O Filho da Vida

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Retirado de “O Mensageiro”, parte de “Os Evangelhos de Tomé e Maria” (*)

Numa noite fria um homem letrado veio tratar com Yeshua, que o recebeu em sua tenda, animado por poder conversar com um sacerdote. Seu nome era Nicodemus…

Sacerdote – Shalom, rabi.

Mensageiro – Está errado: você quem é o rabi, e eu é que estou em paz.

Sacerdote – Mas como pode estar em paz, vendo seu povo sofrendo, oprimido?

Mensageiro – E quem não sofre nesta vida?

Sacerdote – Mas nós judeus temos sofrido em demasiado. Onde está Adonai para libertar nosso povo? Dizem que você nos trouxe sinais de que é seu enviado, seu filho… Então me diga, onde está este Senhor Ausente?

Yeshua apanhou um galho seco do solo onde foi montada a tenda…

Mensageiro – Você vê a vida aqui?

Sacerdote – Não, isto é apenas um galho seco.

Mensageiro – Esta é a diferença. Você acha que o seu senhor está aqui e ali, e eu o percebo em todo lugar, para onde quer que olhe estou sempre coberto por seu perfume. Este galho seco um dia abrigou vida, e agora se torna inerte novamente, porém não menos sagrado. Eis o meu sinal e a minha mensagem, rabi: tudo é sagrado, tudo vibra e nada está parado. Quem há de ter iniciado esta roda senão aquele a quem você proclama ausente?

Sacerdote – E porque não o convoca então? Quero vê-lo!

Mensageiro – Ele já está aqui. Ainda mais perto de sua alma do que seu próprio olho.

Sacerdote – Mas não o vejo, não o vejo! Se o vê, diga-lhe então que nos ajude, que nos lidere, que expulse os opressores de nossa terra…

Mensageiro – Mas como pode alguém retirar a moeda ou o trigo da balança, sem que torne a transação injusta para o vendedor ou para o comprador? Você deseja um Senhor dos Exércitos, mas como pode um general marchar contra o seu próprio exército?

Sacerdote – O que está dizendo, rabi? E acaso Adonai também defende aos opressores?

Mensageiro – E como poderia existir um exército de homens que não pertença ao Senhor da Vida? Não é sua culpa que os homens busquem a morte, e não a vida. Em verdade lhe digo, ó Nicodemus, que nosso Pai não é um general, mas um semeador… E nós somos as sementes! Algumas há que germinaram em solo fértil, enquanto outras encontraram o solo seco, e viveram vidas de galhos secos. Porém, há sempre a oportunidade de aproveitar as chuvas que antecedem a primavera.

Sacerdote – Eu não compreendo… Se este de quem fala é o senhor dos romanos, não pode ser Adonai. Você é filho de um falso deus, um deus ausente, um deus traidor. Quem é você afinal?

E dizem que aquela foi a primeira vez que o viram exaltado:

Mensageiro – Ó Nicodemus, porque tanto proclama ser um conhecedor das coisas celestes, se mal compreende as coisas do mundo? A quem pretende ensinar com esta alma cega?
Você acusa nosso Pai de ser ausente, e, no entanto, ele é tão ausente quanto à luz das estrelas é ausente da noite! Você acusa nosso Pai de ser traidor, quando não há no mundo quem ele possa trair, visto que não fez promessa alguma! Você me acusa de ser filho de um deus falso, quando ele é a fonte única de todos os Elohim, que são a essência de tudo o que há de belo e verdadeiro no mundo!
Saia desta tenda, Nicodemus, e volte para seus manuais de palavras vazias e sem vida. De nada adianta conhecer as palavras se você não percebe o baile da vida a escorar pelo ombro, o vento que sopra onde quer, e não atende ao chamado de almas secas.

Mas, antes de sair, Nicodemus virou-se e perguntou:

Sacerdote – E como você faz para falar com esse tal deus? Quem sabe um dia eu consiga falar com ele, para que possa fazer por nosso povo o que você se recusa a pedir…

Mensageiro – Em verdade lhe digo, hipócrita, que ele fala na única linguagem que não é ainda capaz de compreender sequer duas palavras: o amor. E, caso lhe perguntem como eu sei de tudo isso, diga-lhes que eu sou o Filho da Vida.

Os Evangelhos de Tomé e Maria(*) Esta edição traz dois dos textos mais profundos encontrados em Nag Hammadi: Os Evangelhos segundo Tomé e Maria Madalena. Os acompanha uma série de contos (O Mensageiro) inspirados no gnosticismo e escritos por Rafael Arrais.

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O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.

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Respostas de 10

  1. Muito bom o texto.

    @raph – Obrigado. Os contos do Mensageiro foram todos inspirados pelas brisas da primavera 🙂

  2. “Em verdade lhe digo, hipócrita, que ele fala na única linguagem que não é ainda capaz de compreender sequer duas palavras”

    Estava lendo Os 7 sermões aos mortos estes dias e não pude deixar de notar alguma semelhança:

    Abraxas é o deus a quem é difícil conhecer. Seu poder é verdadeiramente supremo, porque o homem não o percebe de modo algum. O homem vê o summum bonum (bem supremo) do sol e também o infinum malum (mal sem fim) do demônio, mas Abraxas não, porque este é a própria vida indefinível, a mãe do bem e do mal igualmente.

    A vida parece menor e mais fraca do que o summum bonum (bem supremo), daí a dificuldade de se conceber que Abraxas possa suplantar em seu poder o sol, que representa a fonte radiante de toda a força vital.

    Abraxas é o sol e também o abismo eternamente hiante do vazio, do redutor e desagregador, o demônio.

