Os Corvos de Wotan, parte 1

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A chamada tradição oral é a preservação de histórias, lendas, usos e costumes através da fala. Origina-se do primórdio da história humana, quando ainda não havia a escrita e os materiais que pudessem manter e circular os registros históricos. Na atualidade própria das classes iletradas, a tradição oral tem sido, contudo, muito valorizada pelos eruditos que se dedicam ao seu estudo e compilação (as baladas da Edda Poética, por exemplo), ao considerarem que é na tradição oral que se fundamenta a identidade cultural mais profunda de um povo. Supõe-se, por exemplo, que a Ilíada e a Odisseia de Homero foram inicialmente, assim como as Eddas, longos poemas recitados de memória.

Joseph Campbell gostava de dizer que “o mito é algo que nunca existiu, mas que existe sempre”. Esse aparente paradoxo pode ser reconciliado se entendermos a tradição oral, mãe da mitologia, como a melhor forma com a qual o espírito humano pôde passar adiante suas experiências no contato com a essência das coisas, com o que há de eterno no mundo. Dessa forma, todas as variantes de um mesmo mito são, no fundo, uma mesma história. E toda mitologia é, no fundo, uma mesma mitologia, uma mitologia do espírito humano.

Mas hoje não vivemos mais em tribos e aldeias, e nem todos necessitam decorar tais histórias antigas. Além disso, não são os xamãs nem os anciãos quem nos passam os mitos, mas alguns poucos textos sagrados de outrora, que até hoje inspiram inúmeras variações na mente dos contadores de histórias modernos – a quem conhecemos, principalmente, como artistas. Existem mitos sendo recontados em todos os cantos: nos livros de vampiros adolescentes, nos filmes de Hollywood, nas séries de TV de fantasia, e até mesmo num gibi.

O deus que usarei como exemplo de referência neste artigo é hoje um conhecido personagem de histórias em quadrinhos da Marvel. Se você já leu algum gibi, ou viu algum filme recente, de seu filho, certamente o conhece: Odin (ou Wotan, ou Wôdan, variantes hoje menos conhecidas, mas que vieram do original germânico), é o Senhor de Asgard e pai de Thor, o heroico deus do trovão. Você pode achar que não há nada de muito profundo a se falar sobre um velho deus-herói-caçador aposentado que hoje se limita a governar uma cidade mítica, e talvez tivesse razão se considerarmos apenas a forma extremamente diluída deste mito que nos chegou aos dias atuais como um mero personagem de quadrinhos… Mas, não que eu esteja condenando Stan Lee e Jack Kirby, pelo contrário: apesar de terem “diluído” o mito, eles fizeram por ele bem mais do que o cristianismo, que por muitos séculos demonizou o grande deus dos povos nórdicos europeus, a fim de substituí-lo por sua versão bíblica.

Mas, o que exatamente eu quero dizer pelo mito de Odin, será que me refiro a uma entidade sobrenatural real? Bem, com todo o respeito à Freternidade de Odin [1], não é exatamente isso que quero dizer… É óbvio que não existe, na natureza terrestre pelo menos, um homem caolho a cavalgar os céus montado num cavalo de oito patas; mas, por outro lado, a iconografia de Odin é toda ela um imenso conjunto de símbolos, símbolos estes que existem e sempre existirão, ao menos enquanto existirem mentes com vontade de pensar sobre eles.

Os símbolos nada mais são do que imensas quantidades de informação reduzidas a uma única imagem ou história fantástica ou ícone que funcionam como uma chave mental para o acesso dessas informações e sensações, desde que a pessoa saiba, em seu pensamento, como usar esta chave de uma forma consciente. Você pode perfeitamente substituir a imagem (o símbolo) de Odin por uma série de palavras (formadas por conjuntos de símbolos – as letras do alfabeto) a formar uma extensa lista: sabedoria, fúria, excitação, guerra, caçada, mente, magia, poesia, escrita rúnica, etc. É claro que, dependendo da interpretação de cada pessoa, e de cada tradição folclórica, essa lista pode variar imensamente, mas não absolutamente. Odin é um conjunto de símbolos, ele serve para que acessemos tais ideias em nosso pensamento, sentimento e intuição, de forma simplificada e cada vez mais potente (o hábito faz o monge).

O grande problema do “uso dos mitos” é quando os entendemos como seres literais (e não metáforas), dispostos a barganhar conosco em troca de “favores espirituais”, “boa sorte”, “boa saúde”, etc. Isso é um problema porque, exatamente, a grande vantagem dos mitos é poder ativar a nossa vontade para que nós mesmos busquemos tais objetivos, que nós mesmos nos tornemos heróis a vivenciar a grande aventura da vida, que nós mesmos nos tornemos, enfim, deuses (“sois deuses, farão tudo o que faço e ainda muito mais” – disse o grande rabi da Galileia [2]).

