O Diabo Eleito


por Nicholaj de Mattos Frisvold
Replicou-lhes Jesus: Não vos escolhi eu em número de doze?
Contudo, um de vós é diabo
.”
– Do Evangelho de João 6:70
O drama que cerca a Última Ceia detalha um Grande Mistério, pois vemos aqui a necessidade cósmica do Diabo como aquele que afirma o desígnio. O papel do Diabo pode ser dado de acordo com o ditame de Destino ou ao se nomear alguém que mantenha esta dignidade. Em ambos os casos, o Diabo é aquele que marca o limite exterior da possibilidade, a contração dos mundos na dor ou prazer já que afirma a beleza e a bem-aventurança. Em suas atividades mais profanas, o Diabo apontado é meramente percebido como um causador de problemas, uma nuance, um difamador, um mentiroso – um filho desobediente de Mercúrio em todas as medidas. Ainda assim, ao ser apontado como Diabo, uma tensão é estabelecida e afirma a intenção daquele que apontou seu acusador – e o acusador então afirmará a verdade e a mentira através de sua mera existência.

Comumente “Diabo” e “Demônio” são usados intercambiavelmente, mas é importante aqui distingui-los. Se seguirmos as primeiras transcrições gregas da Bíblia Sagrada, o Manuscrito de Vaticano número 1209, também conhecido com o “Emphatic Diaglott”, é interessante notar que no Evangelho de João, capítulo 6 onde Jesus aponta Judas como seu diabo, a palavra grega original é diabolos. Em outra passagem onde a versão King James (Rei James/Tiago) usa “diabo”, como através do 11º capítulo do Evangelho de Lucas, encontramos o daimone/demônio grego em uso. Na versão de King James, esta distinção é ausente e diabo é a tradução tanto para diabolos e daimone. Diaglott nos deixa claro que o chefe dos demônios é Baelzebubth/Baelzebub – e foi com o auxílio de Baelzebubth que Jesus, o Cristo, foi acusado de controlar a hoste demoníaca. Não há conexão aqui com demônios sempre serem diabolos.
Barry W. Hale comenta, em relação a isto, em seu excelente tratado demonológico “Legion 49” que “Diabolus” também pode ser interpretado como “o que traz para baixo”, não apenas como “acusador”. Esta observação é interessante, pois Diabolus pode ser visto como aquele que descende ou cai tal qual um ídolo celestial encarnando uma intenção particular que é feita na revelação do ato de acusar.
Logo, a qualidade diabólica, ou seja, a acusação, não deve ser entendida somente como uma categoria nefasta ou profana – porque isto tornaria este mistério vulgar. Como João 6 demonstra, este é um mistério embutido na concepção cósmica. Em relação a isto, Hale menciona em um comentário sobre Mateus 12:25 que aqui falamos de um “reinado dividido contra si mesmo”. O mistério diabólico, a acusação e difamação que tomam forma internamente são relacionados à divisão dentro de si mesmo. O santo para esta divisão interna deve ser Judas Iscariotes.
Judas Iscariotes, o diabo apontado, foi instrumental para o cumprimento do propósito através da traição e acusação. Pela divisão interna ele afirmou o desígnio. A afirmação do desígnio do salvador veio com a promessa de má reputação e calúnias sobre seu legado, encontrando sua libertação ao se enforcar pelo caminho de prata. Este tema também lança luz no comentário enigmático nos Eddas, que fala sobre o penduramento de Odin como o sacrifício de si para si, e as nove noites revelando a presença do caminho e chave de prata – ao afirmar a divisão temporal e restabelecer a unidade. Sobre isto podemos ver na cruz o símbolo atemporal para o equilíbrio, interação, sacrifício, manifestação, unidade e potência. Na cruz, o círculo se torna “quadrado” e assim, o atemporal é manifesto ao longo do rio da repetição em terras de diferença.
Na sabedoria bogomila, como em algumas linhagens Sufis como silsilyah e tariqah, o Diabolus, sob o nome Satanael, Iblis ou outro de seus muitos nomes, é considerado como o poder que define os limites e afirma a criação. Curiosamente, estes pensamentos também são expressos por Maria de Naglowska e sua exposição sobre o Terceiro Termo da Trindade, onde Judas Iscariotes assume um papel similar em relação ao drama da salvação em torno de Jesus, o Cristo. Naglowska também menciona o significado mais profundo do enforcamento de Iscariotes propriamente, carregando sua própria salvação pela afirmação e remorso nascidos pelo amor.
Parece-me que o diabo, assim como demônio, representa em geral qualquer deidade ou espírito estrangeiro e particularmente a corte de anjos caídos, enquanto o diabo, como em Diabolus, é mais uma reminiscência de um ofício, uma função, um verbo, em conformidade com a função jurídica mesopotâmica de ha-satan, o acusador, que poderia ser material ou imaterial. Segue-se daqui um anjo, caído ou não, bem como um homem que assume esta função seja pelo Destino ou pela nomeação. Como tal, uma calúnia direcionada ao Diabolus toma forma de fogo que permite ao acusador afirmar a verdade velada dentro do caluniador. Em face da calúnia, o Diabo somente responderá a única coisa apropriada para seu ofício, ou seja, “abençoado seja”.
A função jurídica do acusador era a de provocar o surgimento da verdade ao salientar a Companhia da Mentira. Esta função, traduzida para uma compreensão metafísica, tomará então a forma de afirmar a verdade. A verdade não deve ser confundida com simples fatos, mas sim tomada com a pureza de uma Idéia ou forma particular. Ela toma, por todas as formas e intenções, a completa profundidade da freqüente declaração de Robin the Dart, o Magister do Clan of Tubal Cain: “Que a Palavra lhe proteja da Mentira”. Com este reconhecimento, a forma do estado apropriado pode também ser percebida, assim como a Palavra se tornou Carne – porque no coração deste drama repousa a percepção, livre da corrupção, completa e pura na forma em que percebe o mundo e seus caminhos.
Nota Biográfica: Nicholaj de Mattos Frisvold é um antropólogo e psicólogo com uma inclinação para a metafísica dos cultos de uma genealogia tradicional. Ele é um especialista nas obras de Marsilio Ficino, e é um astrólogo tradicional praticante. Autor de várias obras, entre as quais estão “Artes da Noite – A história da prática da bruxaria” (Ed. Rosa Vermelha), “Craft of the Untamed – An inspired vision of Traditional Witchcraft” (Mandrake of Oxford), “Invisible Fire” (Capall Bann) e “Pomba Gira and the Quimbanda of Mbuma Nzila” (Scarlet Imprints). É um irmão jurado do Clã de Tubal Caim e Magister do Lilium Umbrae Cuveen, sua extensão no hemisfério sul. O autor mantém o blog “The Starry Cave” (http://www.starrycave.com/).

