Por Gilberto Antônio Silva
A cultura chinesa é uma das mais antigas da Terra e a única das grandes civilizações da antiguidade que possui história contínua, desde 7.000 a.C. até hoje de manhã, algo único. Descobertas arqueológicas como o Homem de Pequim mostram que a área onde se iniciou a civilização da China é habitada já há 800.000 anos.
Essa grande antiguidade e relativa estabilidade cultural fizeram da cultura chinesa uma potência nos quesitos variedade e profundidade de seu pensamento. Infelizmente as maneiras como eles expressam esse conhecimento são diferentes das nossas, o que levou diversos especialistas ocidentais a menosprezarem este tesouro, alegando que no oriente existe apenas “religião” e “crenças”. Nada mais longe da verdade.
O Taoismo, em particular, é digno de profundos estudos. Não apenas é uma filosofia autóctone da China como tornou-se posteriormente a única religião nascida em solo chinês, já que o Budismo é indiano e o Confucionismo não é religião.
Dentro dos conceitos mais importantes da filosofia chinesa e do Taoísmo em particular, um que se destaca é o “vazio”. A importância do vazio nunca foi subestimada pelos chineses, que afirmavam que tudo o que existe só possui essa realidade porque um espaço vazio permitiu que existisse. O filósofo grego Demócrito (460 a.C.-370 a.C.) foi o primeiro ocidental a chamar a atenção para o vazio ao afirmar que no Universo “há apenas átomos e vazio”. Os chineses foram além ao afirmarem que a própria existência do universo dependeu da existência de um vazio original, chamado de Vazio Primordial.
Para nosso universo existir foi necessário que houvesse um vazio que o pudesse conter, pois nada poderia existir sem um espaço para que existisse. Esse vazio primordial é chamado em chinês de wuji (??, “vazio supremo”), e faz parte dos conceitos cosmológicos chineses principais. É um termo muitas vezes utilizado para se definir o infinito, o que não tem limites, e também um estado de vacuidade absoluta, não representado apenas pela ausência de tudo, mas uma vacuidade que tende à transcendência já que é a matriz de tudo o que existe. A cultura chinesa tradicional possui seus mitos de criação, como do “Ovo de Pangu”, mas para os taoístas, o Universo, compreendendo tudo o que existe, nasceu de uma grande explosão repentina que reverberou no vazio primordial. Qualquer semelhança com a ideia do “Big Bang” não é mera coincidência. Após a explosão o universo cresceu, de maneira expansiva, tornando-se o que conhecemos hoje. Mas para que ele exista e continue se expandindo (os chineses acreditam nisso, também) é necessário que tenha havido um espaço vazio anterior, que pudesse comportá-lo – o Wuji. A existência depende inteiramente da não-existência que a precede.
Na vida cotidiana, em nossa escala normal, também o vazio possui grande importância. Laozi já afirmava no capítulo 11 do Tao Te Ching:
Trinta raios convergem ao vazio do centro da roda
Através dessa não-existência
Existe a utilidade do veículo
A argila é trabalhada na forma de vasos
Através da não-existência
Existe a utilidade do objeto
Portas e janelas são abertas na construção da casa
Através da não-existência
Existe a utilidade da casa
Assim, da existência vem o valor
E da não-existência, a utilidade
Laozi nos mostra que um vaso pode ser feito de diversos materiais e possuir muitas decorações, mas é o vazio em seu interior que o torna útil. Um vaso de ouro é muito mais valioso que um feito de barro, mas a utilidade dos dois é a mesma e depende inteiramente do vazio interno. Da mesma forma uma roda de carroça não serviria para nada sem o espaço para se encaixar o eixo. Um cômodo de uma habitação sem portas ou janelas não poderia ser utilizado.
Nos seres humanos também o vazio é imprescindível. Não existiríamos sem o espaço vazio que há na mulher, que chamamos “útero”. É ele que permite ao embrião crescer e tornar-se uma nova pessoa.
É comum que o vazio é que dê substância e vida à pintura chinesa, podendo se tornar um rio, um lago, a névoa, dependendo da visão do artista, que se utiliza deste espaço em branco para expressar sua sensibilidade. Apesar de ser uma não-existência, o vazio surge como algo quase tangível em um processo de cognição espacial sem igual.
Nas artes marciais e técnicas terapêuticas chinesas como o Qigong, o movimento começa a partir de uma postura em pé, com os braços pendendo naturalmente ao lado do corpo, relaxada, com a mente livre de pensamentos e o olhar focado no infinito. É o estado de Wuji, do qual partem os movimentos. No caso do Taijiquan, as formas começam e terminam na postura de Wuji.
Devemos procurar nos familiarizar com o vazio em nossas vidas. O vazio de ruído, o vazio de pessoas em volta, o vazio de pensamentos tumultuados, o vazio de celulares e redes sociais. Somente a partir do vazio podemos começar a ouvir o Tao.
Gilberto Antônio Silva é Parapsicólogo e Jornalista. Como Taoísta, atua amplamente na pesquisa e divulgação desta fantástica filosofia-religião chinesa. Site: www.taoismo.org
Respostas de 5
Ótimo texto, me lembrou o livro o Tao da física
Gostaria de compartilhar uma outra tradução do mesmo trecho do Tao te ching:
CAPÍTULO 11
Trinta raios convergem ao vazio do centro da roda
Através dessa não-existência
Existe a utilidade do veículo
Os vasos são feitos de argila,
mas é graças ao seu vazio que podem ser usados.
Uma casa é cortada por portas e janelas,
mas é o vazio delas que a torna habitável.
Assim, o ser produz o útil,
mas é o não ser que o torna eficaz
muito bom!
me lembrei do livro A Dança do Universo, do Marcelo Gleiser.
Será por esse motivo que o símbolo do Om é tão semelhante, graficamente, ao número 30 e que cada signo das 12 “casas” seja dividido exatamente em 30 graus? 🙂
Nunca havia pensado nessas relações, José. Mas a escrita do OM é coincidência, porque na época de seu desenvolvimento não havia os algarismos arábicos.