Nietzsche e Zaratustra

Conhecia Nietzsche das aulas de filosofia. Mas tudo o que aprendemos na escola são rótulos e classificações de pensamento (como se os filósofos pudessem ser etiquetados). Graças à minha falta de memória, felizmente esqueci por completo que Nietzsche foi classificado de niilista; assim, pude ler Assim falou Zarathustra livre de qualquer preconceito. Redescobri Nietzsche graças a um texto de Osho, que o citava para explicar justamente uma coisa que Oráculo me exortou a fazer de agora em diante: viver aqui na Terra, PARA a Terra. Procurei o livro na net e só encontrei uma versão em inglês. Quase tive um Samadhi ao ler o capítulo “Virtude Dadivosa!” O cara é praticamente um dos “patrocinadores” deste blog! Um gênio ácido com um profundo sentimento espiritualista à frente de seu tempo. Ou, como comentei certa vez, um budista enrustido.

Quis compartilhar com os leitores deste blog e procurei uma versão em português, mas qual a minha decepção quando vejo que a tradução desvirtua o texto (e olha que o original é em alemão e deve ter perdido coisas na tradução pro inglês). Já que eu tive de rever todo o texto, aproveitei pra eliminar a linguagem rebuscada que atrapalhava o fluxo da leitura e impede o livre acesso ao fumus bono, o âmago do pensamento filosófico do autor.

Da Virtude Dadivosa (trechos da parte 2):

“Permaneçam fiéis à Terra, meus irmãos, com todo o poder da sua virtude. Devotem seu amor incondicional e seu conhecimento para que tenham um significado aqui na Terra. Assim vos rogo, e a isso vos conjuro. Não deixem vossa virtude bater asas, fugindo das coisas terrestres para ir se chocar contra paredes eternas. Ah, e tem havido sempre tanta virtude extraviada!
Conduzam, assim como eu, a virtude extraviada de volta pra Terra; Sim, restituam-na ao corpo e à vida, para que dê à Terra o seu sentido, um sentido humano. Deixem seu espírito e sua virtude serem devotados a um sentido terrestre, meus irmãos: deixem o valor de tudo ser determinado novamente por vocês! Para isso devem ser lutadores! Para isso devem ser criadores!

Há mil caminhos que nunca foram trilhados; mil fontes de saúde e mil ilhas de vida ainda escondidas. Inesgotável e desconhecido ainda é o ser humano e o mundo do ser humano.

Agora, meus discípulos, vou-me embora sozinho! Partam sozinhos, também! Assim o quero.
Com toda a sinceridade vos dou este conselho: Afastem-se de mim e precavei-vos contra Zaratustra! Melhor ainda: tenham vergonha dele! Talvez ele os tenha ludibriado.

O homem de conhecimento não só deve amar os seus inimigos, mas também odiar os seus amigos. Mal corresponde ao mestre aquele que nunca passa de discípulo. E por que não quereis tomar minha Coroa?
Venerais-me! Mas que aconteceria se sua veneração um dia acabasse? Tome muito cuidado para que uma estátua não te esmague!

Vocês dizem crer em Zaratustra? Mas que importância tem Zaratustra? Sois crentes em mim; mas que importam todos os crentes?! Vocês ainda não procuraram em vocês mesmos: por isso me encontraram. Assim fazem todos os crentes: por isso que toda a crença é de tão pouca importância.

Agora vos ordeno que me percam e encontrem a vocês mesmos; e só quando todos vocês tiverem me negado, retornarei para vós.
Em verdade, meus irmãos, buscarei então as minhas ovelhas desgarradas com outros olhos; vos amarei então com outro amor. E novamente sereis meus amigos e filhos de uma só esperança; então quero estar a vosso lado, pela terceira vez, para festejar com vocês o grande meio-dia.”

O que Nietzsche nos exorta a fazer é caminhar com nossas próprias pernas! Sem líderes, sem dogmas, mas com virtude. Sim, esse não é o caminho do egoísmo, é o caminho não só da ação – onde nós somos os senhores do nosso destino – , mas da ação correta, como o budismo, o cristianismo e o judaísmo nos propõem a fazer.

Nietzsche cria um líder religioso que se destrói no final, e isso é o que o budismo deveria ter sido. Afinal, se a doutrina prega o desapego a todas as coisas, é natural que o aluno não se apegue nem mesmo à doutrina. E Buda falava “Não te deves ligar a nenhuma dessas coisas. Esse é o motivo pelo qual comparo minha doutrina a uma jangada. Mesmo essa doutrina precisa ser deixada para trás – e que dizer das falsas doutrinas?”

