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Bran estava caindo mais depressa do que nunca. As névoas cinzentas uivavam em seu redor enquanto mergulhava para a terra, embaixo. “O que você está me fazendo?” – [Bran] perguntou ao corvo, choroso. Estou lhe ensinando a voar.
“Não posso voar!”. Está voando agora mesmo. “Estou caindo!”. Todos os voos começam com uma queda, disse o corvo. Olhe para baixo. “Tenho medo…” OLHE PARA BAIXO!
Bran olhou para baixo e sentiu as entranhas se transformarem em água. O chão corria agora em sua direção. O mundo inteiro espalhava-se por baixo dele, uma tapeçaria de brancos, marrons e verdes. Via tudo com tanta clareza que, por um momento, se esqueceu de ter medo. Conseguia ver todo o reino e toda a gente que nele havia.
[…] Agora você sabe, sussurrou o corvo ao pousar em seu ombro. Agora você sabe por que deve viver.
(Trechos das páginas 120 e 121 de A Guerra dos Tronos, de George R. R. Martin. Publicado no Brasil pela Editora Leya).
Dentre as inúmeras e intrincadas histórias contadas por George R. R. Martin em seu épico As crônicas de gelo e fogo [1], a aventura de Bran, o menino aleijado que, não obstante, parece destinado a se tornar um grande xamã, está certamente entre as de maior importância para a trama geral. Ora, a imagem da própria família de Bran, os Stark de Winterfell, já nos remete a elementos nórdicos, mas será que Martin estudou apenas as descrições de experiências xamãnicas, ou ainda neste caso podemos falar em alguma influência do mito de Odin?
Ora, como eu já havia dito, Odin é também um deus de muitos nomes, e muitas facetas. Boa parte das mais de 200 denominações a Odin estão ligadas, pela raiz (no nórdico arcaico), às palavras vada e od, e, no antigo alto alemão, a Watan e Wuot, que significavam a princípio razão, memória ou sabedoria [2]. Há ainda a palavra Óðr (também do nórdico arcaico) que está mais diretamente associada à deusa Freyja (uma deusa dos vanir, que posteriormente foi associada à Odin como sua esposa), mas que também deu origem ao próprio nome “Odin”, e que poderia significar: mente, alma, espírito, além de poesia e inspiração artística.
O nome de Odin que mais nos interessa, no entanto, para esta associação com o corvo de três olhos dos livros de Martin, é o que deriva do nórdico arcaico Hrafnáss, ou do germânico latinizado Hrafnagud, ou seja: The Raven God, O Deus Corvo. Sabemos que Odin está intimamente ligado aos corvos, tanto que possuí dois corvos muitos especiais (dos quais falarei a seguir); além disso, sabemos que um olho em meio à testa, entre nossos dois outros olhos, significa o olho da mente, o olho da alma: o sentido pelo qual o xamã percebe o mundo espiritual… Ora, o primeiro ato de iniciação de Bran [3], nos livros de Martin, é exatamente ser bicado pelo corvo bem no meio dos olhos, e na altura da testa. Logo após o garoto acorda e acha que tudo “não passou de um sonho estranho”, mas no decorrer dos livros sabemos que não foi bem assim, não é mesmo?
Huginn e Muninn
Por causa de seu voo alto, o corvo foi, muitas vezes, visto como um mensageiro dos deuses. Inúmeras histórias, de diferentes partes do mundo, falam-nos de como um corvo orientou humanos em suas jornadas. Por exemplo: segundo uma tradição, foram corvos que orientaram os beócios rumo ao lugar em que deveriam fundar uma nova cidade – a Beócia. Teriam sido eles que, também, guiaram Alexandre o Grande, até o templo de Júpiter Amon, no oásis de Siwa, no Egito (e que, lá, predisseram sua morte). O imperador japonês Jimmu, teria marchado para a guerra, no século VII, guiado por um corvo dourado. Um corvo era o mensageiro do Rei Marres, do Egito… E as histórias assim se seguem.
Mas é exatamente na mitologia nórdica que o corvo está ainda mais diretamente associado à magia. Diz-se que o voo do corvo simboliza a viagem espiritual, através do Grande Mistério, onde ela se torna igualmente desejada e perigosa, pois pode tanto trazer a iluminação quanto a loucura, dependendo do cuidado com que é realizada. Obviamente isso tudo tem a ver, claramente, com o xamanismo.
