Para Cármides, Sócrates diz que se tornou um xamã durante a batalha de Potidéia, quando ainda era um jovem soldado grego [1]. Para a grande maioria dos estudiosos, entretanto, não é crível que Sócrates tenha passado por uma iniciação espiritual em meio à guerra. Tais coisas, supõe-se, não teriam como ocorrer nesse tipo de ambiente. Será mesmo?
No Banquete, Alcibíades relata, talvez, o êxtase socrático de maior duração, 24 horas ininterruptas de transe: Sócrates imóvel, insensível às exigências normais do corpo e a tudo o que ocorre em torno dele, totalmente ausente. Ora, mas Alcibíades era um companheiro de Sócrates na batalha da Potidéia, e tal relato se refere à experiência mística socrática bem no meio da guerra!
Dizem então, os estudiosos, que o xamanismo socrático é nada mais que uma metáfora: Sócrates é capaz de curar a alma pela palavra, assim como os xamãs curam por seus encantamentos. Na verdade, os estudiosos tem razão em dizer que Sócrates curava a alma pela palavra, mas isto não é somente uma metáfora: é a essência da magia. Sócrates era, portanto, um xamã, um feiticeiro, exatamente porque sabia “curar pela palavra”.
Nem tudo que o homem com olhos de touro experienciava em seus êxtases podia, no entanto, ser dito… Conta-nos Alcebíades que, após um dia em transe na Potidéia, Sócrates volta a “realidade normal”, faz uma prece ao sol, e depois age normalmente, como se absolutamente nada tivesse transcorrido. Essa maneira de retomar contato com a realidade ordinária denota o caráter místico da experiência. Mesmo o destinatário da oração, o sol, indica uma relação de Sócrates com a natureza e os elementos que não provém da religião grega clássica [2].
Esta iniciação xamãnica tampouco foi o único êxtase socrático. No caminho para a festa organizada por Agatão no Banquete, Sócrates estava a seguir com outro convidado, Aristodemos, mas durante o caminho “isola-se em seus pensamentos” e fica para trás. Aristodemos chega sozinho a casa de Agatão, que envia um criado para buscar Sócrates. O escravo o encontra de pé, sobre o pórtico da casa vizinha, mas o filósofo não responde aos seus chamados. Aristodemos explica que é inútil insistir: o fenômeno é habitual em Sócrates; isso se apodera dele em qualquer lugar, mas após um tempo ele acaba por retornar. Os outros não esperam por “seu retorno a esta realidade”, e quando Sócrates “chega”, já estão no meio da refeição.
Hoje em dia um sujeito como Sócrates seria taxado de “completamente lunático”, mas em sua época foi conhecido como um dos homens mais sábios de toda Grécia, ou pelo menos entre os seus seguidores e amigos, que como sabemos não foram poucos; e podemos contar dentre eles alguns dos maiores filósofos da história do Ocidente. Porque, afinal, seguiam aos ensinamentos, a “palavra xamãnica”, de um “homem louco”?
Pode-se questionar, claro, se o transe socrático se impunha à força, ou se Sócrates tinha como escapar dele. Não temos, é evidente, uma resposta precisa. Talvez Sócrates, sentindo vir o êxtase, não pudesse evitá-lo, talvez considerasse esse estado tão superior às convenções sociais que achava absurdo privar-se dele. Apesar disso, de acordo com os relatos dos livros de Platão, Sócrates não parece ter “o controle da situação”: é arrebatado sem ter desejado nem previsto, por vezes, literalmente, no meio da estrada.
É evidente que gostaríamos de saber o que vivenciava o sábio grego durante esses longos arrebatamentos, que visões lhe poderiam ser oferecidas, que conhecimento tiraria delas. Quando chegou ao banquete, Agatão lhe pediu para que ele tomasse o lugar a seu lado, e lhe contasse sobre “as descobertas” que acabara de fazer. Mas Sócrates esquiva-se, e encerra o incidente com uma ironia: “Basta estar perto de um sábio para participar de sua ciência, e vou pôr-me ao lado de ti, que acabas de obter tal sucesso com [a análise da] tragédia”. Agatão não se engana, sabe que nada mais vai saber acerca do “incidente”.
Em realidade, ninguém ousava insistir nestes questionamentos… Um pudor compreensível diante do inconcebível. Não se fala dessas experiências, pois estão ligadas ao incomunicável, ao que nem a “palavra mágica” de Sócrates era capaz de dar conta. Esse saber, a sophia, não passa de um espírito para o outro, é um conhecimento que não se transmite e do qual Sócrates jamais se refere diretamente.
