Em março de 2004 eu estava lendo ao mesmo tempo “Espaço-tempo e além” (sobre física quântica) e “O Livro de Mirdad”, e por uma questão de sincronicidade vi o mesmo tema por dois ângulos diferentes, mas assustadoramente convergentes. Por isso escrevi os dois posts em sequência, naquele ano, e repito aqui.
Teu pai não está morto, Himbal. Nem estão mortas ainda a sua forma e a sua sombra. Mas estão mortos, verdadeiramente mortos, os teus sentidos para a forma e a sombra alteradas de teu pai, pois há formas tão tênues e delicadas, com sombras tão atenuadas que os olhos grosseiros do homem não as podem divisar.
A sombra de um cedro na floresta não é a mesma que a de um cedro que se tornou mastro de um navio, ou pilar de um templo, ou cadafalso de uma forca. Nem é a sombra daquele cedro a mesma ao Sol e à luz das estrelas. No entanto, aquele cedro, não importa quanto haja sido transformado, vive como um cedro, embora os outros cedros da floresta já o não reconheçam mais como irmão.
Pode o bicho de seda que está sobre a folha reconhecer a irmã na crisálida que se encontra adormecida no casulo de seda? Ou pode esta reconhecer sua irmã na borboleta da seda que voa?
Podem os vapores no ar, ou as águas no mar, reconhecer como irmãos e irmãs os pingentes de gelo na caverna da montanha?
Pode a Terra reconhecer como irmão o meteoro que cai sobre ela das profundezas do Espaço?
Pode o carvalho ver-se a si mesmo na bolota?
Devido ao fato de teu pai estar agora em uma luz à qual os teus olhos não estão acostumados e em uma forma que não podes perceber, dizes que teu pai já não existe. Mas o eu material do Homem, não importa quanto haja sido modificado e para onde tenha sido transportado, sempre projeta uma sombra até que se haja dissolvido no Eu-Divino do Homem.
Um pedaço de madeira – seja ele hoje um galho verde na árvore ou uma cavilha na parede amanhã – continua a ser madeira e a mudar de forma, até que seja consumida pelo fogo que há dentro dela. Do mesmo modo o Homem continua a ser homem, quando vivo ou quando morto, até que o Deus que há nele o consuma, o que quer dizer: até que ele compreenda a sua unidade com O Único. Isso porém não se cumpre no ápice de tempo de um piscar de olhos que o homem gosta de chamar de uma vida inteira.
O Tempo todo é uma vida inteira. Não há paradas e começos. O Tempo é uma continuidade que se sobrepõe a si mesmo. A sua pôpa está ligada à sua prôa. Nada termina e é posto à margem no Tempo; nada começa nem termina.
O Tempo é uma roda criada pelos sentidos e pelos sentidos lançada a girar no Espaço. Vós sentis a estonteante mudança das estações e acreditais, então, que tudo está preso nas garras da mudança. Mas vos esqueceis de que o poder que dobra e desdobra as Estações é eterno, único e sempre o mesmo.
Vós sentis as coisas crescerem e decaírem, e irreverentemente declarais que a ruína é o fim de tudo que cresce. Mas esqueceis que o poder que faz as coisas crescerem e decaírem – esse não cresce nem decai.
Como dizeis vós que o crescimento é crescimento e a decadência é decadência e que um é inimigo do outro?
Já alguma coisa cresceu sem que o haja feito à custa daquilo que decaiu? E já algo decaiu que não fosse em benefício do que cresce?
Não cresceis vós por uma decadência contínua? E entrais em decadência pelo contínuo crescimento?
Não são os mortos o subsolo dos vivos, e os vivos o celeiro dos mortos? Se a Vida é filha da Morte e a Morte filha da Vida, então na verdade ambas são uma só em todos os pontos do Tempo e do Espaço.
E, na verdade, a vossa alegria de viver e de crescer é tão estúpida quanto a vossa dor de decair e morrer.
