O que há para se conservar?

“Nada no mundo pode durar para sempre” (frase encontrada numa parede em Pompeia)

Os conservadores insistem em manter o mundo tal qual ele é, ou foi, nalguma “época áurea” em que tudo funcionava, e a moral e os bons costumes eram regra geral do procedimento do bom cidadão. Seu ofício mental é o de relembrar aquilo que já passou, numa tentativa hercúlea de “trazer de volta”, conservar, manter tudo como “sempre foi”.

Os conservadores vivem numa ilha de puritanismo cercada do fluxo selvagem da mudança por todos os lados. O mundo é, afinal, um fluxo… Todos que observam a Natureza percebem isso cedo ou tarde, mas os conservadores insistem em sua crença de que tudo “pode e deve permanecer como está”. É o fundamentalismo da estagnação…

Mas não devemos nos deixar iludir pelos rótulos. Chamar alguém de conservador não significa que aquela pessoa aceite a alcunha, nem tampouco que ela seja 100% conservadora. Dizem que os conservadores são “de direita”, mas há muitos conservadores “de esquerda”. Estes gostariam tanto de conservar a sua própria utopia e o seu próprio ideal, que chegam a embalsamar os seus líderes, tal qual aos egípcios antigos, talvez também mais por motivos políticos do que religiosos.

Quando a Dama de Ferro disse que “não existe essa coisa de sociedade”, estava se alinhando a uma ala dos conservadores que preferiram conservar a ideia do indivíduo. Eles creem piamente que um indivíduo pode “vencer na vida” sem ajuda da sociedade – e que, dessa forma, o Estado, que representa a sociedade, não deveria intervir nos afazeres do indivíduo que está ali, afinal, apenas para “vencer na vida”. Mas, se refletirmos um pouco, o único indivíduo que “venceu na vida” sem uma sociedade é aquele que viveu a vida toda num deserto ou no cume de alguma montanha isolada. Mas neste caso, o fato de ele haver “vencido na vida” nem faz muito sentido, não é mesmo?

Vamos ser sinceros aqui: nenhum ser humano consegue viver sozinho. Podemos não admitir ou não enxergar, mas somos seres gregários, e não há indivíduo que viva fora de uma família, ou grupo, ou sociedade… Portanto, me parece óbvio que existe uma sociedade, a grande questão é o que ela reflete. Pois que toda sociedade reflete o pensamento de seus indivíduos. Quando uma sociedade prefere “fingir que não há sociedade”, é obviamente para o proveito de uma elite, exatamente aquela que “já venceu na vida” – seja no berço, seja através do Mercado.

Por outro lado, pretender que todos os indivíduos de uma sociedade tenham direitos precisamente iguais é uma utopia ainda um tanto quanto inalcançável… Direito a educação básica, a saúde, a uma defesa nos tribunais, ok. Direito a um mesmo salário e um mesmo naco de terra, é hoje obviamente impraticável. Não estamos preparados para a grande utopia da Fraternidade Universal, e a prova disso é que sempre que isto foi tentado, terminou como uma imitação de um feudalismo bizarro, onde o “líder do partido” era uma nova espécie de senhor feudal.

Dizem que não há nada de novo debaixo do Céu, mas ainda que nenhuma substância se perca, apenas se transforme, fato é que tudo muda, tudo vibra, e nada está parado. Os ponteiros sempre se movem no Cosmos, e isto é também válido para este mundo cá embaixo… Você não está parado nenhum segundo, nem quando medita num quarto com as cortinas fechadas. As placas tectônicas se movem e carregam continentes, e este é um movimento lentíssimo… Mas o próprio planeta gira que nem pião ao largo de uma estrela, e esta estrela não está fixa. Sóis como o nosso estão girando em torno de gigantescos buracos negros no centro das galáxias, e mesmo as galáxias estão catapultadas ao Infinito, agrupadas em grandes aglomerados… Mas o conservador gostaria muito de crer que “tudo pode continuar sendo como era antes”!

O que há para se conservar? Certamente, os bons exemplos, os bons pensamentos, as mais belas emoções… Conservemos não uma fronteira ou um sistema político-econômico, mas uma sabedoria muito mais antiga do que a civilização em si. O Chefe Seattle, por exemplo, respondeu assim ao presidente americano (que fez uma oferta pela terra dos indígenas do oeste americano): “Ele diz que deseja comprar nossa terra, mas como pode um homem comprar ou vender a terra, as florestas, os rios, o céu? Esta ideia é estranha para nós”.

