarmados com a violência, é muito mais pela atenção que a mídia dá a ela, do que por ela estar realmente crescendo. Entretanto, mesmo Pinker concorda: é exatamente na guerra que a moral humana é subitamente reprimida, e os ecos da nossa animalidade, nossa propensão à barbárie, retornam com toda a força. Mas, como acabar com a guerra? Seria com a educação?

Pode até ser, mas vai depender de que tipo de educação que estamos falando, e da real atenção que queremos dar a ela. Os gastos militares do exército dos EUA, por exemplo, são exorbitantes (de longe o maior do mundo), e superam em muito não só o investimento em educação, como em saúde, em ciência, e em quase tudo o mais somado. Ainda assim, lado a lado com alguns países do Oriente Médio, como Omã, Iraque e Israel, os gastos militares americanos, numa comparação percentual com o PIB (Produto Interno Bruto), não mais figuram entre os primeiros da lista. Em todo caso, o gasto com a indústria bélica é muito elevado no mundo todo, principalmente se considerarmos que ainda temos milhões de miseráveis, e um clima global cada vez mais instável para tomarmos conta…

Se parte do gasto do exército dos EUA vai para produzir games de simulação como o America’s Army, porque não investir também em games ainda mais educativos, que simulem estratégias de paz, e não de guerra? No game Peacemaker (Pacificador), cabe ao jogador escolher jogar como o Primeiro Ministro de Israel, ou a Autoridade Palestina. Neste jogo muito elogiado pela crítica especializada, o objetivo da simulação é chegar a um tratado de paz duradouro entre Isreal e a Palestina, e, ao contrário de tantos outros jogos, chegar a uma situação de guerra significa perder o jogo, e não ganhar – independente do resultado final da guerra. Para os jovens que desenvolveram esse game como um projeto numa universidade americana, tendo sido lançado comercialmente em 2007, apenas a paz é bela, apenas a paz indica que o jogo foi vencido.

Em tantos e tantos games de simulação de guerra, os “demônios” a serem mortos estão sempre do outro lado, na nação inimiga. Mas, e quem chora pelos demônios? Os palestinos choram pelos seus mortos da mesma maneira que os israelenses. Quando são atingidos por balas, sangram da mesma maneira, e até mesmo o sangue é da mesma cor… Talvez os assassinos de Columbine tenham se espelhado mais nos senhores da guerra, nos ditadores de ideologias falsas que pretendem nos fazer crer que existem seres “do outro lado”, inimigos, que não são como nós, que não pensam como nós, que não sangram ou sofrem como nós, e que merecem morrer como demônios, pois é mais fácil pegar um fuzil e matar do que negociar acordos e tratados de paz.

Infelizmente (ou felizmente) os demônios de Doom nunca existiram. Em todas as guerras do mundo, nunca existiu um único inimigo que não fosse humano, que não tivesse alma, como nós temos. Talvez o exército dos EUA esteja investindo nas ideias erradas: precisamos de gente criativa e pacífica, como os criadores de Peacemaker, e não de jovens sedentos por atirar em demônios… Afinal, é capaz de eles um dia acreditarem, como os generais acreditam, que a vitória é bela, e que os demônios da nação vizinha são realmente demônios.

» Na próxima parte, o mito das nações…

***

Crédito das imagens: [topo] Divulgação (Doom); [ao longo] Divulgação (America’s Army); Divulgação (criadores do game Peacemaker)

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.

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Respostas de 13

  1. você poderia ressaltar que a queda no alistamento pode ser causada pela pacificação dos novos tempos, e que talvez esses mesmos jogos de guerra sejam em parte responsáveis por essa pacificação…

    afinal, nada melhor que descarregar as energias engativas com uma metralhadora virtual

  2. Os jovens gostam de jogos de guerra, violencia, pois da a eles a oportunidade de fazer uma loucura, sair matando todo mundo por ex . Uma loucura que eles acreditam serem incapazes de realizar na vida real, estes jogos funcionam como um deposito para jogar a raiva.
    Mas nao sao todos os jovens que trazem a violencia dos jogos para o mundo real, o mundo em que eles vivem fazem com que procurem este tipo de jogo para fazer o que nao teriam coragem no mundo real .
    Acho q estou confusa, o jogo influencia os jovens ou os jovens o procuram como um escape para raiva ?? Acho que pode ser os dois :/
    Otimo texto Rafael .
    Esperando a parte 2 🙂