O encantador ateniense teve a honestidade de não explorar seus êxtases para apresentar-se como detentor de saberes divinos, o que significa que jamais pretendeu transmitir uma revelação ou um conhecimento “superior”. Paradoxalmente, afirmam outros estudiosos, vê-se Sócrates sempre repetir que “nada sabe”.
Mas a verdadeira questão em jogo é: “nada sabe em relação ao que?”. Vemos no pensamento socrático inúmeras referências aos mitos antigos dos reinos das almas [3], embora ele certamente jamais afirme “ter alguma certeza em relação a isso”. Mesmo ao ser condenado a morte, se pergunta “se estaria em situação melhor ou pior do que aqueles que ficariam do lado de cá”. Mas se a morte não fosse nada, no entanto, ele nada teria de se preocupar, afinal… Sócrates, porém, parecia se lembrar, parecia saber de algo que poucos homens na história compreenderam. No relato de sua morte, todos os seus amigos próximos estavam aos prantos, e ele parecia tratar a ocasião como “algo trivial” ou, quem sabe, apenas mais um de seus êxtases a se aproximar – só que este seria mais longo.
Aquele que se julga “normal” não encontra outra alternativa que não julgar Sócrates como “um louco”, da mesma maneira que muitos céticos de hoje em dia julgam as práticas místicas “uma loucura coletiva”. Mas, afinal, o que seria exatamente esta loucura em que as pessoas podem “entrar e sair”, e depois disso seguirem com suas “vidas normais”, sem terem nenhum tipo de incapacidade mental relacionada à prática em si? Sócrates foi um soldado, serviu bem sua pátria, e depois tornou-se um sábio, um filósofo, e encantou aos jovens, e enfeitiçou ao pensamento ocidental, muito embora pudesse muito bem ser julgado, segundo os padrões da “normalidade”, um perfeito lunático!
Não é sua culpa que tenham se usado de seu pensamento para construírem dogmas. Sócrates, afinal, não deixou nada escrito [4], e tampouco afirmou que tinha certezas. Todo o seu pensamento é baseado nas suas próprias dúvidas, sobretudo na maior delas, aquela que se colocava frente a algo em que não quis acreditar por toda a vida: “Que era, realmente, o maior sábio da Grécia” [5]… Passou a vida buscando por alguém efetivamente sábio, mas se viu cada vez mais solitário na empreitada.
Houvesse Sócrates encontrado alguém que tivesse, como ele, subido por breves momentos no alto da caverna, e visto ao sol diretamente, talvez pudesse ter com quem falar acerca do indizível. Talvez não, pois afinal as palavras, estas cascas de sentimento, estas cascas de êxtases pregressos, talvez estas sejam mesmo incapazes de explicar a inconcebível natureza da Natureza. Aquele que acha que sabe, não sabe. Aquele que sabe que não sabe, este começou, finalmente, a saber…
“Medita agora e examina a fundo, gira teu pensamento em todas as direções, recolhido sobre ti mesmo. Depressa, se cais em um impasse, salta para outra ideia de teu espírito; e que o sono doce ao coração esteja ausente de teus olhos”. (Sócrates em As nuvens, de Aristófanes, 700-705)
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Bibliografia recomendada
Sócrates ou o despertar da consciência, de Jean-joël Duhot (Edições Loyola); Sócrates, o feiticeiro, de Nicolas Grimaldi (Edições Loyola).
[1] Em Cármides, de Platão.
[2] De fato, uma das acusações que levaram a sua pena de morte foi exatamente a de ateísmo: não seguir aos deuses locais, mas “à um outro deus desconhecido”.
[3] Ele também foi iniciado nos chamados Mistérios de Elêusis, embora muito pouco, ou quase nada para ser mais exato, nos tenha chegado acerca do significado oculto, esotérico, destes rituais.
[4] Há uma célebre e profundamente irônica crítica de Sócrates a escrita descrita no Fedro, de Platão.
[5] A pitonisa do Oráculo de Delfos uma vez lhe afirmou isso quando ele perguntou quem seria o homem mais sábio da Grécia. Ora, era ele mesmo!