O que há para se conservar? Decerto não os hábitos moribundos dos charcos de pensamento estagnado; Decerto não os preconceitos e os dogmas de religiosidade represada; Decerto não a ignorância e o medo do que é novo… São os jovens que herdarão esta terra, aqueles recém-chegados da Mansão do Amanhã. Mas eis que todo o livre-pensador se mantém jovem (ou relembra de sua juventude); e todo poeta, e todo dançarino, recitam, cantam e dançam; e rodopiam num campo de ventos sempre frescos.

Louco não é o dançarino do Cosmos, louco é aquele que acha possível apanhar o vento com as mãos e o trancafiar nalguma “doutrina”… Não há nada de novo debaixo do Céu, exceto o próprio Céu – a cada vez que o ponteiro se move, tudo muda.

E o ponteiro está se movendo neste momento, e os dançarinos estão seguindo o ritmo de seu fluxo divino…

Esta dança não acaba nunca.

***

Crédito da imagem: Scott Barrow/Corbis

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.

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Respostas de 7

  1. Muito bom! Você escreve muito bem! Esse texto caiu bem pro contexto das eleições.
    O que acha que será de nós se a direita ou a esquerda ganharem?Abraço 🙂

    @raph: Oi Leonardo, obrigado… Acho que nem fará tanta diferença se o vencedor for PT ou PSDB, até mesmo pq seja qual deles vencer, o PMDB dará o seu jeito de continuar governando o Congresso, o Senado e, consequentemente, o país… Abs.

  2. Ótimo texto, adicionaria apenas algus comentários:

    Uma vez vi um senhor falando que ser conservador não é querer congelar tudo num momento definido e assim mante-lo para sempre. Mas ser conservador é evoluir( a sociedade) com algum proposito, com algum sentido e testanto as mudanças gradualmente, ao contrário daqueles que desejam “queimar” tudo e reiniciar do 0 ou simplesmente destruir nossa cultura e “ver no que dá”.

    @raph: Exato, é por isso que temos de tomar cuidado com os rótulos. Não há nada mais revolucionário do que o conservadorismo da sabedoria 🙂

    Em sociedades mais evoluidas a meritocracia funciona pois ninguem mais está na base da piramide de Maslow e assim, cada 1 pode escolher o que deseja ser na vida. Em sociedades como no Brasil infelizmente isso não ocorre pois muitos lutam apenas para comer. Neste caso acho muito valido iniciativas como o bolsa familia.

    Mas não acho bom a forma como é feito hoje, onde existem filhos do bolsa familia que se tornam pais do bolsa familia e depois avós do bolsa familia. Acredito que deva existir 1 tempo limitado para o recebimento de tal beneficio, assim a pessoa se obriga a ir atrás ela própria de melhorar de vida, pois acaba a certeza de que tera 1 salario vitalicio oriundo do trabalho dos outros.

    @raph: Realmente, e devemos notar que, com nosso sistema tributário indireto, onde por 1kg de arroz ou feijão tanto o rico quanto o miserável pagam o mesmo imposto, o Bolsa Família acaba sendo quase que uma “compensação” mesmo. Na realidade a raiz do problema continua sendo a desigualdade de oportunidades e renda, assim como o sistema fiscal altamente injusto. O governo petista pode ter melhorado a desigualdade, mas sequer tocou numa reforma tributária… Agora estão pagando o preço por tantos anos “empurrando as reformas necessárias com a barriga”… Abs.

  3. Citações de Nisargadata Maharaj

    “Nada que você faça mudará a si mesmo“

    “Somente quando a própria idéia de mudança é vista como falsa e abandonada, o imutável pode surgir“,

    “O que muda não é real, o que é real não muda”.

    “Você não pode estar consciente daquilo que não muda. Toda consciência é
    consciência de mudança.Mas a própria percepção de mudança – ela não necessita
    de um fundo imutável?”

    “A pessoa é meramente o resultado de um mal
    entendido. Na realidade, não há tal coisa. Sentimentos, pensamentos e ações
    correm diante do expectador em infinita sucessão, deixando traços no cérebro e
    criando uma ilusão de continuidade. Uma reflexão do expectador na mente cria o
    senso de “eu” e a pessoa adquire uma aparente existência independente. Na
    realidade não há nenhuma pessoa, somente o observador identificando-se com o
    “eu” e o “meu”.

