O Caminho do Pólen

» Parte final da série “Reflexões sobre a perfeição” ver parte 1 | ver parte 2 | ver parte 3

Se há algo de comum em todas as doutrinas religiosas, é a idéia do retorno, de re-conexão com Deus, o Cosmos, um Éden perdido nos confins de nossas origens… Alguns de nós podem sentir a fornalha cósmica que arde em nosso ser, e vislumbram a perfeição na totalidade da obra divina, em eterna vibração, em eterna construção, em belas simetrias e assimetrias, em leis imutáveis… Entretanto, onde estará o Éden. Onde se encontra o Reino de Deus?

Esse sentimento, entretanto, não é exclusividade dos religiosos. Aqueles que não conheceram pouca ciência também o expressam. Carl Sagan, apesar de ter sido agnóstico, foi uma dos autores com maior espiritualidade expressa e evidente em seus textos:

"Recentemente, aventuramo-nos um pouco pelo raso (do Cosmos), talvez com água a cobrir-nos o tornozelo, e essa água nos pareceu convidativa. Alguma parte de nosso ser nos diz que essa é a nossa origem. Desejamos muito retornar, e podemos fazê-lo, pois o Cosmos também está dentro de nós. Somos feitos de matéria estelar, somos uma forma do próprio Cosmos conhecer a si mesmo."

Sim, existem seres que não conheceram pouca religião, e buscam o Reino de Deus em todas as formas e todos os campos, pois que sabem que em nenhum lugar estaremos nalguma dia fora dele… Mas decerto também existem seres que não conheceram pouca ciência, e O buscam nos limites dos átomos e nas ondas luminosas mais antigas do Cosmos. Buscam-No mesmo sem acreditar Nele? Que seja – como julgar? Deixem que busquem o próprio Cosmos!

Mas então, como se religar? Como retornar ao Éden perdido? Talvez o primeiro passo seja reconhecer que o julgamento da perfeição, a reconciliação com tal paradoxo, esteja ainda além de nossa compreensão atual…

Existe um conto espiritualista, de autoria desconhecida, que fala da importância da espontaneidade:

“Agora, eu lhe pergunto, quão longe você acha que uma flor chegaria se de manhã ela virasse sua face para o céu e dissesse:

"Eu exijo o Sol. E agora eu preciso de chuva. Então eu a exijo. E exijo que as abelhas venham e tomem meu pólen. Eu exijo, portanto, que o Sol deva brilhar por certo número de horas, e que a chuva deva verter-se por certo número de horas… E que as abelhas venham – as abelhas A, B, C, D e E, pois não aceito que nenhuma outra abelha venha.

Eu exijo que a disciplina opere, e que o solo deva seguir meu comando. Mas eu não permito ao solo qualquer espontaneidade própria. E não permito ao Sol nenhuma espontaneidade própria. E não concordo em que o Sol saiba o que está fazendo. E exijo que todas estas coisas sigam minha idéia de disciplina"

E quem, eu lhe pergunto, iria ouvir? Pois, na espontaneidade milagrosa do Sol, há uma disciplina que lhe escapa totalmente, e um conhecimento além de qualquer um que você conheça.

E na espontaneidade da atuação das abelhas, de flor em flor, colhendo ao pólen mesmo sem saber, há uma disciplina além de qualquer uma que você conheça, e leis que seguem o conhecimento delas, e contentamento que está além de seu comando.

Pois a verdadeira disciplina, veja, é encontrada apenas na espontaneidade. E a espontaneidade conhece sua própria ordem.”

Viver o aqui e agora – esta é a condição para que possamos visualizar os portais do Éden… Mas como adentrá-lo finalmente?

Epicteto e os estóicos diziam que não devemos nos preocupar com aquilo que não nos é dado escolher. No entanto, ao que nos é dado escolher, devemos nos portar da melhor forma possível. Devemos reconhecer nossa imperfeição, mas devemos também ter sempre em nossos horizontes a perfeição do “vir a ser”…

E nesse momento, admirando a perfeição estendida pelo horizonte, poderemos dar os primeiros passos no caminho do pólen – apenas um dentre tantos outros cantos sagrados dos indígenas (ou de qualquer outro povo) que servirá para nos guiar nessa trilha:

Na casa da vida eu me aventuro
No caminho do pólen
Com um deus enevoado eu me aventuro
No caminho do pólen
Para uma dimensão sagrada
Com um deus à frente eu me aventuro
E um deus atrás de mim
Na casa da vida eu me aventuro
No caminho do pólen

Ah! A beleza à minha frente
A beleza atrás de mim
A beleza a minha direita, e a minha esquerda
A beleza acima e a beleza abaixo
Eu estou no caminho do pólen!