Mas, retornando a Odin: é verdade que o que sabemos hoje sobre o seu mito é extensivamente baseado na Edda Poética, um grandioso conjunto de poemas vindos diretamente dos mitos dos povos nórdicos antigos da Europa, e que foi preservado no Codex Regius (“Livro Real”), um códice islandês que provavelmente foi escrito em cerca de 1270 d.C., mas que só se tornou “conhecido na modernidade” quando um bispo o encontrou na Islândia e o enviou como presente ao então rei da Dinamarca, em 1662. A Edda então permaneceu na Biblioteca Real de Copenhagen até 1971, quando foi escoltada por militares por terra e mar (um acidente aéreo poderia a danificar permanentemente), de volta a capital da Islândia, Reykjavík. Lá ela permanece até hoje, como uma legítima relíquia que guardou praticamente sozinha aos séculos da cultura de um povo, e impediu que seus mitos de diluíssem até não mais existirem.

O que os versos da Edda nos trazem, entretanto, são baladas e cânticos bardos de épocas ainda muito mais remotas… Diz-se que Odin já era conhecido desde os primórdios da língua protogermânica, que durou de 500 a.C. há 500 d.C., e que formou a base de diversos idiomas atuais, como o inglês, o escocês, o alemão, o dinamarquês, o norueguês e o islandês, dentre outras. De fato, Odin é tido como o grande responsável por trazer aos homens o conhecimento das runas, a base da escrita germânica antiga, do mundo espiritual (falaremos mais sobre isso na sequência). Ora, como as runas mais antigas encontradas datam dos séculos I e II d.C., podemos dizer que o mito de Odin era tão antigo quanto elas… Mas, talvez seja ainda muito mais antigo do que isso. Porém, como teremos certeza?

Certeza nós jamais teremos, pois a história não é somente uma mera reconstrução moderna dos tempos de outrora: mas uma reconstrução criada primordialmente pelos povos e países vencedores das guerras e dos embates dentre crenças religiosas… O Odin que conhecemos hoje é um Odin sobrevivente aos séculos de domínio romano e cristão, e é mesmo quase um milagre que ele tenha sobrevivido. Apesar das extensivas campanhas de demonização feitas pelos ditos cristãos, o mito mostrou-se persistente: Odin ainda cavalga pelos céus, pelas películas de cinema e pelas histórias em quadrinhos.

Dito isso, é preciso deixar claro que a própria natureza do mito é a de se transformar continuamente, preservando-se apenas sua essência, aquilo que está fora do tempo, e sobrevive exatamente por nos tocar a alma, por ser eterno… Portanto, e interpretação que mais conta é a atual; e, além disso: é a nossa interpretação. Porque os mitos que nos são despejados como dogmas pré-estabelecidos por pretensas figuras de autoridade não são muito mais do que propaganda enganosa. O que nos importa, o que sempre importou, é identificar a essência, a verdade guardada em inúmeras metáforas, percebida sabe-se lá por qual ancestral selvagem em meio ao inverno europeu, e que, espantosamente, ainda está aqui, ainda nos toca a alma, ainda é capaz de nos elevar a estados de consciência que nem sabíamos que existiam.

O que falarei a seguir, portanto, é da minha interpretação do mito de Odin. Baseada num estudo das inúmeras histórias que ainda se contam dele, é claro; mas, não obstante, minha interpretação. Sinta-se a vontade para questioná-la, interpretá-la, vivenciá-la, pois é isso o que os mitos nos pedem…

» Na próxima parte: Odin, seus lobos e seus disfarces…

***

[1] Sociedade secreta neopagã que até os dias atuais celebra os ritos antigos relacionados à Odin e a outros elementos da mitologia nórdica. Segundo eles, “Odin não é um arquétipo psicológico ou uma metáfora para referência as forças naturais, mas uma entidade real”. Eles também são “politeístas a fundo”, e ao contrário de outros politeístas que na realidade compreendem aos deuses como emanações de um único Deus Primordial (o que no caso faria de Odin o Deus, e Thor, por exemplo, um de seus Arcanjos ou Profetas, se formos fazer uma [má] comparação com o catolicismo), para eles não há nenhuma lógica em crer que uma única entidade emana toda a realidade conhecida de si própria. Bem, provavelmente eles nunca leram Espinosa… Por outro lado, existe sempre a possibilidade de terem inventado essa história com o propósito de afastar curiosos indesejados.

