“Uma noite sonhei que tinha feito um pacto com o diabo, o qual se dispôs a me obedecer, em troca de minha alma. Meu novo servo antecipava meus desejos e os satisfazia. Tive a ideia de entregar-lhe meu violino para ver se ele sabia tocá-lo. Qual não foi meu espanto ao ouvir uma Sonata tão bela e insuperável, executada com tanta arte. Senti-me extasiado, transportado, encantado; a respiração falhou-me e despertei. Tomando meu violino, tentei reproduzir os sons que ouvira, mas foi tudo em vão. Pus-me então a compor uma peça – Il Trillo del Diavolo – que, embora seja a melhor que jamais escrevi, é muito inferior à que ouvi no sonho”.
O Monge e o Músico
Giuseppe Tartini (1692 – 1770), o autor do parágrafo acima, foi um violinista e compositor italiano. Compôs exclusivamente para violino, incluindo a famosa sonata “O Trinado do Diabo”. Teorizou brevemente sobre as relações entre música e emoções e fundou uma das maiores escolas de violino da sua época.
A vida de Tartini foi um tanto aventureira. Mesmo proibido pela família, casou-se secretamente com Elisabetta Premazzone, sobrinha de um cardeal que se opôs ao casamento. Seu feito rendeu-lhe uma ordem de prisão, o que levou Tartini a uma longa peregrinação, ou melhor, uma fuga até Assis, onde, disfarçado de Frade, se exilou no mosteiro da cidade.
Em Assis, Tartini se entregou ao estudo do violino, pesquisando novas metodologias e possibilidades sonoras do instrumento. Ali ele fez a descoberta do “Terzo Suono”, o terceiro som, um “fantasma sonoro” que pode ser percebido quando dois sons são intensos o suficiente para chegarem simultaneamente ao ouvido e gerar um terceiro som.
É um efeito semelhante ao dos sons binaurais. No violino, é comum executar este som, basta que o violinista toque notas duplas, se seu ouvido for sensível o suficiente ele ouvirá um terceiro tom, também conhecido como “Tons de Tartini”. Foi em seu livro Tratado de música segundo a verdadeira ciência da harmonia, que Tartini tornou o tema público.
Posteriormente o físico Hermann von Helmholtz explicou cientificamente o funcionamento do fenômeno, argumentando que, além deste, há também os chamados “sons diferenciais adicionais“. Sons que são obtidos pela soma das frequências dos dois sons primários, mas que não são muito perceptíveis ao ouvido humano. Porém, o estudo destes sons são de suma importância na construção de alguns instrumentos.
Além dessa descoberta, Tartini introduziu diversos melhoramentos técnicos no violino, usando cordas mais grossas, diminuindo o tamanho da voluta, construindo um arco mais longo e de madeira mais leve e introduzindo-lhe estrias a fim de possibilitar maior firmeza no ato de segurá-lo.
Passados dois anos, Tartini foi perdoado e voltou imediatamente à companhia da esposa. Neste período, Tartini deu início a carreira de concertista. Suas obras musicais eram executadas de maneira tão inspirada que Tartini ganhou o título de “Mestre das Nações”. Com isto, atraiu inúmeros alunos e em 1728 fundou uma escola de violino denominada Escola das Nações.
Tartini e o Diabo
Foi para o astrônomo francês Jérôme Lalande que Tartini confessou o sonho que o inspirou a escrever a sonata de número 2 opus 1 denominada “O Trinado do Diabo”. Tocando uma bela melodia, trazida diretamente das regiões infernais, o Diabo lhe desafia: “Esta nem você é capaz de tocar”. Admirado e perturbado com a habilidade de sua ilustre visita, Tartini acorda e da início a difícil tarefa de transcrever a obra que acabara de ouvir. Reza a lenda, que passado dois anos após o fato, Tartini tivera o mesmo sonho, podendo assim, concluir parte do que havia esquecido.
A Sonata do Diabo foi originalmente escrita para violino e baixo contínuo, em quatro movimentos, uma estrutura atípica, uma vez que o modelo da forma sonata na época possuía três movimentos. O tema principal tem um início calmo, melancólico e um tanto obscuro, vagarosamente surgem alguns trinados aqui e acolá. Aos 3’33” podemos ouvir o início da dificílima sequência de trinados, mas é aos 8’03” que surge um assombroso encadeamento de trinados não por acaso assinalado na partitura como“Trille du diable”.
