Onryou, Médiuns e Ringu, ou “O Chamado” em japonês

 

Foi com o filme “O Chamado” que o ocidente abriu as portas para os filmes de assombração orientais. Infelizmente, abriram as portas para as péssimas refilmagens com atores norte-americanos em cenários orientais e personagens de nomes japoneses. Digo ainda filmes de “assombração” porque vejo muitas pessoas reclamarem desse tipo de gênero, alegando que não são assustadores o suficiente. É óbvio que não são – para os ocidentais.

Erroneamente classificados de filmes de “terror” por estas bandas, eles geram a expectativa de algo realmente assustador para uma cultura diferente e, sem entrar em qualquer aspecto religioso, por que não dizer menos espiritualizada? No berço do shugendou, do shingon, do onmyoudou, do xintoísmo e de várias outras vertentes, as pessoas possuem medo (e muito) de fantasmas e de meninas mortas com cabelo no rosto, principalmente depois de um filme como Ringu.

Enfim, deixando as críticas cinematográficas (temporariamente) de lado, vamos ao que interessa.

 

Ringu é baseado na obra do escritor japonês Suzuki Koji, dividida em quatro livros: Ringu (1991), Rasen (1995), Loop (1998) e The Birthday (1999)

O primeiro filme da série Ringu foi adaptado do primeiro livro de Koji e quase fielmente reproduzido pelo remake norte-americano. A história, todos vocês conhecem: o corpo da menina Sadako (Samara Morgan) é encontrado no fundo de um poço desativado, sob uma cabana, após investigações sobre uma misteriosa fita de vídeo que mata em sete dias.

As coisas começam a ficar complicadas mesmo depois disso. O segundo filme da série é, na verdade, Rasen, adaptação do segundo livro. Acontece que ele foi um fiasco de bilheteria no Japão (também, com uma explicação mais para ficção científica do que para assombração…). A fim de apagar da memória dos japoneses o insucesso de Rasen, os produtores fizeram uma “continuação” de Ringu: Ringu 2, mais ou menos do mesmo nível de O Chamado 2 por estas bandas ocidentais, mas que ainda assim fez sucesso. Posteriormente, fizeram ainda Ring 0 – The Birthday, um prequel da série, passando-se antes dos fatos ocorridos em Ringu, que definitivamente perdeu qualquer tom de assombração, que dirá de terror, mas que arremata com todas as explicações a história de Sadako. A essa altura, esta que vos fala não precisa dizer que assistiu Ringu, Rasen, Ringu 2 e Ringu 0 – The Birthday, né? Recomendo apenas para os amantes do gênero. Quem não aprecia pode perder um pouco a paciência com os vários tons que a narrativa assume ao longo dos quatro filmes.

Finalmente chegando ao ponto inicial, em Ringu, Yamamura Sadako, aka Samara Morgan, é filha de Yamamura Shizuko, aka Anna Morgan. A personagem Shizuko foi baseada na história de Mifune Chizuko (17/06/1886 – 10/01/1911), uma renomada médium japonesa que aceitou participar de pesquisas de professores da Universidade de Tóquio para comprovação de atividades paranormais. No entanto, após uma demonstração pública de suas habilidades mediúnicas, ela foi acusada de charlatanismo e suicidou-se aos 25 anos de idade. Alguns anos depois, nasce nas redondezas a menina Takahashi Sadako, que também demonstra possuir habilidades paranormais.

Ao contrário de Chizuko, que psicografava, Sadako possuía a habilidade de gravar imagens mentais em superfícies como fotos e radiografias, habilidade esta mais conhecida como nensha. Ela também fez parte do grupo de pesquisa da Universidade de Tóquio, e era tida por muitos como a reencarnação de Chizuko.

Evidentemente, o escritor dos livros baseou-se na história dessas duas mulheres para compor suas personagens, dando inclusive seus nomes a elas (Sadako – Sadako e Chizuko – Shizuko).

 

Sadako, a do filme, é um típico exemplo de onryou, um espírito vingativo que busca causar danos físicos às pessoas, e que pode ocasionar a morte de suas vítimas. Aqui, peço licença para uma breve explicação sobre a alma humana na visão xintoísta.

A alma humana é chamada de “reikon”, a junção dos elementos “rei” e “kon”, ou seja, essência espiritual e alma, respectivamente. Especificamente, “ichirei shikon”, ou “um espírito e quatro almas”. Isso porque a kon dos humanos é composta de quatro partes, quais sejam, “aramitama”, ou a coragem, “nigimitama”, ou a amizade, “sachimitama”, ou o amor, e “kushimitama”, ou a sabedoria.

Quando um ser humano morre, seu espírito “rei” e duas das quatro almas, “sachimitama” e “kushimitama”, vão para o outro mundo, enquanto que a “aramitama” e a “nigimitama” permanecem nesse plano. Como a “aramitama” está associada ao corpo físico, ela acabará por se desintegrar, restando apenas a “nigimitama”, que também irá desaparecer, mas num processo que levará um pouco mais de tempo.

