A vida nas montanhas fez muito bem a Oliver. Caminhava quase todos os dias pelas trilhas até pedras com vistas belíssimas para os vales salpicados de bois aqui e ali, e nas noites de verão às vezes madrugava lá no alto, sozinho com sua luneta e uma garrafa de vinho… Com tudo isso passou a escrever não somente em prosa, mas em poesia, no seu Caderno do Amor.
As filhas preferiam vir visitá-lo de vez em quando do que ter de lidar com ele na capital. Em todo caso, a família chegou a um consenso de que era melhor simplesmente não mais relembrá-lo de sua amada Maria. Pensaram: “O luto já passou, assim ele vai muito bem.”
Seus livros cada vez vendiam mais, era agora reconhecido não somente como grande divulgador científico, mas também como um dos mais inovadores poetas dos últimos tempos. “Quem diria” – repetiam os críticos –, “um astrônomo que trata das estrelas como poesia”… A verdade é que qualquer cientista de mais idade que se metesse a escrever de forma não ortodoxa já chamaria atenção suficiente. Mas a outra verdade é que ele era mesmo um excelente poeta, pois em seu âmago sentia alguma tristeza obscura.
Ele preferia não comentar com ninguém, mas sempre que relia seu Caderno sentia que faltava alguma coisa… Era sobre isso que suas poesias tratavam, só que ninguém percebia. Ele olhava as estrelas, a constelação de Órion, e se perguntava se elas não queriam lhe dizer algo. Era quase como um “chamamento” – isso acabou acarretando uma depressão que ele também soube esconder dos irmãos e das filhas, pois que sempre foi muito inteligente – ou nem tanto assim…
Num fim de tarde estava encarando o abismo do alto de uma de suas pedras preferidas. Seus pensamentos eram um tanto confusos, mas já no início da idade que muitos chamam de “idosa”, acreditava que seria mais fácil, talvez, abreviar um pouco a vida… Queria deixar o vento carregá-lo, queria descobrir o que faltava em sua vida, o que havia esquecido, o que as estrelas tinham a lhe dizer…
Foi desperto abruptamente de seus devaneios por um latido de cachorro… Virou-se surpreso e viu o golden retriever um pouco mais acima nas pedras. Era o cachorro do Sr. Heinz, um judeu alemão que havia ido morar lá desde a fundação da cidade, fugindo da ignorância dos homens do norte. O Sr. Heinz era uma pessoa muito espiritualizada, e somente por isso Oliver se esquivava de conversar com ele – era o único que percebia sua depressão, disso tinha certeza.
“Suba aqui, Oliver. Vamos conversar. Eu sei que você quer me contar seu problema, vamos aproveitar o fim de tarde aqui de cima. As montanhas vão continuar onde estão por muito tempo ainda…” – Disse o velhinho.
Conversaram por quase duas horas. Tempo suficiente para Oliver lhe contar que apesar do seu amor pelas estrelas, apesar dos irmãos e das filhas adotivas, e mesmo apesar de seu estranho esquecimento, sentia que sua vida não era tão diferente assim das vidas dos outros. Seu problema era o cintilar das estrelas – ele sentia, ele sabia que elas queriam lhe dizer alguma coisa… Talvez o que não pudesse saber na vida, soubesse na morte.
“Ora, e o que é a morte, senão o eterno renovar das coisas que formam a vida? Você diz que não é tão diferente dos outros, e digo que não é mesmo. Todos morremos, como você, todas as noites. E todos renascemos, como você, todas as manhãs. A única diferença é que a sua experiência é um pouco mais intensa.”
“Um pouco mais intensa?! Mas eu esqueço de todos que conheci e amei desde a adolescência, esqueço até das minhas próprias filhas! Estou sempre perdendo e redescobrindo o amor. Nunca fui muito chegado a drama, mas sou obrigado a admitir que a minha vida é o maior drama do mundo!”
“Isso é o seu ego que admite. Em sua essência, você sabe muito bem que nunca perdeu o amor. Você perde memórias, mas não a capacidade de amar. A potencialidade de amar, em você, nunca diminuiu… Todo esse drama – ‘o maior drama do mundo’ – só serviu para te tornar uma pessoa mais e mais sensível e amorosa, basta ler suas próprias poesias para lembrar disso… Aliás, não que precise não é? Pois você nunca esqueceu de uma poesia sequer.”
Era isso, essa era a resposta! Oliver nunca se deu conta de que seu sofrimento tinha a ver não com o esquecimento, mas com o relembrar! Ele recordava de cada poesia que havia escrito, e suas poesias eram carregadas de sentimentos e emoções – ele estava se livrando de sua maldição, estava voltando a relembrar, lentamente, cada momento e cada emoção de sua vida… Voltou-se para o Sr. Heinz e perguntou, de olhos já marejados:
“Mas como eu posso abreviar esse processo? Como posso relembrar o que as estrelas estão a me dizer?”
