» Parte 2 da série “Reflexões sobre o tempo” ver parte 1
“Existe este gigantesco híper-momento onde tudo ocorre, apenas nossa mente está ordenando tudo em passado, presente e futuro.” – Alan Moore.
Agostinho de Hipona talvez tenha sido o primeiro homem a se aprofundar na reflexão filosófica sobre o tempo. O grande pensador do cristianismo abriu caminho para sua análise com um comentário bastante peculiar:
“Que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. [1]”
Então, logo após, colocou em xeque a própria noção da divisão do tempo em passado, presente e futuro:
“Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo claro e brevemente? […] e de que modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro – se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, como poderíamos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir? [2]”
Para tentar resolver tal paradoxo, Agostinho foi se aprofundando cada vez mais no problema do tempo, até que seu caminho puramente lógico lhe levou a uma intrigante conclusão, talvez uma das conclusões mais importantes da história da filosofia – e que até hoje não foi superada por nenhum pensador que lhe precedeu:
“O que agora transparece é que, não há tempos futuros nem pretéritos. É impróprio afirmar: Os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer: os tempos são três: presente das coisas passadas, presente dos presentes, presente dos futuros. Existem pois estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são três. [3]”
Mas a solução de Agostinho não era propriamente uma solução, ela apenas deslocava o problema do tempo para nossa percepção subjetiva do mesmo. Isso significava, é claro, que o tempo não poderia realmente ser medido de forma objetiva, e tampouco era uma medida absoluta. Agostinho havia precedido Einstein em muitos séculos, o ex-boêmio havia se embriagado, desta vez, não de vinho, mas do conhecimento do Cosmos… Ele já sabia que o tempo não poderia ser o mero movimento dos corpos:
“Ninguém me diga, portanto, que o tempo é o movimento dos corpos celestes. Quando, com a oração de Josué, o Sol parou, a fim de ele concluir vitoriosamente o combate, o Sol estava parado, mas o tempo caminhava. [4]”
Podemos ser céticos com relação ao fato do Sol ter realmente parado, mas a essência lógica do pensamento agostiniano estava tão correta na época quanto nos dias atuais…
Atualmente, o tempo é um tema especialmente quente na física. A procura por uma teoria unificada (das quatro grandes forças da natureza) força os físicos a reexaminar diversas suposições básicas, e poucas coisas são mais básicas que o tempo. Alguns físicos argumentam que não existe algo como o tempo. Outros acham que o tempo deveria ser promovido em vez de rebaixado. Entre essas duas posições há a fascinante ideia de que o tempo existe, mas não é fundamental. Um mundo estático dá, de certa forma, origem ao tempo que percebemos. Essas ideias vêm sendo debatidas desde a época dos filósofos pré-socráticos, mas só agora os físicos as estão levando mais a sério como genuínas possibilidades para teorias científicas consistentes… De acordo com uma delas, o tempo pode resultar da maneira como o universo está dividido; ou seja, o que percebemos como tempo reflete a relação entre as partes.
O que normalmente chamamos de tempo é tão somente uma maneira de descrever o ritmo de um movimento ou mudança, tal como a velocidade em que pulsa o coração, ou ainda a velocidade de giro de um planeta. O curioso é que tais processos podem ser relacionados diretamente um ao outro, sem fazer referência ao tempo em si. Por exemplo, tanto podemos afirmar que a luz viaja a 300 mil km/s, que o coração dá 75 batimentos por minuto ou que a Terra faz uma rotação por dia quanto, igualmente, poderíamos dizer que enquanto o coração humano dá 108 mil batidas, a Terra gira em torno de seu eixo uma vez; ou que, por exemplo, a luz viaja a 240 mil km por batimento cardíaco.
Assim, alguns físicos dizem que o tempo é uma moeda comum, tornando o mundo mais fácil de descrever, mas não tendo existência independente. Medir os processos em termos de tempo poderia ser como usar o dinheiro em vez da troca direta de bens e serviços, em nossas relações comerciais. Por exemplo, se uma xícara da café custa US$ 2, um par de tênis custa US$ 100, e um carro usado sai por US$ 2 mil, poderíamos simplesmente esquecer do dólar e concluir de uma forma mais simples, talvez, que um par de tênis vale 50 xícaras de café, enquanto que um carro usado sairia por mil xícaras. Nós usamos moedas para facilitar a vida, pois ninguém vai querer comprar um carro com mil xícaras de café. No entanto, cédulas monetárias nada mais são do que folhas de papel com curiosas gravuras impressas, é a nossa crença em seu valor que as fazem valer isto ou aquilo. Não seria o tempo, portanto, apenas o resultado de nossa crença de que existe um tempo?
