No Taiti, uma das belíssimas ilhas da Polinésia Francesa, Everaldo Pato está içando as velas do seu barco com a ajuda do amigo, da esposa e da filha. O cenário é deslumbrante e, logo após, o barco começa a velejar por um mar cristalino, num clima paradisíaco. Isso tudo filmado e registrado para o novo programa do Canal OFF, da TV a cabo, chamado Nalu a Bordo.
Everaldo é surfista profissional e já rodou as mais belas praias do mundo atrás da dança que o oceano faz quando encontra a praia. Como tantos outros surfistas do circuito profissional que envelhecem e têm filhos, ele poderia simplesmente voltar ao Brasil e criar Nalu, sua filhinha, de maneira convencional, numa escola erguida no seu país natal, e não numa ilha estrangeira, mas para ser feliz, para realmente ser feliz, Everaldo sabia que precisava continuar bailando com o mar pelo maior tempo possível.
Não foi da noite para o dia que o seu sonho se tornou possível. Foram anos de preparação. Nalu, a filha pequena, precisou estudar anos no Havaí para poder se adequar totalmente ao inglês, uma vez que teria de continuar seus estudos online, direto do barco. Fabiana, a esposa e cinegrafista do programa, precisou acompanhar a ambos na aventura, e abandonar as comodidades de poder viver e criar uma filha pequena numa cidade relativamente grande, abastecida de escolas, parques e shoppings…
Mas em busca dessa tal felicidade que escorre pelos dedos como a areia das praias do Taiti, eles se sacrificaram, e ninguém poderá dizer que não merecem a felicidade que conquistaram. No entanto, é até estranho de se pensar, mas mesmo velejando na Polinésia, distantes das notícias de guerras, de terrorismo, de corrupção e crises econômicas, mesmo nesse paraíso, nenhum deles parece conseguir ser inteiramente feliz todo o tempo. Claro, Everaldo mostra estar em êxtase quando desce as ondas em sua prancha, e sua mulher é a cara da felicidade quando contempla sua filha crescer, literalmente, conhecendo o mundo. Mas eles são adultos, e adultos dificilmente estão felizes todo o tempo.
Com a filha, Nalu, já não é o caso. Como tantas outras crianças que cresceram com pais amorosos e carinhosos (e não apenas as que velejam o mundo), ela parece ter chegado a este mundo com um manual de como ser feliz todo o tempo. Mas, como infelizmente sabemos, tal manual, um dia conhecido por tantos de nós, também será esquecido…
Não é que Nalu não passe por momentos de dor e tristeza, mas é que eles parecem ser raros, e bem compreendidos pelo que de fato são – algo passageiro, pois há sempre outra brincadeira mais adiante. Em As Leis, sua obra mais extensa, e que deixou inacabada, Platão nos esclarece muito bem tal questão:
Quando crianças as primeiras sensações pueris a serem experimentadas são o prazer e a dor, e é sob essa forma que a virtude e o vício surgem primeiramente na alma; mas no que concerne à sabedoria e às opiniões verdadeiras [aletheia], um ser humano será feliz se estas o alcançam mesmo na velhice, e aquele que é detentor dessas bênçãos, e de tudo que abarcam, é de fato um homem perfeito. [1]
O filósofo grego acreditava nisso que nossa intuição tenta nos mostrar todos os dias desde que aqui desembarcamos, isto é, que na experiência imaculada das crianças tanto o prazer quanto a dor são melhor discernidos do que na vida adulta, pois que, de alguma forma, a sua percepção da verdade [aletheia] ainda não foi esquecida, ocultada, perdida, como ocorre com a maior parte dos que vivem por muitos anos nesse mundo brutal que entorpece os sentidos, engana a alma, e por vezes nos faz confundir o que é dor e o que é prazer. Assim, nos perdemos do que poderia nos conduzir a virtude, ou seja, saber discernir o prazer da dor, e poder, como as crianças, optar por ser feliz todo o tempo.