Muito semelhante ao esquilo na sua roda é o Homem, que tendo posto a roda do Tempo a girar fica de tal modo dominado por ela e levado pelo movimento, que já não pode crer que ele é que a faz mover, nem “acha tempo” para deter o giro do Tempo. A roda do Tempo gira no vácuo do Espaço. No seu aro estão situadas todas as coisas perceptíveis pelos sentidos que nada podem perceber senão no Tempo e no Espaço. E assim as coisas continuam aparecendo e desaparecendo. O que desaparece para um em certo ponto do Tempo e do Espaço, aparece para outro em outro ponto. O que pode ser dia para um é noite para outro, dependendo do “Quando” e do “Onde” do observador. Uma só é a estrada da Vida e da Morte, ó monges, sobre o aro da roda do Tempo, pois o movimento em círculo jamais pode atingir o fim e jamais se desgasta. E todo movimento no mundo é movimento circular.
Então o Homem jamais se libertará do círculo vicioso do Tempo?
Sim, o Homem se libertará, pois ele é herdeiro da Liberdade Sagrada de Deus. A roda do tempo gira, mas o seu eixo está sempre em repouso. Deus é o eixo da roda do Tempo. Conquanto tudo gire à volta dele no Tempo e no Espaço, ele é sempre sem espaço e sem tempo. Conquanto tudo seja procedente de sua Palavra, sua Palavra é tão sem tempo e sem espaço como Ele. No eixo está a paz. No aro a agitação. Onde quereis vós estar? Em verdade vos digo, escapai do aro do Tempo para o eixo e vos poupareis da náusea do movimento. Deixai o Tempo girar em volta de vós; porém não gireis vós com o Tempo.
Como pode o Homem, criatura do Tempo, libertar-se das muletas do Tempo?
Assim como a Morte te livrará da Morte e a Vida te libertará da Vida, o Tempo te libertará do Tempo. O Homem se cansará tanto das mudanças que tudo nele ansiará e almejará apaixonadamente por aquilo que é mais poderoso do que as mudanças. E é certo que se encontrará a si mesmo.
Felizes os que almejam, pois estão já no limiar da Liberdade. É a eles que busco; é para eles que prego. Não vos busquei a vós porque ouvi aquilo que almejáveis? Mas desgraçados serão aqueles que se embalam nas voltas do Tempo e nelas procuram sua liberdade e paz. Tão logo sorriem para nascer e já principiam a chorar para morrer. Tão logo se enchem são imediatamente esvaziados. Quanto mais pensam que sabem, menos em verdade conhecem. Quanto mais avançam, mais na verdade retrocedem. Quanto mais alto sobem, mais fundo caem. Para estes, minhas palavras serão vagas e irritantes murmurações. Enquanto também eles não anseiam pela Liberdade, não terão seus ouvidos abertos para as minhas palavras.
Mestre, para onde iremos depois de morrermos?
Os vossos corpos, conquanto circunscritos ao Tempo e ao Espaço, foram retirados de tudo que está no Tempo e no Espaço. Aquilo de vós que veio do Sol, vive no Sol. Aquilo de vós que veio da Terra, vive na Terra. E assim com todas as outras esferas e ínvias regiões especiais entre elas.
Só o tolo pensa que a única morada do Homem é a Terra, e que as miríades de corpos que flutuam no Espaço são meros ornamentos da morada do Homem e distração para os seus olhos. A Estrela da Manhã, a Via Láctea, as Plêiades não são menos moradas para o Homem do que esta Terra. Cada vez que elas enviam um raio para os seus olhos, o elevam até elas. Cada vez que ele passa sob elas, as atrai para si.
Todas as coisas estão incorporadas no Homem, e o Homem está, por sua vez, nelas incorporado. O Universo é um corpo único. Comunga com a menor partícula dele e estarás comungando com o todo. E assim como morres continuamente enquanto vives, assim viverás continuamente quando estiveres morto; se não neste corpo, em um corpo de outra forma. Mas continuarás a viver em um corpo até te dissolveres em Deus; o que significa que terás vencido todas as mudanças.