O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty argumenta que o próprio tempo não flui realmente e seu fluxo aparente é produto de nossa atitude de “colocar secretamente dentro de um rio uma testemunha de seu curso”. Ou seja, a tendência de acreditar que o tempo flui é resultado de esquecer de colocarmos a nós mesmos – e nossas conexões com o mundo – no quadro geral. Merleau-Ponty estava falando de nossa experiência subjetiva de tempo e, até recentemente, ninguém imaginou que o tempo objetivo pode, ele mesmo, ser explicado como resultado dessas conexões. O tempo pode existir apenas ao quebrar o mundo em subsistemas e olhando para o que os une. Nesse cenário, o tempo físico surge pelo mérito de pensarmos sobre nós mesmos como separados de todo o resto [5].
Se optarmos por nos arriscar a realmente encarar o problema do tempo face a face, precisamos retornar a origem de tudo o que há, ao Big Bang, pois que Einstein também nos provou que tempo e espaço são ambos constituintes, fios tecedores do tecido do espaço-tempo. Não é possível falar de um sem falar do outro, e não é possível falar de ambos sem falar do todo, de todo o Cosmos.
O grande Espinosa, em sua genial análise do primeiro capítulo de sua “Ética”, já havia chegado a conclusão de que “uma substância não pode criar a si mesma”. Como a história cósmica é uma sucessão de transformações e danças de matéria e energia, pela lógica somos obrigados a concluir que tudo o que há é fruto de uma única substância.
Talvez o Cosmos seja como a roda da carroça do velho Lao Tsé, sempre a percorrer os velhos sulcos… Talvez o eixo seja a essência, através da qual a substância se irradia para o aro, que parece-nos girar… Supomos que ele realmente gira, principalmente porque vivemos neste aro, porque estamos todos conectados – somos poeira de estrelas, fagulhas divinas das fornalhas solares, enfim, somos também parte da mesma substância…
Enquanto o aro gira, sustentado pelo eixo, parece-nos que os eventos realmente se sucedem. Mas, e se o aro for o espaço-tempo, sendo constantemente sustentado e mantido pela irradiação que parte do eixo, temos que o tempo, assim como o espaço, nada mais é do que fruto da dança cósmica que a substância de Espinosa têm nos agraciado observar desde o início das eras.
Se for este o caso, não devemos nos angustiar com a profundidade do infinito, tampouco com a ansiedade do futuro ou a saudade dolorida do passado. Se tudo o que há é a substância, tudo o que há é também este momento, o momento em que temos o tempo nas mãos e a vontade, a sagrada vontade, para o esculpir a nosso bel-prazer. Talvez o paradoxo de Agostinho nem precise ser resolvido, não enquanto ainda temos coisas mais urgentes para resolver. Se o passado já não existe, e o futuro não chegou, agarremos ao presente com toda nossa alma, e façamos dele um hino em homenagem à substância, um hino para toda eternidade.
» Na continuação, o final dos tempos…
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[1] Confissões, livro XI (14).
[2] Confissões, livro XI (14).
[3] Confissões, livro XI (20).
[4] Confissões, livro XI (23).
[5] As referências científicas dos 4 últimos parágrafos foram retiradas do excelente artigo “O tempo é uma ilusão?”, do filósofo da ciência Craig Callender, para a Scientific American (edição especial #41, “A longa história do universo”).
Respostas de 9
Entrando no valor do tempo tem um filme que vi há pouco tempo que reflete isso. O slogan dele é meio superficial e em alguns termos é apenas um filme de ação / ficção mas para mim a principal mensagem é relacionada com o valor do tempo.
http://www.oprecodoamanha.com.br/
o tempo, ahh o tempo….
maneiro cara, não pude ver sobre o que é (aqui no trabalho não abre esse link, mas em casa eu vejo, hehe), mas vou comprar seu livro, você escreve muito bem, e o assunto sempre rende um bom ‘tempo’ (de reflexão)!rs
paz e luz!