[2] João 10:34; João 14:12 (NT).

***

Crédito da imagem: Action figure por Randy Bowen (para a Marvel Comics)

 

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Respostas de 8

  1. Prezado Rafael,

    Gosto muito de seus textos e da sobriedade com que escreve temas tão susceptíveis a crenças e pontos de vista. E, justamente por se tratar disso, entendo seu posicionamento quanto ao politeísmo. Mas tenho de discordar dele. Apesar de não ser Odinista nem Asatruar (nunca ouvi falar em Fraternidade de Odin, para mim os politeístas germânicos se situam principalmente nesses dois grupos, a exceção de um grupo menor que cultua os deuses Vanires), sou politeísta, li Espinosa e mesmo assim não consigo ver os deuses como manifestações de um deus único. Aliás, por falar em Espinosa, seu deus tinha um problema sério de identidade. Esse problema filosófico surge quando tentamos descrever uma única divindade de maneira panteísta, encontrando-a nas diferentes manifestações da Natureza. Ao assumir que um único deus se traduz por fenômenos naturais tão distintos, controversos e conflitantes, o que encontramos é uma divindade que, no mínimo, sofre de esquizofrenia. Nem unicamente masculino, nem unicamente feminino, nem unicamente criação, nem unicamente destruição, nem unicamente amor, nem unicamente frieza, nem unicamente guerra, nem unicamente paz. Um deus que apresenta aspectos tão conflitantes não soa como uma entidade única, sequer como um conceito único. A única maneira de alcançá-lo dessa forma é abstraí-lo da Natureza, afastá-lo dela, e aí já não temos mais o panteísmo de Espinosa. Um deus como o judaico, que mora num reino “tão tão distante” de sua criação, soa menos esquizofrênico, mas muito mais abstrato, subjetivo e, por isso mesmo, irreal.

    Nós, ocidentais do século XXI, criados numa perspectiva cósmica profundamente cristã, monoteísta, regida por um tempo linear, sob valores de amor e caridade, num regime materialista, achamos que o deus único é a ideia mais sensata que existe. Só esquecemos de que o mundo foi principalmente politeísta por muito mais tempo que é principalmente monoteísta. Por mais de quatro mil anos a concepção plural da divindade reinou absoluta sobre o nosso planeta. Essa concepção começou a mudar de mil e setecentos anos pra cá, num processo lento, imposto e, como não podia deixar de ser, duramente resistido pelos povos politeístas. Os romanos das fazendas, os ditos “paganis”, até aceitavam os cristãos, com sua virgem, seu redentor e seu deus único, mas quando precisavam de ajuda nos campos, para as suas colheitas, rogavam aos deuses rurais, pois era o que funcionava. Até o século V da nossa era a concepção politeísta da divindade ainda era muito forte. Espinosa surgiu há meros 400 anos, bem depois da conversão do mundo ocidental ao deus único.

    @raph – Oi Fábio, é que na verdade a questão que Espinosa elabora é o problema do ser, o problema do “porque existe algo e não nada”. É uma ideia muito antiga que ele apenas atualizou para o contexto da filosofia de sua época, e de suas próprias ideias é claro. Mas se encontra no hinduísmo, no taoismo (“O Tao me parece ser anterior ao Soberano do Céu”), em Parmênides, no estoicismo (“Zeus é o Deus dos deuses”), em Plotino e, após Espinosa, também em Einstein.

    Ora, mas o fato de resolvermos assim a questão da Criação não significa que não exista nada entre este Deus Primordial (No Candomblé, poucos conhecem, por exemplo, Olorun: é que ele não precisa de oferendas visto que já tem todas, e criou todos os Orixás 🙂 e nós homens e mulheres. Alan Moore já disse que o Cristianismo se parece com a repetição de uma única vogal, enquanto que o Paganismo é todo um alfabeto. Ora, as letras desse alfabeto são os aspectos de Deus, mas também são, no próprio catolicismo, os santos, os anjos, os profetas, as “virgens”, enfim, os intermediários entre a Terra e o Céu. Então de certa forma toda a doutrina religiosa, mesmo a que se diz “totalmente monoteísta”, de certa forma sempre precisou recorrer a aspectos do politeísmo para se “manter inteira”. E, da mesma forma, há muitos e muitos mitos de criação de variados povos do mundo que consideram essa questão “do Deus que criou os outros deuses”.

    O “Deus que criou os outros deuses” nada mais é do que a Substância de Espinosa. Mas tal Substância certamente não é um deus pessoal, e muito menos um deus bíblico.

