Jung – As Cinco etapas da Consciência

A primeira etapa é caracterizada pela participation mystique (termo tomado do antropólogo francês Lévy-Bruhl). Refere-se a identificação entre a consciência do indivíduo e seu mundo circundante. Ex: Quando o carro tem algum problema, o proprietário fica doente, ou tem dores no estômago. Isso acontece por estarmos vinculados inconscientemente ao mundo que nos cerca. Neste sentido, a primeira etapa da consciência é equivalente á última etapa; a unificação com o TODO. O mundo de um bebê é extremamente unificado. Ele considera que a mãe é parte integrante dele, que não há limites entre ele e um móbile acima do berço. Chamamos a isso de projeção. A maioria das pessoas estão vinculadas às suas famílias, e há identificação quando o filho ou o marido acha que é dono da mulher.

Na segunda etapa, já é possível perceber os limites, a diferenciação sujeito/objeto eu/você. Mas isso não significa que a projeção foi superada, apenas passou a ser mais localizada. Note que as etapas não são exatamente superadas, mas interpoladas. É por isso que um adulto possa ter a mesma identificação com a esposa (“ela é minha”) que tinha com a mãe, quando bebê. Mãe, brinquedos favoritos, objetos brilhantes… pessoas especiais são escolhidas e distinguidas. Os pais passam a ser objeto de adoração, e representam a onipotência e onisciência. Jung chamou a isso de projeções arquétipicas: “Papai é super forte, e pode fazer qualquer coisa! Mamãe me ama incondicionalmente!”. A chocante revelação de que os próprios pais não sabem de tudo ocorre na adolescência, e então, durante um certo tempo, os pais estão “completamente por fora” (outro tipo de projeção). Também projetamos em irmãos (daí a rivalidade) e professores (daí as paixões, ou aversões).

Na terceira etapa a pessoa se dá conta que os portadores das suas projeções específicas não correspondem a essas projeções. As pessoas ficam desidealizadas, e o mundo perde muito do seu primitivo encanto. O conteúdo psíquico projetado torna-se abstrato, e manifesta-se através de símbolos e ideologias. O jovem entra pra uma banda, vira rebelde sem causa, usa drogas, manda toda a “sociedade” pra PQP, ou então vira um místico ou religioso. Nesse caso a onisciência e onipotência, antes atribuídas aos pais ou professores, são projetadas em entidades abstratas, como Deus, Destino, Anjos, Verdade ou Bob Marley. Filosofia e Teologia tornam-se possíveis. A Lei, ou a Revelação, passam a estar investidos de projeções arquétipicas, deixando o mundo concreto como algo neutro. A pessoa passa a não temer inimigos, pois quem está no controle é Deus, ou acha que pode manipular e assumir o controle do mundo racionalmente, porque ele obedece às leis da natureza. A empatia com as pessoas tende a diminuir, por não interessar o sofrimento de fulano com sicrano, mas sim as idéias vigentes para o bem comum. Ex: Uma pessoa faz uma coisa ecologicamente certa, não porque lhe doa no íntimo assistir à destruição do mundo natural, mas sim porque é o correto social e moralmente pra solucionar os problemas do mundo. Enquanto uma pessoa achar que Deus vai premiá-la ou puni-la, ela está na etapa 3 do nível da consciência.

A quarta fase representa a extinção total das projeções, mesmo na forma de abstrações teológicas ou ideológicas. Essa extinção leva à criação de um “centro vazio” que Jung identifica com a modernidade. O sentimento de alma – antes grandioso, no sentido e propósito da Vida, de um “Deus íntimo” – é substituído por valores utilitários e pragmáticos (os demônios estão convertidos em sintomas psicológicos e desequilíbrios químicos cerebrais). O indivíduo contenta-se com breves momentos de prazer, ou entra em depressão por querer sempre mais. Nesta quarta etapa da consciência, natureza e história são vistas como o produto do acaso e do jogo aleatório de forças impessoais. Parece como se as projeções psíquicas tivessem desaparecido completamente, quando na verdade o próprio ego é que foi investido com os conteúdos previamente projetados em outros, em objetos e abstrações. Assim, o ego está radicalmente inflado na pessoa moderna e assume uma posição secreta de Deus Onipotente. Embora a pessoa moderna pareça ser razoável e estar assentada em bases firmes, na realidade está louca. Mas isso está escondido, uma espécie de segredo guardado até da própria pessoa.