Odin possui então esses dois corvos, Huginn e Muninn, cujos nomes significam, no nórdico arcaico: pensamento (Huginn) e memória (Muninn, que também pode significar mente). Diz-se que, todos os dias, enquanto Odin cuida de seus afazeres como governante de Asgard, seus corvos sobrevoam todo o mundo e depois retornam, na calada da noite, para se empoleirar em seu ombro e lhe cochichar tudo o que virem e ouviram. Dessa forma, o Granda Xamã conseguia manter-se bem informado de todos os eventos, e todos os segredos do mundo, enquanto governava seu grande reino mítico.
Mas, o que é mais extraordinário nesta história, e o que a liga ainda mais profundamente ao xamanismo antigo, é o medo que Odin tinha de que seus corvos não retornassem de seus voos diários… Há um trecho da Edda Poética que fala exatamente dessa tal característica tão humana do deus nórdico:
Huginn e Muninn voam a cada dia
Sobre os grandes espaços de Midgard [4]
Eu temo por Huginn, que ele não consiga voltar,
Mas fico ainda mais ansioso pelo retorno de Muninn [5]
Me parece que esse é o mesmo medo de todo o xamã iniciante, de todo aquele que mergulha no Grande Mistério da própria alma, e teme se perder de seu corvo guia, e nunca mais encontrar o caminho de volta. Trata-se de uma belíssima metáfora não somente para a própria arte da magia, como para todo o risco que ela envolve… Ainda assim, Odin é o Grande Xamã, não mais habita nosso mundo (Midgard), mas o mundo espiritual (Asgard), e mesmo assim, mesmo do alto de toda sua sabedoria, ele ainda temia perder seus corvos. Mesmo um deus teme perder sua memória, e seu pensamento – sem estes, ele reduz-se a nada, ou quase nada. Um deus louco não é muito mais do que um xamã louco…
***
Através desta nossa curta, porém espiritualmente profunda, viagem pelo mito de apenas um único deus, quantos ecos ocultos de nossa história não parecem ter vido a tona…
Não tenho dúvidas de que, assim como Odin, todo grande deus, todo grande mito, um dia foi homem: um grande e feroz guerreiro, um exímio caçador cuja lança jamais errava o alvo, um xamã ancião que intercedia no mundo espiritual para proteger e guiar sua tribo ou, quem sabe, apenas mais um que contemplou as estrelas, e tornou-se um artista, um poeta. Nossos mitos mais grandiosos provavelmente são as histórias das vidas de grandes homens e mulheres, mescladas com nosso temor e fascinação pelas forças da natureza, e com os aspectos psicológicos – nossas mais belas e profundas reflexões acerca do porque, afinal, estamos aqui neste mundo.
Eis porque nós mesmos também somos da raça dos deuses, e porque todos, deuses e homens, nada mais são do que emanações da Alma do Mundo, do Grande Mistério, do Oceano que somente alguns de nós se arriscaram até hoje em mergulhar, e de lá trouxeram as mais belas e aterrorizantes interpretações daquilo de oculto que sentiram – mas que, claro, seria impossível traduzir em palavras, em linguagem cognoscível.
Interessante como iniciamos este relato de Odin através das histórias em quadrinhos, onde o mito está mais diluído, mas é exatamente um escritor de quadrinhos que nos traz, atualmente, uma das definições mais completas da grande viagem dos corvos: “Magia é arte, a arte. E essa arte, seja a escrita, a música, a escultura ou qualquer outra forma, é literalmente magia. A arte é como a magia, a ciência de manipular símbolos para operar mudanças de consciência” – define Alan Moore no genial The Mindscape of Alan Moore.
Toda a arte nasceu da mitologia. A pintura e a gravura nasceram na arte rupestre, pré-histórica, xamãnica. A música também se desenvolveu conjuntamente com os rituais religiosos ancestrais. Mesmo o teatro surgiu na Grécia antiga, quando os cultos ao deus Dionísio acabaram evoluindo para peças teatrais onde os atores, tal qual aos xamãs, vivenciavam aos mitos. Já a poesia, é pura magia posta em palavras… É exatamente por isso que a magia é a arte, a primeira arte, pois foi através dela que nossos ancestrais puderam transportar suas ideias e pensamentos, seus símbolos, para este nosso mundo de carne e osso. E o que é a mitologia senão o arcabouço simbólico de toda a nossa arte?