@raph – Opa, obrigado… O meu livro sairá somente em 2013, mas se frequentar meu blog, ou este aqui, certamente ficará sabendo! Abs.
Também devemos observar que o tempo passa de modos diferentes não apenas para pessoas em movimento, considerável a distâncias de milhões de anos luz, ou dependendo da curvatura do espaço-tempo, como postula a teoria da relatividade; mas pra nós mesmos, seres do mesmo planeta, sob as mesmas condições, quando considerado a quantidade de informações que a mente processa de modo consciente.
Os estados alterados de consciência, obtidos com muitas drogas alucinógenas, alteram totalmente a percepção do tempo. O exemplo mais comum é o da maconha, que causa uma espécie de extensão do tempo, aparentemente relacionada com percepção de sutilidades da realidade, inconscientes sem o uso da droga. Pode parecer que há um paradoxo, quando nos lembramos que quando estamos fazendo algo que gostamos, o tempo passa mais rápido do que quando estamos entediados ou sem nada pra fazer. Na verdade, o que “faz o tempo passar rápido” é o prazer. E o tédio realmente parece longo, mas fica rápido perto do quanto o tempo se estende quando fumamos um e abrimos as portas da mente. Todos que já fumaram unzinho sabem disso, e hão de se lembrar de alguém da galera perguntando que horas eram e em seguida todos surpresos, tipo: ainda?!
Nesse sentido, tendo em vista que o Multiiverso/Todo/Deus é uma puta estrutura infinita produtora de experiencia, faz sentido que a evolução – se considerarmos essa lei espiritual, como é postulada por muitas doutrinas – se caminhe em direção à mentes cada vez mais “potentes” para processar conscientemente grandes quantidades de informações, tendo assim experiências em maior quantidade e profundidade dentro do tempo.
Tal criatura, tendo o véu da inconsciência progressivamente removido e consequentemente aproveitando melhor o tempo – que nada mais é do que a ordenação das experiências -, estaria cada vez mais habilitada a enxergar a profundamente misteriosa beleza da criação, e, maravilhado diante de tanta beleza e enxergando tantos fatores da realidade, teria tendência à comportamentos éticos cada vez mais elevados. Ou não. Poderia cair a qualquer momento, uma vez que teria o livre arbítrio crescendo na medida em que cresce sua percepção da realidade que o envolve, mas, exatamente por isso, a improbabilidade de tais seres cometerem atrocidades seria diretamente proporcional à quantidade de consciência que possuem. Diante disso, podemos dizer que a Natureza é estruturada para o bem, blindada, visto que assegura que seres com grandes percepções se portem gradualmente de modo mais harmônico com a mesma, impedindo (não totalmente, mas probabilísticamente, o suficiente para “proteger” a criação), por exemplo, que entidades maléficas/egoístas sabotem o sistema todo da criação, como por exemplo a falácia do Diabo cristão ou do Demiurgo gnóstico.
Talvez esse sistema seja uma das leis primeiras que rodou na cabeça de Brahman antes de começar O Projeto. Oh, wait, o projeto sempre existiu! Tudo sempre existe. Essa idéia de lei que “protege” o sistema conforme avança ainda fica meio estranha, pois nos dá a sensação de programação. Na verdade, o problema está na palavra protege. Na verdade a palavra ideal seria LIBERTA, ou ILUMINA. São os itens, personagens, cenários e história Do Jogo tornando se cada vez mais transparente. O Jogo sem fim mais excitante que qualquer mente pode conter. O Jogo que talvez ninguém NUNCA DÊ FINAL. Quer algo mais excitante que isso?!
@raph – Fraco, esta reflexão sobre os estados de consciência vs. extensão perceptível do tempo parecem resolver um problema que tinha comigo aqui:
(a) Para quem viaja próximo a velocidade da luz, o tempo passa mais rápido do que para quem fica em “velocidade normal”.
(b) O espírito, por ter menos massa (matéria fluida), poderia teoricamente se mover a velocidades maiores.
(c) No entanto, pela experiência que vemos em sonhos e meditação, por exemplo, o tempo no “plano espiritual” passa MUITO mais devagar do que em nossa realidade. Por isso que sonhos de 15 minutos as vezes parecem-nos como longas histórias…
Este era o problema.