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Respostas de 21

  1. Além do significado literal e aberto a interpretação “diabolo” ou “lançado para longe”, não seria o Diabo a consciência íntima de cada indivíduo a qual é impossível mentir ( o maior acusador é você mesmo ) e a que impele a revelar qualquer imperfeição na ascensão individual ? Digo, diabolo não é o adversário, o obstáculo, justamente para ser vencido, negociado e seduzido para se encontrar a Beleza, Tiferet ? Porque é justamente isto que permanece obscuro em todas análises interpretativas deste mito dentro da Bíblia: Se é o adversário necessário, se é o anjo lançado no abismo longe do núcleo divino das hostes, se é “aquele que afasta” … ou se é tudo ao mesmo tempo. Se for tudo ao mesmo tempo, qual evidência deixa mais clara esta conciliação ?

    1. Já dizia no livro de Allan Kardec (O livro dos espiritos) “Não tomais tudo ao pé da letra.”
      Isso que fazem os evangélicos ao lerem, acha que o sentido de tudo na Biblia é aquilo dito por eles rsrsrs, maioria não sabe o que é uma metáfora.

      1. Não sei se a citação de Kardec foi direcionada à minha questão Phillipe, mas se foi acho que houve uma confusão: Literalidade que eu citei no início é da etimologia da palavra diabolo, que significa “lançar a distancia”, dia – movimento de separação ou de distanciamento e bolo – lançado ( ballein, lançar, de balística … ).

        1. foi não amigão, sua resposta foi interessante, falei das pessoas que não sabem interpretar principalmente a biblia. 😀

  2. Quando necessário, existe um Diabo para fazer a roda do Destino continuar a girar, já que sem estímulos, paramos para descansar e não queremos mais sair de lá.
    O diabo, como a força de vontade, é pessoal, escolhido especialmente para sua situação e para te testar e te impor a continuar com o caminho.
    Excelente post!
    Em momento oportuno, vou usar no Umikizu. `^^´
    Abraços do Elfo!

  3. DIABO.
    DI = dois
    ABO = Deus
    Duplo Deus ou duas vezes Deus.
    (2º Princípio Hermético + 4º Princípio Hermético) = Diabo
    Quebra da Inércia através do “Jogo da Polaridade”.
    * {Inércia Psíquica e Torpor Mental}

  4. Salve “Kk”,
    Você está afirmando ou perguntando? Se está perguntando, o quê exatamente você está perguntando? Perdoe-me, mas não consegui captar qual é a questão aqui.
    Um abraço!