Jung acreditava que essa quarta etapa era extremamente perigosa pela razão óbvia de que o ego inflado é incapaz de adaptar-se muito bem ao meio ambiente e, por isso mesmo, é passível de cometer catastróficos erros de julgamento. Embora isso seja um avanço da consciência num sentido pessoal ou mesmo cultural, é perigoso por causa do seu potencial para a megalomania. A pessoa da Etapa 4 já não é controlada por convenções sociais relacionadas, seja com pessoas, seja com valores. Por isso o ego pode considerar possibilidades ilimitadas de ação. Isso não significa que todas as pessoas modernas sejam sociopatas, mas as portas para tal estão bem abertas…

Nem todo mundo chega à etapa 4. De fato, muitas pessoas não podem suportar suas exigências. Outras consideram-na maléfica. Os fundamentalismos do mundo insistem em manter-se aferrados às etapas 2 e 3, por temerem os efeitos corrosivos da etapa 4 e o desespero e vazio que ela engendra. Mas é uma verdadeira façanha psicológica quando as projeções têm de ser removidas a esse ponto e os indivíduos assumem responsabilidade pessoal por seus destinos. A armadilha é que a psique passa a estar escondida na sombra do ego. Mas tudo é evolução, e essas etapas são necessárias para o desenvolvimento da consciência. A pessoa que chegou na etapa 4 sem cair numa inflação megalomaníaca passa, na avaliação de Jung, por uma notável transformação.

Na quinta etapa temos a reunificação de consciente e inconsciente. Há um reconhecimento consciente da limitação do ego e uma clara percepção dos poderes do inconsciente; e torna-se possível uma forma de união entre consciente e inconsciente através do que Jung chamou a função transcendente e o símbolo unificador. A psique unifica-se mas, contrariamente à etapa 1, as partes permanecem diferenciadas e contidas na consciência. E, também ao contrário da etapa 4, o ego não é identificado com os arquétipos: as imagens arquetípicas continuam sendo o “outro”, não estão escondidas na sombra do ego. São vistas agora como “aí dentro”, ao invés da etapa 3, onde estão “lá fora” (em algum lugar no espaço metafísico), e não são mais projetadas em algo externo.

Oficialmente, Jung deteve-se na etapa 5, embora em numerosos lugares indique que considerou a realização de novos avanços para além dela. Há sugestões em seus escritos para o que poderia ser considerado uma sexta e talvez até uma sétima etapa. Por exemplo, no seu Seminário de Yoga Kundalini, realizado em 1932, Jung reconhece claramente a realização de estados de consciência no Oriente que superam amplamente o que é conhecido no Ocidente, e que poderia ser considerado uma etapa 7 potencial.

Fonte: Jung e o mapa da alma, de Murray Stein

Compartilhar:

Facebook
Twitter
Pinterest
LinkedIn

Respostas de 6

  1. Muito interessante!

    Fiquei em dúvida na etapa 4: seria o homem moderno, que conseguiu um certo sucesso, tem muita auto-confiança, pensa em termos de sucesso (principalmente dinheiro), inclusive que ele sabe que é capaz e por suas ações, e ocultamente se acha um “deus”?

