» Parte 1 da série “Reflexões sobre a linguagem”

Há quem se pergunte qual o maior dom do ser humano: os sentidos, a visão que nos possibilita nos maravilhar com o mundo, a audição que nos permite ouvir a sinfonia das esferas? Talvez não os sentidos, mas o amor que nos une a todos os seres, a razão que nos permite compreender o elegante mecanismo da natureza? Bem, pergunte a um antropólogo, e ele lhe dirá sem pestanejar: a capacidade de interpretar símbolos, o que nos possibilita o uso da linguagem.

A capacidade de interpretar a realidade é o que nos permite compreender aos quantas de luz que os olhos nos enviam, ou as ondas sonoras que nos chegam pelos ouvidos – porém, ao contrário das espécies irracionais, nosso cérebro também é capaz de desenvolver linguagens a partir desses dados enviados, e associar conceitos físicos e, principalmente, metafísicos, aos símbolos. Sem essa capacidade dificilmente nossa arte, religião e ciência teriam se desenvolvido, e estaríamos até hoje caçando animais com machados de lasca de pedra, todos invariavelmente feitos da mesma forma mecânica, pois a criatividade também praticamente inexistiria.

Entretanto, ainda hoje sabemos que nossa linguagem nem sempre é apurada o suficiente para descrever certos conceitos. A tradição religiosa oriental é conhecida por ser afoita a nomear as coisas por palavras, numa tentativa de reafirmar a beleza de se nomear livremente o mundo. Dessa tradição vem a célebre frase: “Cavalo branco não é cavalo”, de Gong Sunlong, um retórico chinês que viveu entre 320 e 250 a.C. – Com a frase, ele quer demonstrar que recusa a idéia de que as categorias do pensamento que formam e/ou são formadas pelas palavras estejam realmente vinculadas à realidade concreta. Ou seja, o genérico “cavalo” nada tem a ver com o cavalo singular e concreto (branco, a título de exemplo) que esteja sendo observado através dos olhos.

No caso de um cavalo, talvez este pensamento seja exagerado: se cada pessoa escolhesse um nome diferente para nomear um cavalo, ou que seja – um cavalo branco que não é mais apenas cavalo, as linguagens seriam pessoais, e a comunicação entre duas pessoas já seria complexa; Imaginem então a comunicação entre uma vila ou grande cidade – seria praticamente impossível. Portanto, é inevitável que a linguagem se torne um “ditador” de conceitos, e o máximo que podemos fazer é nos valer das metáforas para tentar dizer “algo além” do que pode ser dito com as palavras.

O primeiro verso do Tao Te Ching, obra primordial do taoísmo, afirma que “O nome que pode ser dito não é o Nome eterno. No principio está o que não tem nome (o Tao).” – Ora, o Tao é um nome peculiar, ele é o nome do que não tem nome, pois é indizível, impossível de se conter em uma palavra, pois se trata não apenas de um conceito (por mais complexo que seja), mas de uma experiência. O Tao significa não somente a origem de tudo, mas o caminho em busca desse conhecimento primordial, em suma: a chamada experiência religiosa.

Na fé primitiva, o conhecimento ritual não tendia a se dar, evidentemente, por escrito. A novidade do Oriente Médio foi a fé no livro e, com ela, veio a configuração do discurso ritual, que o Ocidente esquematizou numa liturgia em parte devedora da estrutura oratória clássica. A retórica se firmou, nas religiões que dão peso ao verbo, como um campo importante da construção da religiosidade. A experiência religiosa, intransferível, foi, é e continuará subjetiva. Mas ao ser comunicada, ao ser partilhada em comunidade, a experiência mística segue princípios de persuasão.

No Ocidente, a religião está intimamente atrelada à linguagem, a evangelização. No Oriente, embora seja igualmente subjetiva, a religião é muito mais um caminho pessoal do que algo que se possa propagar adiante por discursos e sermões, ou mesmo por livros sagrados. Para a tradição oriental, livros sagrados geralmente são guias que tem de ser decifrados por cada um, e os líderes religiosos podem no máximo aconselhar sobre as melhores práticas nesse caminho.