Sob um ponto de vista, você poderá dizer: “poxa, mas a magia é apenas isso?”; ou poderá dizer, sob outro ponto de vista: “puxa, mas então a magia é tudo isso!”. O seu ponto de vista dependerá tão somente da altura na qual seus corvos conseguem voar…
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Há muito Heimdall não ouvia aquele pio tão familiar… De fato, há muitas eras nada se mexia – animal, homem ou deus – na ponte Bifröst; de modo que seu fogo havia quase se apagado, e suas cores se mesclado num acinzentado triste. “Eram os corvos”, o antigo guardião jamais se confundiria com tais sons, ainda que fosse difícil os escutar com o ouvido decepado, mergulhado na mesma fonte em que seu Senhor havia deixado um de seus olhos.
Soerguendo-se lentamente – algo que não fazia há gerações –, Heimdall tentou soprar seu berrante, mas faltou-lhe ar nos pulmões, e as aves negras adentraram a clausura dos deuses sem serem sequer anunciadas…
Não era necessário. Asgard estava morta, e todos os seus deuses e semideuses dormiam, algo que ansiavam há muito fazer. Há muitas eras nenhum pensamento chegara até ali, nenhuma invocação, nenhum pedido de boa colheita, nem mesmo um agradecimento… O Deus Corvo e sua linhagem estavam esquecidos, como estátuas antigas em meio à paisagem, das quais ninguém mais lembrava para que serviam, ou o que representavam…
Ainda assim, enraizado em seu trono, coberto pelo denso metal de sua ainda reluzente armadura, Odin dormia por detrás de sua extensa barba, branca como a neve do inverno. Quando o primeiro corvo pousou em seu ombro, foi o medo que o fez abrir lentamente o único olho que lhe restava: “Huginn está aqui, ele voltou, finalmente! Mas, onde está o outro, onde está Muninn?”
Seu outro corvo pousou imediatamente no outro ombro, e juntos eles lhe relataram tudo o que viram e ouviram nos últimos séculos, e sobre como o povo de Midgard, apesar de tudo o que foi dito a seu respeito, ainda o respeitava. E como, ainda hoje, alguns deles ainda tocavam as pedras antigas, e ainda invocavam a magia dos corvos… Foi então que, após tantas e tantas eras, o Grande Xamã sorriu uma vez mais, despiu-se de sua couraça metálica e, apanhando a mesma antiga capa com que perambulava pelo mundo ainda antes das civilizações, pôs-se a caminhar uma vez mais. Em sua mente, ecoavam os antigos sons que as pedras faziam…
Sigur Rós – Odin’s Raven Magic (ao vivo em Reykjavík/Islândia, 2002)
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[1] Apesar de ainda incompleta, os livros já publicados da série (5 de prováveis 7, ao todo) já inspiraram uma legião de fãs, e uma excelente série de TV produzida pela HBO, canal a cabo americano. A melhor (e ao mesmo tempo pior) coisa que podemos falar de Martin é que “ele é o novo Tolkien”: melhor, pois realmente se trata de um dos grandes escritores de literatura fantástica das últimas décadas; pior, pois o seu estilo literário quase nada tem a ver com o de Tolkien, sendo bem mais ancorado na história “real” do que na mitologia em si.
[2] Mais tarde tornaram-se equivalentes a tempestuoso ou violento, sentido que os cristãos faziam empenho de acentuar, procurando depreciar a figura do deus nórdico.
[3] Em gaélico antigo a palavra “bran” significa exatamente “corvo”. Há também um gigante gaulês antigo chamado Bran o Abençoado, que em sua mitologia foi o rei de toda a Bretanha, e que também era associado à imagem do corvo. Martin provavelmente também se interessou pela mitologia celta.
[4] Na mitologia nórdica Midgard é a Terra (este mundo), portanto Odin permanecia em Asgard, mas seus corvos sobrevoavam o nosso mundo.
[5] Traduzido da interpretação (em inglês) de Benjamin Thorpe, conforme aparece na Wikipedia.