    @raph: Oi Laura. Então, respondendo a você e também aos outros que comentaram o assunto: o objetivo do artigo não é propriamente explicar porque os jovens (e outros nem tão jovens assim) se interessam por games de guerra e violência, mas lembrar que os temas “guerra” e “violência” não são exclusivos dos games, mas já existem nas artes, e particularmente no cinema, há tempos. Era uma crítica a tentativa de tornar os games o “bode expiatório” de qualquer tipo de ocorrência violenta envolvendo jovens e armas de fogo. E até concordo que, no caso dos games, por serem uma forma de “vivência”, há um “escape” para a raiva contida – isto é, melhor atirar em seres virtuais (demônios ou não) do que em seres reais.

  3. Olá marcelo,
    Será q vc poderia me ajudar com meus estudos? Gostaria de uma dica de uns 2 ou 3 sites tão confiáveis qto o seu pra mim poder complementar as pesquisas q tenho feito. Eu tenho encontrado alguns, mas nenhum com informações confiáveis, eles dizem coisas mt esquisitas e outros até da de salvar 1 ou 2 textos ou em sua maioria, apenas 2 ou 3 parágrafos. Gostaria dessa ajudinha, pra ter mais de uma fonte boa de pesquisas na internet, além do seu site e livros é claro.
    Desde já agradeço.

    @raph: Oi Jaque, acredito que os próprios blogs dos Colunistas sirvam de reforço. Por exemplo: Saindo da Matrix, Textos para Reflexão, Conversa entre Adeptus, Artigo 19, Magia Oriental, Música e Magia, Maçonaria e Satanismo, Ocultismo Brasil, etc. Além destes, recomendo tb o Anoitan e o Queremos Querer. Em inglês, há o sacred-texts.com. Google it all!

  4. Cara, muito legal teu texto. Tenho camaradas fissurados nessa coisa de guerras, principalmente guerras “épicas” a la Senhor dos Anéis. E eu sempre batia nessa tecla, guerra é uma coisa horrível. Mudando um pouco o assunto, você entrou um pouco também no mérito do meio ambiente. E é isso que eu queria mais ver aqui nesse site, ou até mesmo no Mayhem (que anda mortinho mortinho), o que espiritualistas e demais pensam a respeito do que o planeta pode vir a sofrer, em relação ao meio ambiente, bem como a quantidade de gente que tem nesse mundo (talvez uma possível ideia para próximos posts).

    @raph: Eu falo sobre ecologia e sustentabilidade as vezes no meu blog, mas esta série talvez lhe interesse: http://textosparareflexao.blogspot.com/2011/03/o-fogo-de-prometeu-parte-1.html Abs!

    1. Cara, muito legal teus textos. Aquele que fala sobre a floresta vermelha então, é uma coisa inédita para mim. Mas eu esperava aqui também um assunto menos nuclear (trocadilho mixuruca). Falo mais do consumismo exacerbado, de até pessoas convictas que suas Verdadeiras Vontades passam por sucesso material e coisas do tipo. Ou ainda, estudos recentes de que plantas tentam se defender dos ataques dos predadores. A visão dessa quantidade exacerbada de pessoas e o que isso pode acarretar no planeta, esses tipos de coisa, numa perspectiva mais espiritualizada. Mas é óbvio, o que eu quero, pode ser o que ninguém quer ver aqui.
      Mesmo assim, teus textos me trouxeram coisas, visões e ideias novas, e fico muito grato com isso.

      @raph: Valeu! Eu acho que vc deve gostar tb de um artigo meu, um dos primeiros da minha coluna aqui no TdC, chamado “Onde está o seu deus?”, onde falo exatamente sobre “o deus do consumo”: http://www.deldebbio.com.br/2011/06/20/onde-esta-o-seu-deus/

      Abs!