O Éden não foi, nem será, mas o Éden é este momento – o único momento que sempre existiu. A eternidade irradia-se por todos os cantos do espaço e do tempo, todos os pontos estão igualados – eis a bela simetria que a ciência vislumbra…

Mas o caminho para o centro, para a essência, para a divina flor que espalhou todo esse pólen pelo infinito – este está e sempre esteve em nossa própria consciência. Quando adentramos esse caminho, pouco importa quanto tempo resta para chegar ao céu, pois que compreendemos que a perfeição se encontra no caminhar, e não no chegar. Eis que mesmo este paradoxo pode ser reconciliado. Eis que todas essas meias-verdades apontam para uma única verdade – que infelizmente não pode ser descrita por cascas de sentimento…

É preciso se aventurar no caminho!

***

Crédito das imagens: [topo] Lauren Bishop, [ao longo] Joel Nakamura (ilustração baseada no mito do caminho do pólen, dos índios navajo)

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Respostas de 4

  1. Oi Rafael! Nossa, ao terminar de ler esse texto, me vi no centro do universo que habita dentro de mim! Talvez o único universo que eu possa mudar, pois nem tudo o que está a nossa volta podemos alterar. Mas nosso Éden, o que realmente foi nos passado por Yeshua através de seus ensinamentos, é o lugar mais propício a mudança de nosso ser….
    Depois que descobrirmos a beleza de nosso ser, reclamaremos bem menos do que está a nossa volta. Talvez, poderemos construir muito, se ao invés de reclamar ponhamos as mãos na massa! 🙂
    @raph – É como disse Joseph Campbell em O Poder do Mito: “se o Éden não está aqui neste momento, onde mais ele estaria?”. É preciso primeiro mudar a alma, para que a alma possa então mudar o mundo a sua volta… Do contrário estaremos sempre apenas substituindo um tirano, um déspota, por outro, e nada nunca realmente muda. Mas é possível, é preciso mudar, e há sempre tempo de recomeçar. Estamos a um pensamento de distância de um outro mundo 🙂
    Mas, como lembra sempre Yeshua: é preciso ter olhos para ver.
    Abs.

  2. A vida é como a dança: saber qual passo é mais cabível a cada momento, qual o ritmo que o corpo deve tomar a cada circunstancia é fruto do estudo, do conhecimento. Mas há algo diferente na dança: passos milimetricamente pensados são mecanicos, não se nota vida na dança, exceto quando, apesar da premeditação dos passos, voce pulsa com eles. O equilíbrio entre a técnica e a espontaneidade é essencial ao dançarino, de forma que seus movimentos e a música se tornem harmonicos e vibrem como uma coisa só, como o pólen e o vento são uma coisa só, quando o primeiro baila no “oceano” do segundo… Depois de se estudar os passos de um ritmo, de torna-los quase mecanicos e assimilá-los na mente, é melhor apagá-los e deixar o corpo seguir o ritmo e escolher qual passo usar. Tá aí algo legal a se testar: escolha um ritmo de música, estude seus passos de dança e saia para a pista, mas na pista, não premedite as coisas, deixe fluir de dentro. é assim que surge a dança bela e espontanea da balada da vida… mais uma vez, desculpe a metáfora Raph, mas sem elas não sei me expressar bem e creio que esta tem tudo a ver com seu texto.

  3. Carl Sagan um dos mais espiritualistas? Imagine o mais ateu e cético, então… hehehe
    @raph – “Espiritualista” não seria um bom termo, mas “espiritual” ou “com espiritualidade”. É perfeitamente possível ser cético e ateu e ao mesmo tempo ser pleno de espiritualidade, embora sem necessariamente ser um espiritualista.
    Sagan não era ateu, mas agnóstico… Recomendo ler os parágrafos finais deste artigo, e depois ver o filme “Contato”, se ainda não viu. Os parágrafos finais falam acerca do livro, mas não são exatamente “spoilers” do filme. Se quiser ainda ler o livro, então não leia porque tem “spoilers” do livro: http://www.ceticismoaberto.com/ciencia/2116/o-contato-de-sagan
    ***
    Veja também o que Sagan diz em “O mundo assombrado pelos demônios”:
    “Espírito” vem da palavra latina que significa “respirar”. O que respiramos é o ar, que é certamente matéria, por mais fina que seja. Apesar do uso em contrário, não há na palavra “espiritual” nenhuma inferência necessária de que estamos falando de algo que não seja matéria (inclusive aquela de que é feito o cérebro), ou de algo que esteja fora do domínio da ciência. De vez em quando, sinto-me livre para empregar a palavra. A ciência não é só compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade. Quando reconhecemos nosso lugar na imensidão de anos-luz e no transcorrer das eras, quando compreendemos a complexidade, a beleza e a sutileza da vida, então o sentimento sublime, misto de júbilo e humildade, é certamente espiritual. Como também são espirituais as nossas emoções diante da grande arte, música ou literatura, ou de atos de coragem altruísta exemplar como os de Mahatma Gandhi ou Martin Luther King. A noção de que a ciência e a espiritualidade são de alguma maneira mutuamente exclusivas presta um desserviço a ambas.

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