Este post originalmente foi publicado numa quarta-feira, e agora novamente…
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Crédito das imagens: [topo] Daaria (Bran e o corvo de três olhos); [ao longo] Google Image Search (Odin e seus corvos)
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
Ad infinitum
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Respostas de 7
Obrigado por compartilhar isso com todos nós !
Belíssima coletânea de textos! Senti um sabor muito gostoso de místico e real nesta coletânea. A Magia é, realmente, a mais sublime das artes, pois é a arte do real, do verdadeiro real, que traz mais cores para aquilo que sempre esteve ao nosso redor… que possamos nos inspirar em Odin, e permitir que nossos próprios corvos voem e retornem para relatar tudo que viram nesta Midgard que nos cerca…
Lindos textos. Linda poesia. Lindo vídeo. Parabéns, Rafael.
@raph – Obrigado pessoal 🙂
Que maravilhoso!
Como será que se pronuncia Huginn e Munin?
@raph – Talvez “Iuguim” e “Munim” ou “Iuguem” e “Munem”; mas alemão não é o meu forte 🙂
Incrivel como uma boa história de fantasia consegue fazer tantas citações a sabedorias e mitos antigos. Acho que todo bom escritor desse gênero deve saber muito sobre religião, folclore e mitos em geral. A genialidade não está nem em criar algo novo, mas sim em organizar as fantasias já disponíveis.
O que amo nessa série de Martin é que os personagens principais são sempre os excluídos: o aleijado (Bran), o inteligente tímido (Sam), o anão (Tyrion), o bastardo (jon Snow), a mulher líder (Daenerys)…
“Porém, antes mesmo que Jesus fosse chamado a submeter à concordância do homem e dominar sua razão, a Providência havia criado dois homens de posição inferior à sua, mas igualmente fortes em seu gênero, para apoderarem-se da faculdade anímica e da instintiva. O primeiro, chamado Frighe, filho de Fridolfo, denominado Wodan pelos escandinavos, e que conhecemos pelo nome de Odin. O outro, Apolônio, é conhecido pelo nome de Apolônio de Tiana, nome da pequena aldeia da Capadócia onde ele nasceu. Esses dois personagens atingiram o sucesso, mas de maneiras diferentes. Contudo, ao dividirem a Vontade do homem, ambos serviram para prepará-la a submeter-se ao jugo que Jesus deveria impor-lhe.
Frighe era de origem celta ou cita, como seu nome o denota claramente. Um antigo historiador norueguês afirma que ele comandava os Ases, um povo de origem céltica cuja pátria estava localizada entre o Ponto Euxino e o Mar Cáspio.
Parece que, em sua juventude, ele seguiu Mitrídates e foi comandante em seus exércitos até o momento em que esse monarca, obrigado a ceder à ascensão dos romanos, suicidou-se. Com a invasão de todas as regiões que dependiam do reino de Ponto, e como Frighe não quisesse submeter-se ao jugo do vencedor, ele retirou-se para o norte da Europa, acompanhado de todos os que compartilhavam dos seus sentimentos.
Os escandinavos, que então usavam o nome de címbrios , inimigos implacáveis dos romanos, receberam-no como a um aliado. Eles lhe abriram facilmente as fileiras e lhe facilitaram a realização dos desígnios que a Providência lhe reservara.
Alem disso, as circunstâncias o favoreciam de maneira singular. Esses povos, que acabavam de fazer uma incursão à Itália, haviam sofrido ali um revés considerável. O pequeno número que escapara à destruição nutria no íntimo um violento desejo de vingança. Ao ver aqueles temíveis guerreiros, aos quais um laço forte já o vinculava, o príncipe dos Ases percebeu a vantagem que poderia tirar desta situação.
Frighe era seguidor de Zoroastro e também conhecia todas as tradições dos caldeus e dos gregos; além disso, as várias instituições que deixara na Escandinávia provavam sua invencibilidade. Ele era iniciado nos mistérios de Mitra, seu gênio era heróico e a elevação de sua alma o tornava suscetível de inspiração. A principal virtude dos címbrios, em cujo meio ele se encontrava, era a coragem guerreira. A nação céltica, repito, há muito deixara de existir. Um movimento contínuo de povos, indo do Norte para o Meridião, praticamente apagara seus vestígios.