Voltamos à Terra enquanto viajamos de mudança em mudança?
A lei do Tempo é a repetição. Aquilo que uma vez ocorre no Tempo está fadado a ocorrer de novo e tornar a ocorrer; os intervalos, no caso do Homem, podem ser longos ou breves, dependendo do desejo de cada homem e da vontade de repetir.
Quando passais deste ciclo conhecido como vida para o ciclo conhecido como morte, e levais convosco uma sede que não foi satisfeita pela Terra e uma fome que não foi saciada pelas suas paixões, então o magneto da Terra vos atrairá novamente ao seu seio. E a Terra vos amamentará e o Tempo vos desmamará de vida em vida e de morte em morte, até que vos desmameis por vós mesmos, de uma vez e para sempre, de acordo com a vossa própria vontade.
Quero ser desligado da Terra de uma vez para sempre. Como poderei fazê-lo, Mestre?
Amando a Terra e todos os seus filhos. Quando o Amor for o único saldo de suas cotas com a Terra, então a Terra te dará quitação do teu débito.
Mas Amor é ligação e ligação é aprisionamento.
Não, o Amor é a única coisa que liberta da prisão. Quando amas a tudo a nada estás ligado.
Pode alguém, pelo Amor, escapar à repetição das suas transgressões contra o Amor e, desse modo, fazer parar a roda do Tempo?
Tú o podes conseguir pelo Arrependimento.
A maldicão proferida por tua língua procurará outro pouso quando voltar para ti e encontrar a tua língua coberta de bênçãos provenientes do Amor. Assim o Amor evitará que aquela maldição se repita.
Um olhar lascivo procurará os olhos lascivos e ao voltar encontrará transbordantes de olhares de Amor os olhos que o haviam enviado. E assim o Amor evitará a repetição daquele olhar lascivo.
Uma intenção maldosa emitida por um coração maldoso procurará aninhar-se, e quando voltar encontrará o mesmo coração repleto de intenções provenientes do Amor. Assim o Amor evitará que se repita aquela intenção maldosa.
Isto é Arrependimento.
Ainda há uma coisa que perturba meu coração e anuvia a minha compreensão, Mestre: Por que meu pai morreu desta morte e não de outra?
Tudo que é guardado na memória do Tempo fica profundamente gravado sobre as coisas do Espaço. A própria terra que pisais, o próprio ar que respirais, as próprias casas em que morais poderiam facilmente revelar-vos os mínimos pormenores do registo de vossas vidas – passada, presente e do porvir – tivesseis vós a capacidade de ler e a perspicácia de entender o sentido.
Na vida, como na morte; na Terra ou além da Terra, jamais estareis sós, mas na constante companhia de seres e coisas que participam de vossa vida e de vossa morte, assim como vós participais da vida e da morte deles. Assim como os buscais, assim eles vos buscam. O Homem tem sua conta com todas as coisas, e estas têm sua conta com o Homem. Esse intercâmbio segue sem interrupção.
O raio jamais feriria a casa se a casa o não atraísse. A casa é tão responsável pela sua ruína quanto o raio.
O assassinado afia o punhal do assassino e ambos desferem o golpe fatal.
O roubado dirige os movimentos do ladrão e ambos cometem o roubo.
Sim, o Homem convida as suas próprias calamidades e depois protesta contra os hóspedes importunos, por se haver esquecido quando e como escreveu e enviou os convites. O Tempo, no entanto, jamais esquece; o Tempo entrega o convite no endereço certo, e o Tempo conduz cada convidado à casa do anfitrião.
E em verdade vos digo, jamais protesteis contra um hóspede, para que ele não se vingue, demorando-se muito tempo ou tornando as suas visitas mais freqüentes do que seria normal. Sede bondosos e hospitaleiros para com eles, seja qual for o seu procedimento ou comportamento, pois na realidade são vossos credores. Dai aos mais importunos do que deveis, para que se vão gratos e satisfeitos e para que, se voltarem a visitar-vos, o façam como amigos e não como credores.
Uma resposta
Belíssimo texto!