Everaldo Pato não é filósofo e muito menos um homem perfeito, mas quando desce as ondas com sua tábua de resina, e baila com o próprio oceano, ele não está mais preocupado com a audiência do programa, com as notas da filha, ou com a sua conta bancária. Por breves momentos, sob o sol do Taiti, Everaldo se lembra do que é verdade: para ser feliz, basta estar no mundo, basta abrir os olhos, a alma, e dançar com o próprio momento, basta ser.
Logo depois, a onda passa, o sol se põe, e Everaldo esquece tudo de novo. E assim é com todos nós…
Segundo o filósofo Mario Sérgio Cortella, “a felicidade é uma vibração intensa, um momento em que sentimos a plenitude da vida dentro de nós, e desejamos que isto se eternize. É a capacidade de ser inundado por uma alegria imensa por um instante”, e prossegue: “Aliás, felicidade não é um estado contínuo, mas uma ocorrência eventual, sempre episódica. Você sentir a vida vibrando, seja num abraço, seja na realização de uma obra, seja numa situação em que seu time vence, ou algo que você fez deu certo, ou ouviu algo que queria ouvir, é claro que isso não tem perenidade. Ora, a felicidade marcada pela perenidade seria impossível, afinal de contas nós só temos a noção de felicidade pela sua carência. Se fosse contínua, não seria percebida. Nós só sentimos felicidade porque ela não acontece o tempo todo.”
Essa aparente contradição com o que estávamos dizendo ocorre precisamente porque estamos imersos num mundo de linguagem, que nos possibilita viver mais integrados a uma sociedade global, mas que também nos confunde, pois os termos, as palavras, os conceitos, são inteiramente incapazes de abarcar as sensações, a experiência, a verdade de se estar aqui, existindo.
Assim, se a felicidade não dura por ser o oposto da tristeza, e se o prazer não dura por ser o oposto da dor, é preciso tentarmos ir além do próprio termo, “felicidade”, descascá-lo para tentar encontrar o sentimento que reside ali, e que vive além do tempo. Por isso mesmo, quando falamos que as crianças são felizes todo o tempo, é porque elas não estão preocupadas em “serem felizes”, de fato elas não estão nem aí para a própria definição do que seja “a felicidade”. A sua alegria eternizada, o seu contentamento perene ante a vida, nasce justamente daquela antiga intuição, daquela verdade que nasceu com elas, e foi lentamente, dia a dia, sendo esquecida. Até que algum adulto veio e lhes perguntou, “Você está feliz? Você é feliz?”, e elas caíram na armadilha de tentar responder.
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Nessa pequena introdução a um tema tão simples, porém coberto por complexidade, e tão essencial, porém envolto em superficialidade, tentei transparecer de alguma forma de qual “felicidade” estamos falando aqui: uma felicidade que não é o oposto da tristeza, que não é ganha para ser perdida e nem perdida para ser ganha, mas que, de alguma forma, sempre esteve conosco, sempre esteve aqui, mais próxima de nós do que nossos olhos, pulsando tanto em nosso coração quanto junto às brisas do mar, e arrebentando nas praias de todo o mundo, neste exato momento, em todos os momentos.
E, se são somente as crianças que brincam de pega-pega por essas areias úmidas, para tentarmos descobrir o que é isso que nós adultos chamamos “felicidade”, mas que de fato não tem nome, nós teremos de tentar relembrar daquilo que sabíamos, mas que a linguagem soterrou em conceitos, e a vida adulta desmembrou em momentos distintos, nos confundindo… Para ser feliz, é necessário tentar resolver tal confusão.
» Na próxima parte, o manual para a vida…
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[1] Trecho de As Leis, Edipro, pág. 103 (tradução de Edson Bini).
Crédito das imagens: [topo] Nalu a Bordo/Canal OFF/Divulgação; [ao longo] GoPro/Divulgação
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
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