Os romanos ocupavam a maior parte da Europa e seu culto penetrara em quase toda parte. Os Druidas guardavam apenas uma sombra de sua antiga realeza. A voz da Voluspa calara-se havia muito tempo. Nenhuma das circunstâncias afortunadas que poderiam favorecê-lo escapou ao discípulo de Zoroastro; num relance, ele viu a imensa região que se estende desde o Volga, nos confins da Ásia, até às fronteiras da Armórica e da Bretanha, no extremo da Europa, prometida aos seus Deuses e às suas armas. Com efeito, aquelas belas e vastas regiões que hoje conhecemos pelos nomes de Rússia, Polônia , Alemanha, Prússia, Suécia , Dinamarca, França e Inglaterra lhe pertenceram ou foram conquistadas por seus descendentes. Assim, pode-se dizer que não existe nenhum trono e nenhuma família real nessas nações que dele não descenda.
Para não assustar os povos a quem desejava convencer, Frighe fixou-se com seus companheiros num lugar favorável aos seus projetos e obteve permissão para ali construir uma cidade, a que deu o nome de Asgard, de sua antiga pátria. Foi ali que, desenvolvendo com arte um novo luxo e uma pompa religiosa e guerreira, ele atraiu para si os povos vizinhos, impressionados com o aparato e o brilho das suas cerimônias. Monarca e Sumo Pontífice, ele se mostrava ao mesmo tempo à frente dos seus soldados e ao pé dos altares; ditava suas leis como Rei e anunciava seus dogmas como Apóstolo do Divino. Ele agia então como Maomé viria a fazê-lo cerca de sete séculos mais tarde.
As mudanças que ele introduziu na antiga religião dos celtas não foram consideráveis. A mais expressiva foi a substituição de Teutade, o grande Ancestral dos celtas, por um Deus supremo chamado Wod ou Goth, do qual toda a nação gótica recebeu em seguida seu nome. Era o mesmo que Zoroastro chamava de O Tempo sem Limites, A Grande Eternidade, o Budha dos hindus que, como Ram descobrira, era conhecido por toda a Ásia. É do nome deste Deus supremo, Wod, também chamado O Pai Universal, O Deus Vivo, O Criador do Mundo, que Frighe recebeu o nome de Wodan, que transformamos em Odin, isto é, o Divino.
Assim, com muito vigor e sagacidade, o legislador dos escandinavos uniu a doutrina de Zoroastro à dos antigos celtas.
Ele introduziu em sua mitologia um Gênio do Mal chamado Locke, cujo nome era a tradução exata de Arimã; deu ao gênero humano o antigo Bore por ancestral e continuou apoiando todas as virtudes na coragem guerreira. Ele ensinou de maneira positiva, e este foi o principal dogma do seu culto: o de que somente os heróis desfrutariam, no Valhala, o palácio da coragem, da plenitude das felicidades celestes. Entrementes, partindo das margens do Tanais, Odin avançara até o seio da Vandália, hoje Pomerânia, submetendo às suas leis os Povos que encontrava em seu caminho, quer pelo brilho do seu saber, quer pela força das suas armas. Seu renome e poderio aumentavam a cada passo pelo número dos seus prosélitos e pelo dos seus súditos. A Rússia já se submetera s suas leis e recebera à Suarlami, o filho mais velho de Odin, para governá-la. A Westfália e a Saxônia Oriental haviam sido outorgadas por ele a Baldeg e Sigdeg, outros filhos seus. Ele acrescentara a Francônia às suas conquistas, deixando-a como 72herança ao quarto filho, Sighe.