Mas com sua reflexão, podemos considerar que, pelo contrário, a consciência expandida parece se mover ainda mais devagar. O mundo parece parar de girar…
Isso faz sentido se considerarmos que o estado de iluminação seria um “sair da roda do tempo”. Talvez o reino do Nirvana seja, afinal, um lugar onde o tempo praticamente não passe para nós, enquanto todo o universo material continua a girar ao redor.
Dá o que pensar!
Então… Primeiro sobre a velocidade da luz x tempo, pelo que eu me lembro era o inverso (de um documentário que te falei, Além do Cosmos, com Brian Greene): quem viajasse à velocidade da luz passaria o tempo mais lentamente (sem perceber, claro). Tpw, em 10 minutos dando rolê pela Terra à 300.000 km/s, aqui teriam se passado uns 50 anos. O interessante é que a pessoa não percebe, assim, o tempo também é subjetivo.
Sobre a consciência expandida se mover mais devagar, talvez seja. Talvez seja apenas uma sensação por estar processando mais informações… uma ilusão, com o tempo passando normal na verdade. Mas na verdade tudo é uma ilusão né, porque é subjetivo, e precisamos da ilusão pra nos ordenar, sequenciar no meio desse mar onde tudo acontece que Alan Moore falou.
Engatando com o Nirvana, tendo essa relação de consciência ampliada diretamente ligada à extensão perceptível do tempo em mente – uma vez que estabelecemos que o tempo nada mais é do que sequências de eventos (quanto mais eventos percebidos (não só físicos, mas também emotivos e mentais) = tempo mais longo; quanto mais consciência = mais eventos percebidos = tempo mais longo) -, talvez possamos dizer que a escada da consciência caminha para um desacelerar do tempo intensificador da percepção (e talvez da emoção?), onde o cume de tudo (Nirvana) seja perceber TUDO, ou seja, O Grande Hipermomento Sobreposto onde Tudo acontece (a Onisciência de Deus?); e parece que esse Hipermomento se relaciona bem com a ideia de parado e extremamente belo, já que nele há tudo, e o que se transforma são as consciências o experimentando, dançando Nele (O Eterno, O Imutável, O Eu Sou).
Foi uma boa viagem esse último parágrafo, muito válido para pensar sobre Deus, embora eu duvide que o Nirvana seja de tamanha grandeza, pois, como descrito, parece que vc “deu final” no jogo infindável (paradoxo), e gosto de ver o Nirvana mais como uma fase a ser ultrapassada, algo mais modesto (porém, claro, grandioso para o nosso estágio).
@raph – Pois é, também gosto de lembrar que o Buda alcançou o Nirvana aos 35 anos (aprox.), e que somente depois disso passou a ensinar aos outros a sua volta sobre o que havia aprendido. Então: (a) Ele não meditou “a vida toda” (como muitos imaginam, sem haver pesquisado); e (b) Ele continuou “neste mundo”, e parece que este mundo era de fato importante para ele, senão não teria passado o resto de seus dias ensinando os outros (não exatamente o mesmo que “evangelizando os outros”). Abs.
Entrou 3 tempos! Inumeráveis oportunidades nos dá os sonhos e o tempo preso é se sentir Deus. Mas tem que ter algo no sangue pra ser tão automático e isto pode sair caro no fim. Sei que o terror não foi só meu e ainda temo a virada, porque j´pa fui Deus e perdi o estágio. Ainda bem que não viram mais a cabeça de vocês, isto conseguimos, conhecereis a verdade e ela vos libertará! Bom exercício cito! Abraços
Como sem aceitação alcançar o nada? Pois tudo existe, assim nada existe também, e o nada é pensar em existir, ser é sentir e faz parte do que tudo existe, sem a aceitação do tudo não existe o nada, pois se tudo não existir, só existe o nada, que não vai ao ponto, a superfície precisa existir para que tenha profundeza, assim mesmo um ser superficial não conta com o não ser, a resposta é nada, mas tudo é pergunta, temos que usar das perguntas, e esquecer que a resposta é nada. errado=tudo – O certo=nada. “nada é certo” implicando com a existência.. de um futuro premeditado?
http://www.youtube.com/watch?v=l5UYB9NqmqQ
Atenção pra última declaração do xamã nos últimos segundos, mas vale ver o vídeo todo.