O trinado ou trilo (não confundir com trítono, que também foi sutilmente utilizado na composição) é uma repetição rápida e alternada de duas notas musicais vizinhas, que pode variar de um semitom até um tom acima da nota real. Todos estes pequenos tr que vocês podem observar acima das notas na partitura abaixo, são as partes onde deve-se executar o trinado.
O Diabo Interior
De acordo com Jung, devemos tratar nossos sonhos não como eventos isolados, mas como comunicações dos contínuos processos inconscientes. Ao analisar um sonho, não devemos esquecer de considerar as atitudes, a experiência e a formação do sonhador.
O sonho de Tartini representa um clássico pacto faustiniano com o Diabo, mas provavelmente, o que Tartini fez no sonho foi restabelecer a relação com seu alter ego interior. Ele encontrou o que Jung chamou de Sombra, o pequeno diabo dentro de nós, um lado oculto inconsciente que pode ser nosso aliado, se assim permitirmos.
A Sombra é o centro do Inconsciente Pessoal, tudo aquilo que nunca desenvolvemos em nós mesmos, tudo que foi reprimido pela consciência. Portanto, é comum que em sonhos, a Sombra seja representada por um personagem escuro, primitivo e contrário a nós mesmos.
Se considerarmos que, na Kabbalah, o Diabo é o caminho que leva de Hod (a Razão) a Tiferet (a Iluminação), não por acaso, que além de ser considerado o maior violinista do século XVIII, Tartini foi também um grande pedagogo. Tartini soube lidar com sua Sombra, o “Diabo” lhe servira de inspiração para encarar suas falhas técnicas a ponto de desenvolver novas metodologias de ensino para iluminar a mente das futuras gerações de violinistas.
Curiosidades
Da mesma forma que o método “L’arte del Arco“, desenvolvido por Giuseppe Tartini, é utilizado até hoje por violinistas do mundo inteiro, a sonata “O Trinado do Diabo” permanece como “peça de resistência” no repertório dos virtuoses.
O sonho de Tartini chamou a atenção de Helena Blavatsky a qual escreveu brevemente sobre o seu caso em “Um Moderno Panarion” livro que trata de sonambulismo e sonhos. É mencionado também no conto “The Ensouled Violin” publicado em 1892 em uma coleção de histórias conhecida como “Nightmare Tales“.
Nos quadrinhos Dylan Dog, “O Trinado do Diabo” é o trabalho favorito do herói que muitas vezes o executa em seu clarinete.
O “Trinado do Diabo” também é destaque no Anime japonês Descendants of Darkness de Yami no Matsuei.
Respostas de 22
Caramba me lembrei da frase da música do memorável Raul Seixas “É Rock! É Toque! É Forte! Diabo! Foi ele mesmo. Que me deu o toque.”
Parabéns pelo texto, magnifico.
Paz Profunda.
Estou aqui arrepiado! A princípio não me interessei muito pela coluna, mas o post de hoje me deixou bastante interessado, porque mostrou uma relação entre a música e o despertar de nosso inconsciente.
Me diga, essa música foi o resultado de Tartini ter acessado o Diabo Interior ou ela pode ser usada no sentido inverso, digo, para entrarmos em contato com nosso Diabo Interior?
A sombra é o centro? Pensei que era o Self o centro de tudo, consciente e inconsciente…
Costuma-se dizer que o ego é o centro da consciência, a sombra é o arquétipo central do inconsciente e o Self, o centro da totalidade do ser… Posso estar errado, afinal, não sou nenhum psicólogo analítico…
@FDA – Eu também não 😉
Cara, muito bom o post! Não conhecia Tartini mas achei muito interessante essa “conversa” entre ele e o diabo/sombra.
Mantenha esse nível de posts cara! Ou quem sabe vc nao tenha algum sonho tb! hehehe
Abraço
O diabo, enfim, mostra a que veio: “Desperta-te proibido! Faz-se luz ao encarcerado!”