    Obs. Veja também isso aqui, é bem divertido: http://textosparareflexao.blogspot.com/2012/08/o-frescobol-cosmico.html 🙂

    1. Oi Rafael. Acho que agora estamos convergindo. Esse conhecimento de que havia “algo” antes de haver qualquer coisa é realmente partilhado por vários povos, em praticamente todos os momentos. Nenhum politeísmo que eu tenha conhecimento negou a existência de uma ou mais forças criadoras. Interessante é que na mitologia nórdica, assunto do seu texto, eram duas estas forças: Niphelheim e Muspellheim, respectivamente: a força primordialmente estática e a primordialmente dinâmica. Mas nenhum odinista representa Niphel e Muspel como deuses, nem lhes presta culto: são estados primordiais, não individualidades. Da mesma forma o Kaos grego e o Nun da teogonia egípcia. A substância de Espinosa carece de individualidade, por isso acho errado dar a ela a denominação individual de Deus. Não é Deus, nem um deus; é algo, um demiurgo, talvez semelhante ao Demiurgo de Platão que, diga-se de passagem, nunca foi monoteísta. O ser em Parmênides não parece transcender o Universo, parece ser a concepção do próprio Universo em si, como Ser. Se isto é ou não deus é assunto de discussão extensa, mas render culto ao Universo como individualidade me parece soar meio absurdo. Como identificar algo cuja identidade é tudo que existe?

      @raph – No Ocidente tendemos a ver a divindade como fonte da Criação, no Oriente há uma tendência a ver a divindade como veículo das energias da Criação. A diferença entre as concepções de deus pessoal e impessoal também costumam passar por aí. A grande questão que Espinosa analisa é que a Criação é imanente, isto é, não existe nada “fora de Deus”. Se você adora, por exemplo, Oxalá, Ogum ou Yemanjá, está bom assim, mas se você analisa pela lógica pura, só pode haver um Criador, e a própria mitologia fala em Olorum, o que “criou o mundo e os Orixás” e, como diversos outros deuses criadores, se tornou “ocioso”. Um “deus ocioso” não necessariamente não faz nada, mas faz “alguma coisa que não sabemos descrever”. É como falar num Deus que criou a Gravidade e depois foi “descansar”: mas como assim “descansar”, se a Gravidade continua funcionando até hoje? Pois é, é por aí…

      Há uma questão mais “técnica” da lógica da Criação que fala da teoria da informação, felizmente eu já escrevi sobre isso aqui: “Porque não há 2 substâncias incriadas?” http://textosparareflexao.blogspot.com/2013/02/ad-infinitum-porque-nao-ha-2.html

      Enfim, na prática, o conceito filosófico de algo acima da divindade, como o Tao coloca, me é meio abstrato demais para uma aplicação real. Nada contra o taoísmo, mas mesmo ele precisa de deuses. Prefiro cultuar aquilo que está onde minha percepção alcança do que imaginar algo transcendente, inalcançável e incogniscível que figura apenas em meu pensamento, não no meu coração.

      @raph – Disse Jesus, no Evangelho de Tomé: O Reino de Deus se encontra espalhado pela Terra e os homens não o veem. Neste ponto, “trazer para o coração” é exatamente estar em comunhão com essa força transcendente. É algo que os orientais costumam fazer todo o tempo, mas que nós ocidentais temos certa dificuldade, também pelo costume de associar divindades a “pessoas que falam conosco”. Mas o amor, no final das contas, não é falado, é sentido 🙂

    2. Parece que se deseja, com a ideia de um deus único, chegar a um topo que apenas imaginamos quando tudo que enxergamos e podemos alcançar são os degraus. É muita vontade de dar um passo maior que a perna. Por fim, a Substância de Espinosa só faz sentido se percebida como a coletividade das individualidades divinas, uma ideia que, na prática, não faz a menor diferença.

      @raph – O que faz diferença é imaginar que um pedaço de galho seco, um pedra, tudo faz parte da substância divina. Em Espinosa isso pode parecer uma pura questão lógica, mas há que se chegar no capítulo final de sua “Ética” para perceber que ele também fala em uma “vontade da Natureza”. Esta ideia se “seguir a intuição e se alinhar a tal vontade da Natureza” nada mais é do que a tal Verdadeira Vontade do ocultismo. Se você crê que esta Vontade vem de um ou dois ou centenas de deuses, não fará mesmo tanta diferença, contanto que esteja se empenhando em segui-la com convicção e pureza de intenções.

