Para ser feliz (parte 2)

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« continuando da parte 1

Muitos certamente já tiveram a oportunidade de assistir uma partida de futebol num grande estádio, junto a milhares de pessoas. No entanto, mesmo os que não tiveram, devem ter visto pela TV como esses eventos são animados, nem que tenha sido durante uma transmissão de Copa do Mundo. Afinal, nós somos o país do futebol!

Agora imaginem uma final entre dois times de grande torcida, onde quem vencer o jogo leva o caneco. Milhares de pessoas cantando, pulando, rezando juntas para que aquela cobrança de falta entre no ângulo do goleiro, indefensável… ou, que seja isolada na arquibancada.

De fato, sob esse ponto de vista, cada lance de uma partida de futebol, cada cartão amarelo, cobrança de falta, bola na trave ou gol, irá provocar um efeito de alegria ou melancolia na medida de sua importância para o resultado final da partida, isto é, na medida em que contribuí ou não para a vitória do time para o qual estamos torcendo, seja só naquele dia, seja desde criancinha.

E, desnecessário dizer, aqueles que torcem para este ou aquele time desde a infância, que acompanham os campeonatos futebolísticos como se fossem um verdadeiro embate mitológico de semideuses, são exatamente os que irão experimentar a maior intensidade de alegria ou de melancolia em cada gol, em cada partida, em cada final de temporada…

Eu tive um professor de arte que pensava um pouco diferente o futebol em si. Ele torcia para um time, de fato, mas não se importava muito com os resultados dos jogos. O que lhe causava maravilha era a própria festa que a sua torcida fazia no estádio (e não era qualquer estádio, mas o próprio Maracanã!). Ele gostava tanto daquela sensação intensa de pura vida que sentia ali que admirava mesmo as torcidas adversárias, e encontrava beleza mesmo quando via a sua própria torcida apreensiva, por estar perdendo o jogo, ou ainda calada e chorosa, por haver acabado a partida atrás no placar.

Esse professor me ensinou muito sobre arte somente por relatar tais experiências. Em seus olhos, em sua alma, era nítido que ele havia desvelado o que estava por detrás dessas ondas de felicidade e tristeza que agitavam o mar, pois que eram sempre passageiras, e encontrado a pérola sem nome, o tesouro reservado aqueles que conseguem perceber a beleza que há em tudo.

Penso que Cecília Meireles soube resumir melhor isso que não pode ser dito:

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Talvez a grande qualidade das poetisas, dos professores de arte e das criancinhas seja exatamente esta: perceber a Arte de cada momento, e não se aventurar nessas apostas arriscadas, nesses jogos de azar que trazem uma hora alegria, outra hora tristeza. Afinal, nenhum time fica invicto para sempre…

Há muito tempo, ainda antes de Cristo, floresceu na antiga Grécia uma filosofia um tanto peculiar, o estoicismo. O que os estoicos defendiam, essencialmente, é que não valia a pena colocar nossa felicidade lá fora, pois tudo o que não depende de nossa vontade é mais ou menos como um jogo de futebol: há dias em que somos vitoriosos e felizes, é certo, mas isso só ocorre ao custo de muitos outros dias em que perdemos, e ficamos arrasados. Os sábios do pórtico sabiam que a grande riqueza da vida era a própria vida:

A filosofia não visa assegurar qualquer coisa externa ao homem. Isso seria admitir algo que está além de seu próprio objeto. Pois assim como o material do carpinteiro é a madeira, e o do estatuário é o bronze, a matéria-prima da arte de viver é a própria vida de cada um. [1]

O grande ensinamento dos estoicos, que os discípulos de um de seus maiores sábios, Epicteto, incluíram logo no início do seu Manual (um verdadeiro manual para a vida), é este que trata de delimitar o que depende e o que não depende de nossa vontade, de modo a que não nos aflijamos com o último, e busquemos sempre o primeiro:

As coisas se dividem em duas: as que dependem de nós e as que não dependem de nós. Dependem de nós o que se pensa de alguma coisa, a inclinação, o desejo, a aversão e, em uma palavra, tudo o que é obra nossa. Não dependem de nós o corpo, a posse, a opinião dos outros, as funções públicas, e, numa palavra, tudo o que não é obra nossa. O que depende de nós é, por natureza, livre, sem impedimento, sem contrariedade, enquanto o que não depende de nós é fraco, escravo, sujeito a impedimento, estranho.

É por isso que as crianças estão felizes todo o tempo quando vão assistir a uma partida de futebol num grande estádio pela primeira vez. Para elas, o resultado do jogo é o que menos importa; ante tamanha algazarra, tamanha festa de adultos que, de vez em quando, parecem mesmo se permitirem voltar a suas épocas de criança, tudo o que elas podem perceber é a essência da vida, escancarada a céu aberto.

Mas tudo isso vai até o primeiro gol, a primeira vitória ou derrota, ou mesmo aquele empate que não agradou ninguém: nesse momento elas percebem que os adultos a sua volta escolheram, apostaram num dos lados, e entraram neste jogo infindável de vitórias e derrotas, de felicidade que surge da tristeza e tristeza que surge da felicidade, pois que de fato são irmãs.

E assim, o que resta aos sábios, aos artistas, aos poetas, aos adultos que não esqueceram sua criança interior, que não nos alertar para essa imensa armadilha?

Há muita coisa que ganhamos e perdemos nesta vida: dinheiro, status social, fama, amizades, amores, doenças, tristezas, alegrias, e até mesmo partidas de futebol, mas nada disso precisa necessariamente determinar o que realmente sentimos, o que realmente somos, neste e em todos os outros momentos da vida.

Para os estoicos, a virtude era o suficiente para a felicidade, isto é, para ser feliz bastava ser virtuoso. Mas, o que eles entendiam por “virtude” era precisamente esta capacidade de saber discernir a essência do passageiro, o ser do ter, em suma, o que somos daquilo que nunca fomos.

Por força do hábito, muitos chamaram isso de “felicidade”. Mas, aquilo que vi nos olhos do meu professor de arte, ou que os pais veem no sorriso dos filhos em sua primeira vez num estádio, isso nunca teve nem nunca terá um nome.

» Na próxima parte, a verdadeira vontade…

***

[1] Epicteto, Discursos.

Crédito das imagens: [topo] Pexels.com; [ao longo] Google Image Search

 

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Respostas de 2

  1. Maluuucoo, muito bom o texto. Lindas ambas as partes até agora. Lembrou muito o que Buda pregava sobre a impermanência.

    @raph: Show, legal pq, apesar de conhecer o budismo, não escrevi me baseando nele, mais no estoicismo. Daí se trata de uma verdade perene, que paira sobre diversas grandes doutrinas da Alma 🙂

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