“Ora, é muito simples. Até hoje você se maravilhou com as estrelas e as mensagens que sua luz nos traz a cada noite… Agora, basta apontar sua luneta para outra direção, para ler as mensagens que as estrelas de sua própria alma têm lhe trazido, mas que você deixou aí dentro – presas. É importante ler a mensagem da noite infinita, mas é ainda mais importante ler a mensagem do próprio ser em si.”
E desde então Oliver tem apontado sua luneta para a imensidão que se esconde dentro de si mesmo. Embora nunca tenha deixado de amar as estrelas lá fora, agora passou a amar as estrelas lá dentro… Particularmente a mais amada, e agora a que lhe traz as recordações mais doces e dolorosas: a terceira Maria.
Conto por Rafael Arrais, inspirado em descrições clínicas dos livros de Oliver Sacks
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“Estranho de se pensar, nenhum dia é como o dia que se foi e nenhuma noite como a noite que virá! Porque, então, temer a morte, que é noite e nada mais? Porque se preocupar, se o dia que virá trará uma nova face e um novo espírito?” – John Galsworthy
“Viver na memória dos que nos amam, é viver para sempre” – Carl Sagan
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Crédito da imagem: Bryan Allen/Corbis
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
Ad infinitum
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Respostas de 8
“Se conseguirdes não depender da presença física daqueles que amais, mantereis para sempre o vosso amor e a vossa alegria.
Já não estareis submetidos às circunstâncias, porque vivereis no único mundo verdadeiramente real – o vosso mundo interior, com o qual formais uma unidade.
Assim que saís do vosso mundo interior, sentis que os seres e as coisas vos escapam, ficais à mercê dos acontecimentos.
Sabeis quanto tempo o ser que amais ficará junto de vós?
Não; talvez ele vá embora um dia.
Então, esforçai-vos por focar a vossa consciência nas regiões elevadas, onde as circunstâncias não têm qualquer poder sobre vós, onde o sol do amor nunca desaparece. Lançai-vos na luz desse sol eterno.
Enquanto aqueles que amais estiverem dentro de vós, nenhuma força do mundo vo-los poderá tirar.”
Mikhael Aivanhov – http://www.youtube.com/watch?v=YP0_klXXXYE
@raph: É isso! Mais um que descobriu a origem de toda a Luz do mundo…
Parabéns Rafael! Muito tocante o conto e nos leva a muitas reflexões, obrigado por escrevê-lo e compartilha-lo.
Paz e Luz!
@raph: Obrigado Dorival 🙂
Profunda essa história.
E mandando muito bem de novo ehehehe.
Espero que não se canse tanto de elogios, pois dentre as formas disponíveis “atualmente” a congratulação é a mais eficaz.
Hehehehe.
Um conto muito belo e de extrema profundida e para variar leva a uma profunda reflexão.
Podemos dizer que este é o “foco” de seus escritos não? hehehe.
Parabéns!!
E continue a nos fazer caminhar pelas estrelas ^^
@raph – É esse conto foi especial. É claro que foi baseado nos livros de Oliver Sacks e naquele filme, “50 first dates”, mas isto foi somente a inspiração inicial. O que acabou ocorrendo no processo foi o tipo de coisa que somente a intuição pode explicar, já que nem eu mesmo compreendi muito bem o conto na primeira vez que reli (isto é, após haver escrito) 🙂
Obrigado e Namastê!
Simplesmente Fantastico! Parabéns.
ps: sempre fui um grande adimirador de Carl Sagan. Muito bem colocada a respectiva frase.
Abraço.
@raph – Obrigado, eu tb adoro o Sagan 🙂
Maravilhoso! Me levou às lágrimas. Você tem muito talento pro romance inciático, e isso é lindo. Não é difícil estudar um calhamaço de coisas e dissertar sobre o assunto; transformar isso em poesia e tocar sentimentos é um dom raro. Parabéns!
@raph – Valeu Yeul, como poeta o que tento fazer é estar “num dia bom” para deixar as palavras chegarem e se apresentarem elas mesmas, acho que neste conto eu consegui algo assim 🙂 Namastê
De uma sensibilidade incrível… Alguns olham insistentemente as estrelas exteriores, outros o inverso: Buscam tudo nas estrelas interiores… Difícil quem encontrou o caminho do meio, aquele que tem a capacidade de conhecer, conviver e apreciar tanto uma como a outra…
PArabéns pelo lindo texto.
@raph – Assim em cima assim embaixo, no entanto há algo de inefável em tudo, acima e abaixo 🙂