Nada a temer, nada a duvidar

Yorgana era médium firme, experiente, daquelas que parece já ter ido ao inferno e retornado para contar história, sempre com um sorriso, ou um meio sorriso, pela face nem mais tão jovial. Tomé estava ali, apreensivo, para observar e aprender…

Após a oração inicial, as luzes foram apagadas e as pessoas entraram em meditação, tanto na mesa grande quanto nas cadeiras em torno. Tudo o que se ouvia, a princípio, era o barulho dos dois ventiladores velhos e desgastados, que já aliviavam o calor daquele centro espírita há uma boa década ou mais. Tomé ansiava pelo que estava por vir, e logo alguns começaram a gemer e se contorcer e reclamar. Como sempre, Yorgana estava lá para oferecer conforto aqueles que foram convidados, de tão longe, aquele recinto de luz:

“Está tudo bem minha filha, quer me dizer alguma coisa?” – Dirigiu-se, sussurrante, a senhora que meditava na cadeira a sua frente.

De início não houve resposta, e exatamente por isso que alguma coisa parecia estar a ocorrer… Logo, aquela senhora pacata e serena tinha ido embora, alguém irrequieto e angustiado tomou o seu lugar:

“Ai! Ai! O que eu estou fazendo aqui? Que lugar é esse? Tá dolorido… Minha cabeça dói, tem insetos no meu corpo, tira isso, tira eles, me tira daqui!!”

Yorgana trouxe suas mãos para próximo da cabeça da senhora (ou quem quer que estivesse ali agora), e continuou serena, quase carinhosa:

“Calma… Calma! Vamos respirar mais devagar, assim, comigo, vamos…”

E o que se seguiu foi uma verdadeira luta para que a senhora conseguisse passar a respirar mais lentamente, no ritmo que a médium demonstrava, expirando e inspirando profundamente o ar seco do ambiente.

“Vamos, vamos… Assim comigo. Inspira, segura um pouco, expira… Calma que aqui são todos seus amigos…”

“Amigos? Não, eu não tenho amigos… Não aqui, principalmente aqui… Que lugar estranho é esse, por que me trouxeram? Por que, isso não tem nada a ver comigo… Eu não pertenço aqui, ninguém vai me aceitar aqui…”

“Isso já é contigo. Primeiro, você é quem precisa se aceitar… Você está aqui, é verdade, só por um tempo, e pode ficar tranquila que logo logo volta para onde veio… Você foi convidada… É, digamos assim, um certo privilégio, pois nem todos têm a oportunidade de vir a essa casa de cura.”

“Cura? Mas como você vai me curar de toda essa dor? E esses malditos insetos que não me largam! Me ajude então, se gosta de mim…”

“Só se você também abrir uma brecha para gostar de si… Vamos, esqueça o que te deixou nesse estado, há sempre tempo de recomeçar… Vamos, inspire comigo e imagine a cor azul, o ar sendo de um azul tão puro, que entra na sua cabeça e ajuda a limpar, e limpando vai levando a dor embora, e daí você expira essa dor, essa coisa ruim aí dentro, e isso tudo sai de você na cor vermelha… Deixa o azul entrar, deixa o vermelho sair… Deixa entrar, deixa sair… Isso… Isso, tá melhorando não tá?”

“Tá melhorando a dor, sim… Que coisa incrível, há tanto tempo que doía que eu nem sabia mais como era estar assim… Os insetos não picam mais meus braços, minhas pernas…”

“Isso, isso mesmo… Mas continua, continua imaginando as cores, continua inspirando, expirando… Eu poderia te ajudar só aqui, mas não sei quando vai poder voltar, e pode continuar fazendo isso onde quer que esteja, basta lembrar: deixa o azul entrar, deixa o vermelho sair… E se acalma, e se perdoa, e dê uma chance a si mesma de recomeçar.”

“Isso… Isso é maravilhoso! Mas eu não sei se vai funcionar onde eu moro… Lá é tudo tão gelado e úmido, o ar é ruim, o céu é escuro, não tem ar azul por lá…”

“Tem ar azul em tudo quanto é lugar… Vou te contar: o que você acha que é o ar que entra azul e sai com sua dor vermelha?”

“Algum ar que só existe aqui nessa casa de santos… Eu preciso ficar aqui, me deixa, me deixa ficar!!”

O atendimento estava acabando, e Yorgana tinha só alguns segundos:

“O ar azul, é Deus. Ou você imaginou que nalgum dia estranho poderia realmente estar fora Dele? Ele está em todo lugar, mais próximo que o seu pensamento mais querido, porém tão distante quanto a sua culpa mais profunda… Se perdoe, vá em paz, há sempre tempo de recomeçar. Adeus!”

***

Após a cantoria ao final da sessão, Tomé estava ainda enxugando as lágrimas. Ele havia sentido de perto, bem de perto, toda a dor e angústia, todo o caos mental naquela senhora, ou no que quer que a tenha visitado ali. Alguém que sofria imensamente, mas que foi consolada. Alguém que pareceu, depois de muito tempo, enxergar uma vez mais a luz ensolarada da esperança…

Ele tinha de perguntar a Yorgana:

“Nossa, como você atendeu bem, firme! Como você faz para ter as palavras certas nesse momento? Você não fica com medo do que pode aparecer? Você não… Duvida do que está ocorrendo?