Crédito das imagens: [topo] Wikipedia (Jacques-Louis David, A morte de Sócrates); [ao longo] Google Image Search
Respostas de 7
Muito bacana o texto. Gostaria só de fazer alguns acréscimos. Sócrates foi acusado de ateísmo e por corromper os jovens atenienses, mas sua defesa relatada na “Apologia de Sócrates” escrita por Platão deixa bem claro que ele acreditava nos deuses da Hélade. Sócrates foi acusado de ateísmo como uma jogada política, pois ao verificar o que disse o Oráculo de Delfos (coisa que ouviu por seu amigo Querefonte, não pessoalmente como diz o texto) de ser ele o homem mais sábio, questionou a maior parte dos homens de conhecimento da Hélade e constatou que estes, no fundo, sabiam muito menos do que promoviam. Ao tornar isso público, Sócrates feriu vaidades que lhe custaram a liberdade e a vida.
É claro também numa análise das obras que falam da vida de Sócrates que ele não apenas cria nos deuses gregos, mas também tinha uma relação muito próxima com seus mensageiros, os daimones. Há estudos filosóficos acerca do daimon de Sócrates, ao qual o sábio sempre ouvia como uma voz a lhe dizer o que fazer a cada momento. Atribui-se, inclusive, o fato de Sócrates não haver tentado fugir de sua pena quando teve a oportunidade (isto está maravilhosamente descrito em Fédon) ao fato de seu daimon, que sempre o orientava para situações favoráveis, nada se pronunciar a respeito de seu julgamento e sua morte. O daimon, uma voz sempre presente a qual o sábio fielmente seguia, é um personagem muito importante a se considerar quando se fala dos “êxtases xamânicos” de Sócrates.
@raph – Obrigado pelo complemento Fábio. Para quem não entendeu “deuses da Hélade”, é o mesmo que “deuses gregos”…
Eu não sei o termo “crer” se aplica nas relações de Sócrates com as divindades, mas sim que ele respeitava, e muito, o papel que os deuses tinham na vida cotidiana do povo ateniense, e o que representavam como produto de cultura e como espelhamento do ser humano. Ele participava ativamente das celebrações, principalmente daquelas oferecidas a deusa Atena.
Em “A República”, de Platão, isso fica claro logo no início, pois se me lembro bem há um trecho em que o mesmo diz a um dos interlocutores que ele não entende o embebedamento incondicional do povo nos deuses, mas que isso por si só é algo elevadíssimo e inerente a situação privilegiada dos homens na natureza.
Mas enfim… who knows?
@raph – Acho que Sócrates também era adepto do “crer para compreender, compreender para crer”. Ele questionava todas as suas crenças o tempo todo, e usava os diálogos, quem sabe, para coloca-las a prova. No Fédon temos um exemplo muito claro disso (mesmo falando sobre a possibilidade da vida após a morte [ou após a vida], ele ainda afirma que “não sabe se está indo para um lugar melhor ou pior do que aqueles que ficarão em Atenas”, algumas passagens antes de ingerir a cicuta)… Mas, sobre a crença em “deuses”, acredito que ele compreendia a existência de um “Deus dos deuses”, e de “deuses” que em realidade eram algo próximo ao seu próprio Daimon pessoal.
Já que a maior parte do que nos foi legado por Sócrates, indiretamente, foi por meio de Platão, interessaria analisar aquela “descoberta de um código secreto” que um historiador fez a respeito dos livros de Platão? O que ele afirma que havia nesse código seria tão à frente do seu tempo que, se de fato Sócrates afirmou o mesmo abertamente a seus discípulos, não me espantaria sua condenação…
http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=codigo-secreto-platao&id=010850100630
Sempre acho incrível as histórias de Sócrates.
Já li diversos diálogos platônicos observando as atitudes de Sócrates para encontrar algo como o “uso de feitiçaria”.
Parabéns pelo texto!
Gostaria, se não for pedir muito, de ver textos do pré-socráticos Heráclito, do “pós-socrático” Aristóteles, e peço mais uma vez, do estoico moderno Sêneca.
@raph – Não entendo muito de Heráclito e Aristóteles (não o suficiente para escrever artigos), mas Sêneca é um estoico que gosto muito, mas sobre quem nunca escrevi um artigo… Espero escrever um em breve. Abs.
Lindo Rafael, lindo mesmo !, parabéns pelo texto; de uma sutileza e leveza inspiradora.
@raph – Obrigado 🙂
será q era adepto dos cogumelos magicos?
@raph – http://textosparareflexao.blogspot.com/2011/11/intoxicados-parte-1.html
Ótimo texto! Tenho certeza que Sócrates foi um dos muitos avatares enviados à terra com a missão de trazer a iluminação ao homem! É uma pena que poucas pessoas falem sobre esses aspectos dos grandes filósofos gregos!
Paz, Luz, Amor, Fé e Caridade!
@raph – Reflita adiante!; é tudo o que eu tenho feito por aqui 🙂