Dali, tomando o caminho da Escandinávia, pelo Queroneso címbrico, penetrou em Fiônia, conquistando-a. Esta região lhe agradou e ali ele construiu a cidade de Odinse, que ainda conserva em seu nome, Odense, alembrança de seu fundador. O nome desta cidade prova que naquela época o nome de Wodan, o Divino, já fora aplicado ao príncipe dos Ases pelo entusiasmo dos seus seguidores. A Dinamarca, que se submeteu inteiramente às suas armas, recebeu Sciold, o quinto filho, na qualidade de rei. Esta região, se acreditarmos nos anais islandeses, ainda não tivera um rei e, desde então, passou a figurar no rol das potências setentrionais. Os sucessores de Sciold tomaram o nome de Scioldungiens e reinaram por muito tempo. Finalmente estava Odin para iniciar a marcha rumo à conquista da Suécia quando Gylfe, o rei daquela região, assustado com as notícias que lhe chegavam de toda parte, decidiu verificar pessoalmente esses rumores e saber se devia atribuir os êxitos do profeta conquistador aos seus prestígios ou a alguma inspiração divina. Tomada a decisão, ele se disfarça e, com o nome do velho Gangler, dirige-se ao local onde o príncipe dos Ases tinha sua corte. O autor do Edda, que narra essa jornada, diz que Gylfe, após ter interrogado os três ministros de Odin sobre os princípios das coisas, sobre a natureza dos Deuses e sobre os destinos do Universo, ficou de tal forma impressionado com as coisas admiráveis que ouviu que, não podendo duvidar que Odin fosse um enviado da Providência, desceu do trono, entregando-o a ele. Este acontecimento coroou a glória do Teocrata. Ynghe, seu sexto filho, tendo recebido a coroa da Suécia, transmitiu-a aos seus descendentes, que tomaram o nome de Yngleingiens. A Noruega logo seguiu o exemplo da Suécia, submetendo-se ao filho mais moço de Odin, chamado Soemunghe.
Entretanto, o legislador escandinavo não negligenciava coisa alguma para fazer com que seus novos Estados florescessem e para neles fundar seu culto sobre bases sólidas. Em Sigtuna, a cidade da vitória, atualmente Estocolmo, ele criou um conselho supremo, composto de doze Pontífices, e que foi encarregado de velar pela segurança pública, de fazer justiça para o povo e conservar fielmente todos os conhecimentos religiosos.
Os fragmentos históricos que chegaram até nó s representam Odin como o mais persuasivo dos homens. As crônicas islandesas dizem que nada podia resistir à força dos seus discursos nos quais ele costumava incluir versos compostos de improviso. Eloqüente nos templos, onde seu ar venerável conquistava todos os corações, ele era, no fragor das batalhas, o mais impetuoso e o mais intrépido dos guerreiros. Sua coragem, cantada pelos bardos e seus discípulos, foi por eles transformada numa virtude sobrenatural. Com o tempo, eles incluíram em sua história pessoal tudo o que pertencia à história geral da raça bórea, por causa de Bore, que ele apresentara como seu ancestral. Não contentes em confundi-lo com Wod, o Deus supremo que ele anunciava, também o confundiram com a antiga Teutad, atribuindo a ele todos os cantos da Voluspa.
As poesias islandesas até hoje o representam como um Deus senhor dos elementos, dispondo à vontade dos ventos e das tempestades, percorrendo o Universo num piscar de olhos, tomando todas as formas, ressuscitando os mortos e prevendo o futuro. Segundo essas mesmas narrativas, ele sabia cantar árias tão melodiosas e ternas que as planícies se revestiam de novas flores, as colinas estremeciam de prazer e as sombras, atraídas pela doçura dos acordes, saíam dos abismos e quedavam-se imóveis ao seu redor.
Tais exageros são inevitáveis: encontramo-los igualmente expressos com relação a Ram, Orfeu e Odin, no Ramaiana dos hindus, na mitologia grega e no Edda.
Mas, voltando ao domínio da História positiva, eis o que se conta de certo sobre a morte de Odin. Esse Teocrata, coberto de felicidade e de glórias, não quis aguardar no leito uma morte lenta e despida de fulgor. Como sempre anunciara, para aumentar a coragem dos seus guerreiros, que somente os que morressem de maneira violenta seriam dignos dos prazeres celestes, ele decidiu terminar sua vida pelo ferro. Assim, após reunir seus amigos e os mais ilustres dos seus companheiros, ele fez com a ponta de uma lança nove ferimentos em seu corpo, formando um círculo, e declarou que ia para o Valhala participar, com os outros Deuses, de um festim eterno.
Odin, de acordo com os desígnios da Providência e querendo formar um Povo audacioso e valente e fundar um culto anímico, eminentemente apaixonado, só poderia morrer como morreu. Sua morte foi uma obra-prima da sua legislação. Sem ser tão heróica quanto a de Jesus, ela foi melhor que a de Apolônio de Tiana, e selou igualmente a sua doutrina.”
Fabre d’Olivet, História Filosófica do Gênero Humano
O link da segunda parte não vai.