    1. Salve Katy,
      A dúvida é nebulosa até para mim ainda, em relação à Bíblia. Esta análise que foi feita é uma das mais aprofundadas que eu já li e chegou muito mais próxima da resposta que as anteriores, mas ainda reside a dúvida de qual é a intenção e ensinamento oculto por trás do símbolo exposto na Bíblia, pelos próprios autores. Eles contaram o mito na intenção de ensinar sobre o Adversário que somos nós mesmos reconhecendo/acusando os limites de nossas próprias evoluções, ou se é Heilel separado do núcleo divino, a reunião dos Elohim, ou se é a força da discórdia que separa os homens ou se é o revelador/abridor do Símbolo. Se for tudo isto, qual trecho ou ensinamento oculto que concilia ? Detalhe: Vejo as palavras Símbolo e Diabolo como dois movimentos conjuntos, enquanto o Símbolo encerra os significados em um signo e o Diabolo os abre ao entendimento. Haha, peço perdão se confundi ainda mais !

  5. Lendo este ensaio, não pude deixar de fazer paralelo com Loki, o trapaceiro, “tentador” dos deuses nórdicos. Ou Seth, o grande “adversário” de Osíris. Neste sentido vejo o “Diabo” como uma função, um arquétipo, um papel, onde uma entidade ou divindade assume o papel de desafiador, como o vilão cuja existência é essencial para que o herói, pela forja dos obstáculos lhe imposto, possa lapidar-se em direção a sua aspiração.
    Dentro de qualquer sistema, é preciso que haja forças conflitantes para que se incite os movimentos dessas forças que fará com que o próprio sistema exista. Quando não há conflito, há estagnação. Quando há estagnação não existe possibilidade de aperfeiçoamento.
    O Diabo é a força que conflita – que em minha opinião não se trata de uma entidade em si, mas de uma postura e missão que pode ser assumida por qualquer pessoa, entidade ou deus.

  6. Ótimo post, parabéns!
    Tenho um fascínio pelo estudo do Tarot, e essa comparação da carta O Enforcado com a função de Judas é realmente interessante. Sempre vi comparações da carta com Odin e Jesus Cristo, e é interessante notar que após o sacrifício eles ganharam a aclamação de vários povos, enquanto Judas é “mal interpretado” até hoje… Dá até para se perguntar qual foi o sacrifício mais bonito dentre os três, e acredito que seja o de Judas XD. A visão também do filho de Mercúrio, ou o Pã da Grécia, que nasceu deformado e foi escarnecido por todos os deuses do Olimpo (inclusive o próprio Pai) é bastante válida, partindo do príncipio que sempre nos deixamos levar pela aparência, e aquele que parece feio, ou no caso do texto, nos acusa e nos diz coisas feias encaramos com medo ou escárnio (até hj queimam judas nas ruas, e para muitos é bem divertido! ^^). Bem essa é a opinião que formulei através do texto, não sei se é válida XD. Mas obg por me “fazer pensar” ^^

  7. Diabo para os hebreus era um anjo delator. Ele viajava pela Terra observando os erros dos homens e delatando para Deus. Diabolous significa “O Acusador, O Delator”. Poderia se interpretar a passagem então como – eu escolhi doze de vós, e um de vcs será meu delator.” Jesus ‘prevendo’ ou planejando a ‘traição’, como diz o Evangelho de Judas.

    1. Já que tocaste no assunto, um pouco de magia na literatura infantil.
      Em Chapeuzinho Amarelo, a chapeuzinho é amarela porque tinha medo do Lobo. A menina repete o nome do Lobo até perder o medo: LoboLoboLoboLoboLoboLoboloboloboloboloboloboloboloboloBoloBoloBoloBoloBolo… e o Lobo ameaçador se transforma em uma figura estática, fofa e deliciosa…

      1. poetica e invocatoriamente eu utilizo os dois termos, diabolo para lançar ou manter longe o profano e simbolo para atrair o sagrado, dados os significados etimologicos. mas pensando bem até iconograficamente a mesma estética pode causar atração ou repulsa, agir como diabo maldito ou simbolo santo, hmmm…

  8. Fico até com pena de algumas pessoas que, cegamente dizem: “O diabo é uma metáfora”, vocês estão confundindo teória e estudos, com o que realmente é real.Acordem pra realidade, deixem de “picuinha” e análises inúteis sobre registros históricos improvaveis, e pontos de vistas unilaterais que nunca vão chegar a lugar nenhum, se querem realmente saber a verdade sobre o Senhor Jesus cristo, (que ao meu ver está muito fácil de enchergar), busquem dele o conhecimento, e ele vós revelará, ficar discutindo humanamente, só vai deixar vocês mais perdidos ainda, o que é santo, se entende com santidade, amor, e puresa, e não com debates fervorosos, argumentos, teses, opiniões.Isso tudo é apénas o fruto da existência da verdade que é rejeitada por muitos, e não um fator determinante que vá alterar a sua essência.
    PS: A vida segue seu curso, cada um faz suas escolhas, más Deus tem a alternativa.

  9. “Em face da calúnia, o Diabo somente responderá a única coisa apropriada para seu ofício, ou seja, ‘abençoado seja’.”
    Pessoal, desculpem a ignorância, mas, por favor, alguma alma caridosa pode me explicar esse “abençoado seja”? Qual o sentido desse “abençoado seja”?

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