Assim, se houver um desequilíbrio na reikon de uma pessoa, ou seja, entre as suas “quatro almas” (geralmente a “nigimitama”, que quando em desequilíbrio, está ligada ao ódio, ao egoísmo e ao apego), ela pode vir a se tornar um fantasma, um Yuurei. Assim, como é a “nigimitama” que permanece por maior tempo nesse plano, ela “segura” o restante das almas, impedindo que o espírito da pessoa parta para o outro mundo. Por outro lado, se ela vier a desencarnar em um momento de grande ódio e/ou violência, ela se torna um Onryou, um espírito vingativo.

Isso ocorre devido ao desequilíbrio da aramitama no momento da morte (geralmente brusca e violenta, tomada pelo ódio), que torna o espírito igualmente violento. Além disso, como a aramitama naturalmente sofre um processo de desintegração, esse tipo de espírito também costuma vampirizar as suas vítimas, de maneira a prolongar a sua “sobrevida” neste plano, e nada melhor do que a adrenalina liberada durante uma sessão de filme de terror para garantir a energia necessária para tal intento.

Apesar da crítica sobre ficção científica, a explicação original para as mortes – que vocês só descobrem em Rasen – não deixa de ser interessante. Quem não quiser spoilers, que não leia o próximo parágrafo.

 

Sadako (novamente, a do filme) plasma no vídeo as suas imagens mentais e acopla a ele um vírus por ela criado, que mata em sete dias, a menos que a pessoa dê um jeito de transmiti-lo, ou seja, fazendo com que outra pessoa assista ao vídeo e seja infectada, escrevendo livros e fazendo filmes sobre sua história para disseminá-lo, ou engravidando mulheres para que elas dêem a luz a clones seus. Seu objetivo? Dominar o mundo, que dúvida!

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Respostas de 15

  1. Há um episódio de Inuyasha sobre onryous também. Já assistiu? É interessante, assim como todos os episódios de Inuyasha. *-*

    @Aoi Kuwan – Ahh, eu via Inuyasha, mas não me recordo de nenhum episódio sobre onryous… Sim, o universo criado pela Rumiko Takahashi é muito rico em referências =)

  2. ho ho o, adorei
    ainda não vi os filmes, mas a idéia exposta me deu um novo ânimo.
    Estudo questões orientais por praticar Tai Chi Chuan, desenahr mangá desde pequeno e ver citações sobre Youkais e derivados em vários deles

    muito bom, esses textos sempre me ajudama ter uma visão mais ampla sobre um universo ainda exótico pra mim ^^

  3. Cara essa historia de fantasmas japones me lembram o jogo Fatal Frame, ja ouviu falar?

    @Aoi Kuwan – Não.. mas suponho que seja um jogo sobre fantasmas…

    1. é um jogo onde a personagem principal tem uma camera, e soh consegue ver os fantasmas atraves da lente

  4. Também me lembrei de um jogo, no caso Persona/SMT onde aparecem essas “mitamas”. Depois de ler entendo o motivo delas terem um desenho bem expressivo.

    É triste pensar que uma vítima pode não só ter perdido a vida na mão de um bandido, mas também a alma. Espero que as coisas não sejam assim.

  5. “O Chamado” original é zilhões de vezes mais assustador que o remake americano, dentre outras coisas porque você praticamente não vê o rosto da menina até bem no finalzinho (e mesmo assim não vê lá muita coisa)… Afora isso o tipo de filmagem é bem mais assutador. Não é preciso uma serra elétrica ou mortos vivos para se fazer bons filmes de terror – na verdade, na minha opinião pelo menos, os grandes filmes de terror são aqueles que mantém o “terror oculto”, num clima de suspense que é bem mais assustador do que ver um cara idiota com máscara de futebol americano correndo atrás das pessoas…

    1. Só uma correção: máscara de “Hockey” (e não futebol americano, q é capacete). E concordo com a sua opinião. Tubarão foi um sucesso por não mostrar o peixe e muito pela música.

      Adorei a estória das 4 “almas”.

  6. bem legal,

    conheço razoavelmente a cultura japonesa devido meu interesse por artes marciais, idiomas e anime mas, mesmo tendo um pé bastante dentro da espiritualidade, nunca procurei me informar mais sobre o xintoísmo ou qualquer outra mística autóctone do japão.

    vc recomenda algum livrim? algo bem basicão só pra se interar mesmo…

    Muito grato, aoi (bacana este nome ^^)

    rodrigo

    @Aoi Kuwan – Ai, livros para indicar são complicados… Não há muito material bom em português. Se queres algo bem básico para se inteirar, eu sugiro uma enciclopédia, de verdade… Depois, se te interessares por algum tema específico, tenho alguns livros para indicar, daí ;D (obrigada pelo elogio ^^)

  7. Saudações.
    Aoi Kuwan, gostaria de parabenizar à você pelo maravilhoso texto, eu estava procurando algo assim há tempos. Na verdade, precisava encontrar vestígios de que a história sobre Sadako foi baseada em fatos, nem que sejam distantes.
    Mas não é apenas isso. Escrevo pois preciso de algumas informações e talvez você possa me ajudar.
    Teria algum e-mail ou alguma forma de contato?
    Fico grato. Abraços.

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