  5. Bom, não li o texto completo, mas o titulo mexeu muito comigo e me fez refletir sobre o ”certo” e o ”errado” da vida, afinal, sempre precisamos colocar alguém como vilão da história e nos esquecemos de olhar pelo ponto de vista do ”inimigo”. Esse mundo material é muito complexo, onde não existe resposta absoluta para todas as coisas, mas pelo titulo eu posso dizer que essa frase se encaixa bem no contexto

    ”Quem chora pelos inimigos/demonios? Quem chora é aquele que ama a todos como a si mesmo!”

  6. Se não me engano foi Godard que disse que é impossível transpor o horror da guerra para a tela de cinema, suponho que para outras mídias também.
    A destruição é atraente, a desgraça e a morte interessa, e através de jogos e filmes (ou livros, novelas gráficas, o que for) existe uma aproximação disto, uma ‘aproximação com afastamento’, entretanto. Falo por mim, inclusive. As guerras me são atraentes, mas sei que se trata de uma distorção do valor de ‘guerra’, tenho consciência disso.
    Fica a pergunta: o que acontece aos jovens que desconhecem onde suas ilusões começam e terminam? O que eles acham da guerra e de seus inimigos depois de derramarem sangue por causas que supostamente são suas?

  7. “Se queres a paz prepara te para a guerra” – Flavius Vegetius Renatus

    Este negócio de paz mundial daria muito certo o dia em que cada ser humano confiasse plenamente em seu irmão de espécie, no outro humano em questão. Vamos nos desarmar completamente? Qual vai ser a primeira nação a se desarmar completamente? Qual será a última?

    Os demônios, desde os primórdios, tendem a ser retratados com aspectos de animais ou predadores, ou amedrontadores. Porém não são serpentes, chacais e demais feras que são os maiores predadores dos humanos, os humanos são os maiores predadores dos humanos. E porque não dizer que os humanos são os mais temíveis dentre os demônios dos humanos?

    Sei que este papo de paz mundial é legal, é bonito, é tido como civilizado nos ultimos 50 anos, só que não. No mundo material a violência é sempre presente, com humanos não é diferente, e se voce tem boas intenções, melhor se armar ou será fadado a ser presa de quem não tem inenções tão iluminadas.

    Eu sei que é chato, eu sei que é triste, tal e tal, mas fazer o que? A realidade é esta ai!

    @raph: O objetivo desta série de artigos não é bem negar a guerra, nem instilar esperanças ilusórias de uma paz mundial a curto prazo, mas trazer uma reflexão sobre os reais motivos pelos quais todas as guerras do mundo são travadas… Inclusive as guerras da própria alma.

  8. Para mim essa história de que assistir filmes e jogar jogos violentos servem para estravasar alguma frustração do telespectador é balela. Não descarrego ódio nenhum quando assisto meus filmes favoritos, que são quase todos de fantasia ou ficção cientifica. Assisto a história para me divertir com a história. A violência no caso só entra nela para fazer a mesma andar, assim como o sexo. Talvez eu esteja exagerando, mas não gosto muito de ver discussões assim porque fica na minha mente a ideia que estão querendo transformar em um crime atos simples como assistir um filme de ação.

    @raph: Alan, acredito que a grande maioria é como você (não fosse, o mundo civilizado ainda seria uma barbárie; e, acreditem, já foi muito pior do que é hoje), mas para aqueles que realmente têm tendências violentas dentro de si, ainda é melhor estravasar jogando videogame do que nos outros… Em todo caso, o videogame não seria o “culpado” pela violência das pessoas com tendências violentas (a culpa é de tais pessoas mesmo), mas antes uma válvula de escape e até mesmo um “amenizador”.

  9. Não precisamos ir tão longe para ver essa perseguição da mídia a games e filmes “controversos”. É só lembrar do massacre do cinema em SP, se não me engano em 99 na estreia de Clube da Luta. Tanto o filme (acredito que mais pelo nome do que pelo enredo) quanto games de tiro foram massacrados pela imprensa e políticos. Chegou-se até a criarem uma lista de games banidos no país no Congresso, contendo títulos como Duke Nukem 3d, Mortal Kombat e Doom.

    Eu sou o único a achar que essa perseguição da mídia é mais destrutiva ao caso? E que gera mais loucuras assim por não diagnosticar o erro e, sim, empurrar a batata-quente pra coisas completamente alheias? Isso tudo é muito triste.

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