    “Realize que o que você pensa ser si mesmo é simplesmente uma cadeia de
    eventos; que enquanto tudo acontece, vem e vai, você sozinho é, o imutável entre
    o mutável, o auto-evidente entre o inferido. Separe o observado do observador e
    abandone as falsas identificações”.

    “É porque “eu sou” é falso que ele quer continuar. A realidade não
    necessita continuar-sabendo-se indestrutível, ela é indiferente de formas e
    expressões. Para fortalecer e estabilizar o “Eu sou”, nós fazemos todo tipo de
    coisas – todas em vão, pois o “eu sou” está sendo reconstruído de momento a
    momento. É um trabalho incessante, e a única solução radical é dissolver o senso
    separador “eu sou” tal ou qual “pessoa”. Não é o “eu sou” que é falso, mas o que
    você toma como sendo você. Eu posso ver, além de qualquer sombra de dúvida,
    que você não é o que você acredita ser”.

    “Desejo, medo, problema, alegria, eles não podem aparecer a menos que
    você esteja lá para que eles possam te aparecer. Assim, o que quer que aconteça
    aponta para sua existência como um centro de percepção. Abandone os
    apontadores e esteja consciente daquilo que eles estão apontando”.

    Citações de Ramana Maharshi:

    Você quer ver Deus em tudo, mas não em si mesmo? Se tudo é Deus, você não está incluído nesse tudo?

    Somente Deus, que parece ser não-existente, verdadeiramente existe, enquanto que o indivíduo, que parece estar existindo, é sempre não-existente. Os sábios dizem que o estado no qual a pessoa conhece sua própria não-existência (sunya) apenas é o glorioso conhecimento supremo.

    Nós identificamos o “eu” com um corpo, nós consideramos o Ser como tendo um corpo, e como tendo limites, e disso vem todos os nossos problemas. Tudo o que temos que fazer é deixar de identificar o ser com o corpo, com formas e limites, e então conheceremos nós mesmo como sendo o Ser que sempre somos.

    @raph:

    Antes de ser aniquilada, nenhuma alma
    é admitida na sala de audiências divina…

    O que é a “ascensão ao céu”?

    A aniquilação do eu;
    o abandono de si mesmo – é só isto
    toda a religião dos amantes…

    (Jalal ud-Din Rumi)

  4. …Na verdade, somos uma só alma, tu e eu.
    Nos mostramos e nos escondemos tu em mim, eu em ti.
    Eis aqui o sentido profundo de minha relação contigo,
    Porque não existe, entre tu e eu, nem eu, nem tu.

    Rumi

    @raph: _/\_

  5. Há falta de informação e conceitos bem definidos aí. O conservador não deveria “conservar”? Como ele pode conservar algo que não existe mais? Pois é isso que você está dizendo em “ou foi, nalguma “época áurea” em que tudo funcionava”, “numa tentativa hercúlea de “trazer de volta”” e “tudo continuar como era antes.” Nesses termos, você está falando de um reacionário e não conservador. Além disso, ter apenas essa visão de que tudo se reduz a “conservar” é falha.

    Por que você amanhã não muda de nome? E depois mude de emprego. Na semana seguinte, de cidade. No mês seguinte, apague todos seus escritos. E siga assim pro resto de sua vida. Por que não faz isso?

    Ora, há um entendimento de que se deve haver certas bases e seguranças e é isso o que eventualmente o conservadorismo ideológico defende.

    Talvez, você mudar de emprego seja uma boa coisa pra você, de fato. Mas você não vai abandonar tudo simplesmente porque é um emprego novo; você quer garantias.

    O novo, ou a mudança, não é melhor só porque veio depois do velho, ou do já estabelecido. E por isso o conservadorismo esclarecido vê com ceticismo propostas altamente revolucionárias e prefere mudanças graduais para que não exista um rompimento da ordem.

    Escrevo esse comentário primeiro porque você aparentemente é contra qualquer tipo de fundamentalismo e preconceitos, e porque há uma concepção muito negativa quando usa-se o termo “conservador”. Dependendo do caso, desta concepção se faz um uso apropriado, é verdade, mas não pode se limitar a apenas isso.

    @raph: Não há nada mais revolucionário do que o conservadorismo da sabedoria 🙂

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