Isso também me lembra uma das mais fascinantes passagens atribuídas a Jesus, no Evangelho de Tomé, logon 13:
Jesus disse a seus alunos: “Comparai-me com alguém e dizei-me com quem me assemelho”.
Simão Pedro disse-lhe: “Tu és semelhante a um anjo justo”. Mateus lhe disse: “Tu te assemelhas a um pensador sábio”. Tomas lhe disse: “Mestre, minha boca é inteiramente incapaz de dizer com quem te assemelhas”.
Jesus disse: “Não sou teu Mestre. Pois bebeste na fonte borbulhante que fiz brotar, tornaste-te ébrio. E, pegando-o, retirou-se e disse-lhe três coisas. Quando Tomas retornou a seus companheiros, eles lhe perguntaram: “O que te disse Jesus”? Tomas respondeu: “Se eu vos disser uma só das coisas que ele me disse, apanhareis pedras e as atirareis em mim, e um fogo brotará das pedras e vos queimará”.

Não vos tornem bêbados, viciados em Buda, Jesus, Nietzsche ou quem quer que seja. Entendam agora a música God de John Lennon, em que ele sai negando todas as influências que compunham sua própria personalidade, quando diz “Não acredito em Elvis, não acredito em Jesus, não acredito em Hitler, não acredito em Beatles, só acredito em mim!”. É uma belíssima desconstrução de personalidade, o esvaziamento do barco das paixões e dos ódios, como bem disse Buda. Só não esqueçam da virtude (que é justamente… Deus em nós).

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Respostas de 8

  1. Cara…

    Desde que iniciei minhas leituras das obras de Nietzsche não consigo enxerga-lo como o ateu que muitos comentadores (sem nenhuma profundidade, claro) afirmam ser. Esse negócio de ateísmo é bem recente e, na minha perspectiva, surge como uma forma de resposta a um estímulo opressivo de uma moral religiosa que foi instaurada e oferecida à força por muito tempo. Penso ser a fase de adolescente, metaforicamente falando, da nossa sociedade que, só agora, começa a, passos cambaleantes, andar para frente e abandonar vários dogmas antigos.

    A influência que ele recebeu de Schopenhauer é imensa, e daí que o budismo seja tão peculiar aos dois filósofos. A diferença é que Nietzsche é muito mais otimista (em relação a Schopenhauer somente… o.O), pois ele aceita a tragicidade da vida no aqui e, ao invés de negar a vontade, como o deseja Schopenhauer, transforma a vontade em meio para se ascender ao ubermensch, aquele que está para além do homem.

    Há muito ainda que podemos aprofundar no âmbito da transcendentalidade dentro das obras de Nietzsche, e somente os que estão dispostos a serem mestres de si mesmos é que poderão fazê-lo.

    abraços e parabéns!

  2. Texto inspirador.
    Então posso considerar que seja mais seguro ler Nietzsche em inglês do que português?

  3. Nunca fui fã de fato de Nietzsche, talvez, provavelmente por nunca gostar das traduções que li dele. Independente do meu pré envolvimento com sua obra sempre senti que ele vez ou outra superava-se demasiadamente humano… ao que me soava natural de qualquer um. Contudo tenho de admitir que todo o contexto criado a partir deste trecho ficou genial. Me faz desejar terminar o Zaratustra, até para quem sabe, odiá-lo ainda mais.

    Parabéns!

  4. Essa parte de não se apegar a doutrinas é fundamental. Afinal, se buscamos o ser que foi, é e sempre será, precisamos admitir que ele já existia antes do homem e de suas invenções. Portanto, visamos voltar ao início de tudo. Como o próprio Jesus disse:” ..pois antes mesmo do mundo existir Tu me amaste”

  5. Não sou lá grande estudioso de filosofia, mas por algum motivo que não me lembro, acabei lendo o Assim Falou Zaratustra há alguns anos, justamente quando iniciava os estudos de kabbalah hermética.

    Não sei se estou certo ou se estava muito embebido pelos conceitos de kabbalah na época, mas pra mim, a sensação ao ler alguns capítulos era a de que Nietzsche passeava pela estrutura da kabbalah utilizando-se das referências mitológicas.

    Alguém aí entendedor de mitologia e kabbalah teve essa mesma sensação ao ler Assim Falou Zaratustra? Você teve Acid0???

  6. Talvez seria melhor em vez de desconstruirmos nossa personalidade, fosse integra-la cada vez mais, um esforço consciente de unificar os nossos multifacetados eus no único e verdadeiro EU.

  7. Belo e inspirado artigo, parabéns!
    Estou buscando tema para o meu projeto de mestrado em filosofia, penso em fazer uma leitura analítica de Assim falava Zaratustra com base na hermética, principalmente nos sete princípios do Caibalion.
    Você acha essa ideia plausível? Em caso positivo, aceito sugestões e orientações, eis que meu conhecimento da hermética é limitado.

    Abraços,
    Vanessa

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