  2. Prosseguindo, assim como Olorun (ou Olodumare), que criou o Universo e foi descansar, temos Brahma, que dorme até hoje, depois da criação. Sim, ambos descansam e a gravidade esta aí, funcionando muito bem. Como? A resposta está, como não podia deixar de ser, nos mitos. De fato, a Natureza não precisa do Demiurgo para funcionar, pois existem outros deuses que “assumiram” as tarefas do Universo depois da retirada do demiurgo. Vishnu deu forma e ordem à matéria disforme criada por Brahma. Obatalá e Oduduwa cuidaram da Criação a mando de Olodumare. Zeus passou a administrar o Universo depois que destronou seu pai, Cronos. Ou seja, mesmo considerando a ideia de um deus “condutor” das energias da Criação, o Demiurgo pode descansar tranquilo pois as energias criadas são conduzidas por outros deuses.

    @raph – Sim, mas essa não é bem a questão lógica em Espinosa. A questão envolve a Criação imanente, ou seja: Tudo é feito de Deus já que nada está fora de Deus e nem poderia estar. Isto não significa, no entanto, que o “Deus de Espinosa” seja um deus pessoal.

    Quanto à sua questão mais técnica, peço cuidado ao analisar com a lógica pura verdades expressas mitologicamente. As verdades de que tratam os mitos são de outro tipo que não o da lógica racional, como já dizia muito bem Joseph Campbell.

    @raph – Exato, essa questão da existência envolve filosofia e lógica, e de fato não tem (quase) nada a ver com mitologia. Naquele link (“Porque não há 2 substâncias incriadas?” ) eu explico melhor e de forma puramente lógica. Na verdade de certa forma eu escrevi um livro inteiro sobre o assunto, o “Ad infinitum”.

    Por fim, o ocultismo que defende a existência da Verdadeira Vontade é recentíssimo, do século XVIII pra cá, no máximo. Essa busca pela Verdadeira Vontade me parece própria do contexto religioso do nosso tempo. Tudo bem relacioná-la com Espinosa, que está inserido nesse contexto, mas quando você extrapola para o politeísmo ao dizer que tanto faz a Vontade vir de um ou de vários deuses, acho que comete um equívoco. Não vejo essa busca individual da mesma forma nas religiões antigas. Talvez na filosofia, mas não me lembro de nenhum filósofo antigo que siga esse conceito, de realização de uma vontade individual divinizada. No politeísmo, não há Verdadeira Vontade pessoal e individual, estamos todos subjugados à vontade dos Deuses. Ela é soberana e sempre irá se realizar. Fugir dela só a faz ainda mais inevitável (exemplo: Édipo Rei, de Sófocles, e outros tantos mitos). Nós é permitido percorrer o caminho de Héracles para crescermos espiritualmente, ou buscar o Velocino de Ouro enfrentando os dragões dentro de si. Nos é permitido fazer iniciações que nos salvaguardem uma boa morte escapando das agonias do Hades ou, quem sabe, evitando beber da fonte do esquecimento das encarnações, a fonte do rio Lete. Mas essa não é a busca de uma Vontade individual onipotente, no máximo é uma prerrogativa dada pelos Deuses, desde que aliada à Sua vontade. Eles podem tirar a qualquer momento essa prerrogativa, se assim desejarem.

    @raph – Sim essa tal Verdadeira Vontade parece ser “novidade”, e de fato eu nem conheço muito do assunto. A intuição alinhada a vontade da Natureza, em Espinosa, é um pouco diferente pois envolve seguir “um bem maior” e não exatamente “alguma vontade que nasceu junto conosco”. Os estoicos também já falavam na deusa Fortuna e em como devemos nos preocupar somente com o que podemos modificar, que é basicamente o que existe em nosso interior, mas não lhes parece possível que “ao seguir a nossa Verdadeira Vontade a Natureza, ou a Fortuna, abrirá nossos caminhos” – ou seja, não parece haver esta noção de “seguir um destino” no estoicismo, eles se contentam somente em cuidar daquilo que envolve nossas decisões pessoais (o que não é muito perto da imensidão de coisas que nos fogem o controle, mas já é uma importante lição para a conquista da felicidade).

  3. Acho que chegamos a um consenso. Obrigado pelo debate. Você já era, para mim, o melhor colunista do ToC antes e isso apenas se confirmou uma vez mais. Parabéns!
    Não precisa publicar esta mensagem, apenas quis deixar meus agradecimentos. Que os deuses lhe abençoem.

    @raph – Heh, obrigado Fábio 🙂

    Acho legal publicar para o pessoal que acompanha os comentários ver que o papo chegou ao final. Abração e siga sempre com entusiasmo (ou seja, com os deuses adentro).

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