Porém, religião à parte, a linguagem é também o meio primordial pelo qual as artes e as ciências são, respectivamente, comunicadas e codificadas. Impossível interpretar a arte sem o contato com símbolos (embora nem sempre sejam palavras); Impossível transmitir e organizar a ciência sem o uso de códigos simbólicos, como números e equações.

Outra característica importantíssima da linguagem é o seu correto uso em discussões e debates. Não é raro discussões ferozes serem travadas pelos motivos errados, simplesmente porque as pessoas não se entendem quanto ao significado das palavras que usam. Já citamos o amor, que certamente é outra palavra cujo conceito ainda não foi totalmente compreendido, a despeito dos esforços de poetas e religiosos ao longo da história.

Serão os conceitos universais possíveis de serem corretamente compreendidos e encerrados em palavras, em linguagem? É isso que veremos a seguir…

***

Leitura recomendada: “A pré-história de mente”, de Steven Mithen (Editora Unesp); “Revista Língua Especial: Religião e Linguagem”, artigos “O nome do Tao”, por Inty Mendoza, e “A retórica do pregador”, por Luiz Costa Pereira Junior (Editora Segmento).

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Crédito da imagem: Bettmann/CORBIS (tabela alquímica de elementos)

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.

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Uma resposta

  1. Olá, Raph. Como vai?

    Eu adoro suas abordagens sobre a linguagem.

    “Serão os conceitos universais possíveis de serem corretamente compreendidos e encerrados em palavras, em linguagem?”

    Eu acho que sim, mas para fins práticos e economia de tempo, penso que seria melhor outro tipo de linguagem, que usasse unidades de transmissão com muito mais conteúdo do que a unidade palavra, como, por exemplo, e de preferência, que viesse junto com uma sensação. Seria como se pudéssemos compartilhar nossa subjetividade e emoção por trás de cada palavra. Até poderíamos usar nossa linguagem tradicional para compreender os segredos universais (muitos se esmeram por aí), mas há um esforço e uma quantidade de páginas tremendos, afim de passar a coisa toda pormenores e sem deixar espaço para outras interpretações.

    Eu sempre me lembro de uma experiência com marijuana que tive. Minha mente corria tão rápido com palavras, insights e sentimentos associados que quando eu pensei em reproduzi-los pela fala, uma imagem veio a minha mente. Era como se eu, ao abrir a boca, diante de mim milhares de palavras se colocavam, pontiagudas prontas para serem possuídas pela minha língua. Eu mal sabia por onde começar, havia muito, muito trabalho a ser feito. Seria extremamente desgastante e certamente perderia boa parte do conteúdo memória a fora, enquanto quebrava a cabeça tentando me lembrar de todos os incríveis nuances e complexidades. Era como se em cada frase ou pequeno segmento, ou até mesmo palavra, se desdobrassem outros assuntos, outras abordagens, num riquíssimo frenesi de informação, como se em vários cantos dessa estrofe que lhe escrevo se desdobrasse uma bela árvore.

    @raph: Pois é, ainda não seria muito prático né? Por isso que penso que a melhor resposta para esse dilema sempre foi a poesia. Na poesia, as palavras não servem usualmente para descrever o mundo ou os conceitos e ideias, nem mesmo as emoções, mas servem para transmitir emoções, que eventualmente levam a conceitos, ideias e visões de mundo. Claro que nem todo poeta é bem sucedido nisso, e mesmo os que são provavelmente conseguem passar somente um pálido reflexo das emoções genuínas que eles mesmos sentiram, mas ainda assim é a melhor forma que conheço. Ainda temos a música (sem letras), é claro, que funciona bem melhor para a transmissão de emoções, mas é precária para a transmissão de conceitos e ideias. Abs–raph

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