“Eu nunca sei o que virá, e certamente fico apreensiva, e certamente tenho dúvidas acerca do ocorrido… Se foi realmente alguém que apareceu, se era uma memória antiga, algum distúrbio mental, alguma personalidade trancafiada que pôde finalmente vir a tona… Quem vai saber?”

“Mas, na hora você…”

“Na hora, não era eu. Era algo acima de mim, algo que me toma e que me faz ser alguém maior, alguém que tão somente deixa a luz do alto passar, o mais límpida possível… Na hora, não há nada a se temer, nem nada a se duvidar. Na hora, eu apenas amo, e o amor faz o resto. E, Tomé, não há como se temer o amor, não há como se duvidar dele.”

raph’12

***

Crédito da imagem: Fraternidade Espírita Monsenhor Horta

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.

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Respostas de 10

  1. Amei o texto, maravilhoso! Só acho que a fé aliada ao conhecimento tem resultados mais eficazes (Yorgana conhecia os efeitos da cor e em que sentido vibram)!

    @raph: Exato. No final do conto vemos que Yorgana é conscientemente cética e questionadora (ou seja, ela mesma tem suas dúvidas), o que ela quis dizer é que no âmbito da experiência em si as questões da “racionalidade” se esvaem – e neste momento não há o que temer nem o que duvidar 🙂

    Obs.: Sobre o tema, recomendo a leitura da série “Para ser um médium”: http://www.deldebbio.com.br/2013/11/01/uma-breve-advertencia/

    Abs
    raph

  2. só pra entender, Deus é tudo certo? ou Deus é só o azul? então o que seria o vermelho e quem ou o que seria que inspira azul e expira vermelho, quem ou o que estaria pacato e sereno e quem estaria irrequieto e angustiado e o que seriam esses estados? o que está acima de Yorgana e o que seria ela? o que seria a dor ou o alivio da dor? se Deus está em todo lugar e é tudo o que está mais próximo ou mais distante de Deus, como pode haver distancia ou proximidade? o que seria alguém maior ou alguém menor, pensamento querido ou culpa? sendo Deus tudo, o quê cura o quê, o quê ama o quê? desculpe tantas perguntas; abraço!

    @raph: Raquel, creio eu que Deus é o Todo e o Todo é mental. O que nos cura são nossas forças internas, nossa capacidade de conexão com tais forças. Médico algum pode prometer cura, somente tratamento. Porém, aquele que conhece a si mesmo, mais dia menos dia percebe que o Azul também está em todo lugar, mais próximo de nós que nossa veia jugular… A questão é termos a experiência deste Azul 🙂

  3. entendi essa parte raph, obrigado, mas acho que minha pergunta não foi bem essa e sim, quem tem a experiencia deste azul? não seria o próprio azul? quem se conecta com tais forças internas? quem está mais próximo ou menos próximo do azul sendo que o azul está em todo lugar e, é, tudo? o que seria o vermelho? de acordo com a sua crença, Deus é o todo, tudo, certo? então não há nada além do todo, nada além de Deus, certo? então o que há pra se conectar com o todo? o que Deus precisa fazer pra se conectar com Deus, que experiencia ele precisa ter, se a própria experiencia, também já é ele? o que seria nós e nossa veia jugular? quando damos caráter de realidade a todas essas distinções não estamos negando a omnipresença de Deus? não seria Deus negando a si mesmo, se imaginando separado de si mesmo e buscando a si mesmo em uma busca sem sentido, que não leva a lugar nenhum, que não resulta em nada além do que já é, além de si mesmo? desculpe de novo, mas ainda vejo uma contradição na sua resposta, você diz que acredita que Deus é o todo, tudo, mas acredita que algo nos cura, então repito a pergunta, quem cura o quê? seria Deus curando a si mesmo da ilusão de não ser Deus, mesmo que nunca tenha deixado de ser? ou seria Deus curando uma segunda existência, que não é ele mesmo, de alguma enfermidade, que também não é ele mesmo? e se for assim, Deus não seria algo separado do todo, da enfermidade e daquele que é curado? obrigado pela atenção!

    @raph: A ilusão de separação é necessária para que compreendamos o que é esse Todo, passo a passo, uma inspiração, outra inspiração, um pensamento de cada vez. Se fôssemos criados perfeitos desde o início, não seríamos seres que evoluem, mas fantoches, autômatos, robôs… Diz uma lei antiga que “todos os paradoxos serão reconciliados”. Nesta reconciliação, perceberemos, quem sabe, que o Vermelho era somente uma cor, assim como o Azul, e que tudo é Luz, até mesmo a escuridão sempre foi preenchida por tal Luz, mas não tínhamos olhos para ver.

    Racionalmente falando, algo que pode ajudar é a leitura da “Ética” de Benedito Espinosa, particularmente o primeiro capítulo… Abs!

    1. essa garota sabe realmente perguntar! Enfim, no fundo, ela está perguntando “porque tudo isso”… ralph esclareceu um pouco, mas essa pergunta continua sem resposta…apenas conjunturações filosóficas baseadas em pensamentos de pessoas anteriores, que podem ter lógica, mas como sempre, não são passíveis de provas e experimentações… talvez se alguém conseguir chegar ao “décimo dan” das ciências metaf´sicas, atingir a iluminição and stuff, mas até lá… abçs ralph

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