    Vou dar um exemplo de cada nível, seriam bons exemplos?
    1 – bebê ou materialista miserável (já adulto)
    2 – criança ou adulto infantil
    3 – adolescente ou crente
    4 – adulto moderno (com certa cultura) ou materialista de “sucesso”
    5 – pessoa consciente de seus pensamentos/modos de agir (?) (Não consegui achar um estereótipo pra esse)

  2. Dá para encaixar perfeitamente com Malkuth, Yesod, Tiferet, Daath e Kether, na ordem.

    Me identifico com algo entre o 4 e o 5, mas certamente estou longe de ser um iluminado, o que me leva a crer que, apesar de guardar algumas semelhanças, as etapas descritas pelo Jung e os degraus (as Sephiroth na Cabala e os Chakras na Yoga, bem como os Jhanas no Budismo) não são a mesma coisa.

    As 5 etapas da consciência parecem ser a aplicação de um padrão que não culmina na iluminação, mas sim na maturidade como ser humano. (não desmerecendo, pois não é pouca coisa)

    Talvez a diferença esteja no grau e na intensidade em que as coisas são experimentadas. Nem todo niilista do calão de um Baudrillard está experimentando Daath como descrevem os místicos, por exemplo. Porém, são análogos.

  3. Não entendi a etapa 5:

    “o ego não é identificado com os arquétipos: as imagens arquetípicas continuam sendo o ‘outro’, não estão escondidas na sombra do ego. São vistas agora como ‘aí dentro’, ao invés da etapa 3, onde estão ‘lá fora'”

    Se continuam sendo ‘o outro’ como podem ser vistas como ‘aí dentro’?

    1. Sua pergunta me lembrou da fenomenologia, esse estudo é muito rico.
      Basicamente o outro é dentro também, o próprio fora e o dentro se passam na mente, a fronteira é estabelecida abstratamente, por exemplo, a pessoa do seu lado, você percebe ela por um processamento pesado das suas sensações (sentidos físicos), que originalmente não significariam nada. O que você percebe são ideias, projeções, traçando limites ou falta de limites, você pode estar misturado a ela ou não dependendo do modo como pode percebê-la.
      E os arquétipos são ideias, tão existentes quanto a ideia da pessoa do seu lado, o as ideias que você faz (percebe) de si.

  4. Algumas conclusões a que cheguei, meditando sobre este texto:

    Etapa 1: Malkuth
    Etapa 2: Yesod
    Etapa 3: Tiferet
    Etapa 4: Daath
    Etapa 5: Keter
    Ok, as correlações das etapas 1,2 e 3 talvez sejam meio forçadas, mas a etapa 4 me lembra muito a ideia do abismo de Daath. Um vazio imenso, onde o “significado” das coisas se perdeu e estamos sózinhos contra um mar de informações caóticas. E a etapa 5 lembra muito com Keter. A uniao e integração de tudo em um unico ponto infinito e eterno.

    Pessoalmente, eu acho que as portas da sociopatia estão abertas em todas as etapas, exceto na etapa 5. Talvez na 4 elas estejam mais em evidência, mas no fundamentalismo da 3, na obsessão da 2 e nas cegueira em relação a realidade da 1, este perigo também existe.

    Enfim, ótimo texto. Parabéns.

  5. Existe uma idade minima para uma pessoa chegar a quinta etapa?
    Pois eu ja me identifico com esta, estou “observando” meus dois lados por assim dizer ( animus e persona), mas sou bem nova.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Social Media

Mais popular

Receba as últimas atualizações

Assine nosso boletim informativo semanal

Sem spam, notificações apenas sobre novos produtos, atualizações.

Categorias

Projeto Mayhem

Postagens relacionadas

Mapa Astral de Pablo Picasso

Pablo Picasso (Málaga, 25 de outubro de 1881 — Mougins, 8 de abril de 1973), foi um pintor, escultor e desenhista espanhol, tendo também desenvolvido

Mapa Astral de Timothy Leary

Timothy Francis Leary, Ph.D. (22 de outubro de 1920 – 31 de maio de 1996), Professor de Harvard, psicólogo, neurocientista, escritor, futurista, libertário, ícone maior

Mapa Astral de Oscar Wilde

Eu não gosto muito de postar vários mapas seguidos, porque o blog não é sobre Astrologia, mas agora em Outubro/Novembro teremos aniversário de vários ocultistas