    O poder de Abraxas é duplo. Vós não podeis vê-lo, porque a vossos olhos a oposição a esse poder parece anulá-lo.

    O que é dito pelo Deus-Sol é vida.

    O que é dito pelo Demônio é morte.

    Abraxas, no entanto, diz a palavra venerável e também a maldita, que é vida e morte ao mesmo tempo.

    Abraxas gera a verdade e a falsidade, o bem e o mal, a luz e a treva, com a mesma palavra e no mesmo ato. Portanto, Abraxas é verdadeiramente o terrível.

    Ele é magnífico como o leão no exato momento em que abate sua presa. Sua beleza equivale à beleza de uma manhã de primavera.

    De fato, ele próprio é o Pã maior e também o menor. Ele é Príapo.

    Ele é o monstro do inferno, o polvo de mil tentáculos, o contorcer de serpentes aladas e da loucura.

    Ele é o hermafrodita da mais baixa origem.

    Ele é o senhor dos sapos e das rãs que vivem na água e saem para a terra, cantando juntos ao meio-dia e à meia-noite.

    Ele é plenitude unindo-se ao vazio;

    Ele constituí as bodas sagradas;

    Ele é o amor e o assassino do amor;

    Ele é o santo e o seu traidor.

    Ele é a luz mais brilhante do dia, e a mais profunda noite da loucura.

    Vê-lo significa cegueira;

    Conhecê-lo é enfermidade;

    Adorá-lo é morte;

    Temê-lo é sabedoria;

    Não resistir-lhe significa libertação.

    Deus vive detrás do Sol; o demônio vive atrás da noite. O que deus traz à existência a partir da luz, o demônio arrasta para a noite. Abraxas, entretanto, é o cosmo; sua gênese e sua dissolução. A cada dádiva do Deus-Sol, o demônio acrescenta sua maldição.

    Tudo aquilo que pedis a Deus-Sol leva a uma ação do demônio. Tudo o que abtendes através do Deus-Sol aumenta o poder efetivo do demônio.

    Assim é o terrível Abraxas.

    Ele é o mais poderoso ser manifestado e nele a criação torna-se temerosa de si mesma.

    Ele é o terror do filho, que ele sente contra a mãe.

    Ele é o amor da mãe por seu filho.

    Ele é o prazer da terra e a crueldade do céu.

    Diante de sua face o homem fica paralisado.

    Ante ele, não há pergunta nem resposta.

    Ele é a vida da criação.

    Ele é a atividade da diferenciação.

    Ele é o amor do homem.

    Ele é a fala do homem.

    Ele é tanto o brilho como a sombra escura do homem.

    Ele é a realidade enganosa.

    – Nesse ponto, os mortos clamaram e deliraram porque ainda eram seres incompletos.

    @raph – No Tao Te Ching é dito que “o Tao parece ser anterior ao Soberano do Céu, e não sabemos de quem possa ser filho”…

  3. Ótimo texto e inspirador ao caminhante da senda gnóstica.
    Se em vez do jesus cristão, fosse o Yeshua gnóstico a ser base do cristianismo formal, talvez o mundo seria outro em termos de evolução.
    Mas, talvez fosse esse ou já é o caminho.
    Transcender o Jesus chamado o “cristo” e reconhecer o Yeshua dentro de cada um…
    Isso caros amigos, é apenas uma reflexão 🙂

    @raph – Mas nós podemos continuar usando o termo “Cristo” tb, não há nenhuma razão para permitir que os eclesiásticos “monopolizem” os termos… Vale lembrar que (e isso eu tb falo no livro) os chamados gnósticos chamavam a si mesmos de cristãos, e compreendiam a si mesmos como cristãos. Quem os chamou de gnósticos foram, sobretudo, aqueles que os perseguiram até que não existisse mais quase nenhum deles vivo (daí o fato de seus textos só haverem sido encontrados porque foram enterrados em vasos no deserto).

    Uma opção interessante seria usarmos ambos os termos: cristão gnóstico.

  4. NO mito de Peixes há a estoria de Afrodite e Eros. O(s) avatares de Peixes parecem-me corroborar com o Filho do Deus descendo à mãe(Maria e Maya).Seria lícito supor que Maria fosse um avatar de igual relevância a seu ‘pimpolho’, tal qual no mito.Posto que até o símbolo astrologico de Peixes parece mostrar dois individuos distintos ligados por uma linha ventral.

  5. este site é supimpa mesmo;
    ontem, uma excelente postagem sobre luciferianismo.
    hoje esta bela mensagem de Yeshua…
    não sei em que outro lugar poderia encontrar tópicos tão “opostos” (para o senso comum) qeu subsistam de forma tão coerente.

    @raph – Pois é, neste Portal os “opostos aparentes” estão sendo reconciliados 🙂

    Parabéns, Rafael Arrais!
    e parabéns também ao tio DD!

  6. Excelente texto!
    Faz tempo que não lia um texto que me deixava tão emocionado e ao mesmo tempo tão desapontado comigo mesmo por ver que muitas vezes agimos como Nicodemus, esquecendo de enxergar o Mestre em todas as coisas deste mundo e nos revoltando quando a visão está turva e o ego toma conta de nosso tão frequente racionalismo!

    Abraços Fraternos, obrigado por mais essa lição.

    @raph – Ele também nos disse: “Quero amor, não sacrifício”… Podemos melhorar sim, passo a passo, mas sem o peso da culpa, pois pecar nada mais é que errar o alvo. Abraços 🙂

  7. Abençoadas é a relva pantaneira que em momentos férteis não hesita seu florecer que será castigada em momentos secos.

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