Quando vi demônio + violino pensei logo no Paganini. rs
Mais um violinista para estudar suas obras !
Ótimo post…
?~ (assovio)
A música existe e ainda bem não tem nada a ver com Hunter X Hunter…
Preciso descolar uma caixa de som…
Bacana esse conceito… mais do que suprimir o diabo, por ele para trabalhar pra você… (acho que tem algo assim no prefácio do senhor dos anéis…)
Muitos falham tentando no entanto… Parecem realmente sem alma (crise dos 30?)
Conjecturações demais?
até mais ver
mr.poneis
ps.: não sei se você pode me ajudar, porque é uma dúvida a toa, mas vou perguntar assim mesmo… quando relaciono planetas as esferas da sephirot o certo é Saturno=Binah, Urano=Keter & Plutão=Daat; ou Saturno=Daat; & Urano=Binah; Plutão=Keter? Lembro de ter visto os dois exemplos aqui no TdC, e realmente simpatizo com o primeiro modelo (soa lógico céu = coroa, tempo = entendimento e o hades = abismo), mas sempre fica a impressão de estar passando por tolo…
Ambas estão corretas segundo a forma em que são inseridas. Mas também sou mais fã da 1a. E tem uma em que Netuno = Kether, Urano = Hochmah e Plutão = Daath. E outra que não inclui os planetas transcedentais.
Então funciona desse jeito… Isso explica aquelas versões que vez ou outra tem caminhos que ligam binah+chesed e geburah+hochma em vez de malkuth+hod e malkuth+netzach?
Muito obrigado pela ajuda!
até mais ver
mr.poneis
Muito interessante, não conhecia a obra e fui procurar no youtube, gostei bastante.
Não sei porque, mas essa música me lembra o filme O Último Portal (the Ninth Gate), no qual o Johnny Depp faz o papel de um negociante de livros raros/antigos, e é contratado por um cara pra investigar um suposto livro escrito pelo diabo.
Obrigado pela dica, abraços.
Sem dúvidas o periodo Barroco foi o mais belo da música erudita!
BRAVO!!!
http://www.youtube.com/watch?v=7UPI2srnA1s&hd=1
Porr… trinados em semicolcheias são o cúmulo da sacanagem mesmo…
Pelo menos o editor teve a bondade de evitar trinados com o 4º dedo colocando dedilhados em segunda e terceira posição, kkkkkk
uma versão mais intensa, e mais curta.
http://youtu.be/nQ798THmR5Y
@FDA – Não sou muito fã das versões “dance” que a Vanessa Mae faz com as músicas, mas pra quem gosta fica a dica.
concordo.
Salve!
Para futuras referências dos leitores da coluna, considerar também:
– “A história do soldado” de Stravinsky;
– a “Dança macabra” de Saint-Saën; e
– o tal pacto que Paganini também teria feito para ser o maior violinista de todos os tempos.
Melhores saudações!
engraçado que temos muita sombra reprimida isso desde a infância nossos pais fazem o papel de nos mantermos quietos sem expressão nenhuma …somos um produto
Bom, não li os comentarios inteiros mas seria a musica do charlies daniels band, the devil went down to georgia alguma relação com o fato ? Fala sobre diabo e violino também..sei que o foco do texto não é este, mas somente por curiosidade…
Nota 10 a matéria! mto boa mesmo
Reforço o que a Akira disse em seus comentários: ficamos no aguardo de matérias sobre as obras citadas por ela e acrescento o Passaro de Fogo do Stravinsky tb!
🙂
ps: vanessa mae é uma ofensa à música!
Amigo, queria fazer uma perguntinha, meio “de principiante”, pois afinal sou um mesmo hehe.
Esse lance todo de diabo na música e suas influências, alguma vez já foi relatado algum ritual mágico (seja ele qual for) que despertasse o “Mozart interior” no músico? Quero dizer, quando eu to lá, treinando meus arpeggios, uma hora eu perco a paciencia e não consigo fazer mais nada. Existe algum ritual com o fim de abrir a mente, ou ajudar na música?
” O Diabo não é tão feio como se pinta” – Dom Casmurro/Machado de Assis