Há séculos o rio Tâmisa não era atravessado por uma procissão de barcos tão bela e luxuosa. Por quase todos os prédios no percurso, os súditos da rainha exibiam, orgulhosos, a bandeira da Inglaterra nas sacadas. Em seu barco real, cercada da família e em pé na maior parte do trajeto, Elizabeth II retribuía com pequenos acenos a todos que se acotovelavam as margens para celebrar o jubileu de diamante de seu reinado (em 2012): 6 décadas como rainha da Inglaterra, governante suprema da Igreja Anglicana, e comandante-em-chefe das Forças Armadas do Reino Unido.
Um pequeno grupo protestava pacificamente com cartazes de mensagens contra a monarquia. “Não tenho nada pessoal contra a rainha. É mais uma questão moral de ter uma chefe de Estado não eleita em pleno século 21” – explicou-se um manifestante. Outro alegava questões mais econômicas do que políticas: “A ideia de celebrar a vida de luxo da rainha me faz passar mal; muitos lembraram que essas celebrações estão acontecendo num momento de austeridade (em toda Europa), em que muitos estão perdendo seus empregos”… Estranho de se pensar: ainda assim, a grande maioria dos britânicos apoia a permanência da monarquia, exatamente como é hoje, e assim como já o é há muitos séculos.
Mais estranho ainda se lembrarmos que, há poucos meses, no final de 2011, Londres foi sacudida por uma série de manifestações populares em bairros de baixa renda. Jovens desempregados e desiludidos atacaram grandes lojas e mercados, saqueando boa parte das mercadorias, e tocando fogo nas demais… O polonês Zygmunt Bauman, que vive na Inglaterra há anos, sendo para muitos um dos maiores sociólogos vivos, foi quem primeiro levantou a grande questão que podia ser lida nas entrelinhas daqueles dias caóticos; Aquela não era uma primavera londrina, e tampouco os manifestantes tinham claras reivindicações políticas a fazer. Tratava-se simplesmente de um ato de revolta, de revanche, dos “consumidores desqualificados que foram criados numa sociedade de consumo”. Aquilo que desejavam, os tênis e roupas de grife, era o mesmo que, ao mesmo tempo, amavam e odiavam – tanto que colocaram fogo em parte do que poderia ter sido saqueado.
Essa complexa dualidade, de amor e ódio em relação ao objeto de consumo, pode ser, senão vista, ao menos intuída, por todo o mundo moderno ocidental, e particularmente na Europa. Os governantes que, em meio à crise econômica, recomendam o ajuste fiscal dos países em débito – incluindo pesadas reduções de salários –, são os mesmos que, por outro lado, continuam a estimular e tentar manter vivo a todo custo um sistema já decadente de consumo desenfreado, onde é dito a todos e há todo momento, em propagandas que só faltam pular por debaixo do tapete da porta de nossa casa: “Compre, consuma, aproveite enquanto é tempo! Seja feliz com um novo smartphone, um carro zero, uma TV com 10 polegadas a mais… Mas não se esqueça de continuar comprando, pois coisas novas são lançadas há todo momento, e se você parar de comprar, já sabe – a economia esfria, e é capaz de você perder o seu emprego!”.
Ora, é óbvio que as pessoas não conseguem consumir tanto quando as propagandas incitam, e exatamente por isso que foi criado o crédito bancário, que é obviamente a melhor coisa que os bancos inventaram desde as Cruzadas [1]: emprestar dinheiro que as pessoas não têm, para que elas comprem o que não precisam; mas, não obstante, dinheiro este que serão obrigadas a pagar de volta, com juros. Ah! Os juros! O que os bancos fariam sem inventar crédito, e ganhar dinheiro de volta por algo que foi emprestado, mas que, em realidade, sequer existe, sequer têm permanência – todo valor do dinheiro impresso é, afinal, um construto da fé. Afinal, não sei se sabem, mas as leis que requeriam que existisse lastro material em ouro (ou outros valores) para os belos papéis coloridos já deixaram de ser usadas há décadas… Nosso sistema econômico: uma grande bolsa de crenças, onde especuladores podem ser confundidos com pastores.
Este dinheiro de valor impermanente é apenas mais um dos fatores que compõe o que Bauman intitulou modernidade líquida: onde todos os valores morais, todas as antigas tradições, entraram numa ebulição, numa mistura complexa e sempre fluida, em constante mudança, de onde é cada vez mais difícil extrairmos algum significado. Tempo é dinheiro e, como é exatamente o dinheiro que nos garante o consumo, vivemos correndo, “economizando” tempo em fast-foods, em relações amorosas superficiais, em relações familiares cada vez mais desconexas, já que não há mais muito tempo nem para os jantares em família… Com todo esse precioso tempo que foi “economizado”, nos sobra então o tempo que precisávamos para ir nalgum shopping center consumir.
E é bom que sejamos felizes nestes breves momentos de consumo, pois será nossa única chance de termos alguma felicidade… Ou, pelo menos é para essa vida que fomos educados na modernidade, e basta ligar qualquer televisão no horário nobre para verificar. Nas grandes agências de propaganda e marketing, especialistas que passaram anos e anos nas melhores escolas e universidades realizam o seu brainstorm diário exatamente para que a nossa mente não desgrude os pensamentos da vitrine mais vistosa. A culpa não é dos publicitários: eles estão apenas realizando o que foram educados para fazer; eu diria até que alguns deles foram muito bem educados para nos convencer de quase qualquer coisa… Estamos na desvantagem, e nosso pensamento foi aprisionado nalgum outdoor pelo caminho.
Mas foi somente nos últimos anos, onde se levantaram as bandeiras da ecologia e da sustentabilidade, que as pessoas, todas as pessoas (embora algumas finjam não saber), passaram a perceber que a conta da economia de consumo em crescimento exponencial não irá fechar com um planeta, um meio ambiente, de recursos naturais finitos. Se tudo o que consumimos, e principalmente o combustível envolvido na produção e distribuição dos bens, tivesse uma taxação sobre “recurso finito”, e não fosse tratado como algo fabricado a partir de materiais infinitos, provavelmente viajaríamos bem menos de avião, comeríamos muito menos frutas vindas da Ásia, ou queijos vindos da Europa.
Dessa forma, a sociedade de consumo, perdida na fluidez de uma vida sem significado, sabe muito bem que o mesmo objeto de consumo que hoje deseja, depois vira lixo, muitas vezes não tratado, não reciclável. E, sem reciclar o que é finito, para ser reutilizado, um dia a conta chegará… Bem, segundo Bauman, as gerações atuais, com seu sistema de crédito e consumo, nada mais fazem do que hipotecar o futuro. Estamos, dessa forma, comendo em restaurantes luxuosos e deixando a conta para que nossos netos e bisnetos paguem, literalmente. Sob esse ponto de vista, é mesmo bom que haja uma grande crise no horizonte.
E, quanto a monarquia inglesa, ela nada mais é do que uma âncora fincada no passado. Uma mitologia, um significado, uma narrativa da pátria, do “ser inglês”, que ainda traz sentido à vida britânica. Se os ingleses estão dispostos a continuar financiando os rituais de sua realeza? Enquanto não chegar uma nova era, certamente – para eles, é uma pechincha. E, afinal, o dinheiro não existe enquanto valor por si só, o que existe á uma crença nos valores que povoam nosso pensamento. Melhor comemorar a longa vida da rainha do que a curta vida do seu smartphone.
Ainda assim, um dia, mesmo a rainha cairá… Mas, e o que virá nesse interregno de eras, onde os sistemas e os reis antigos caem, mas os novos não se erguem, sequer foram ainda inventados? Isso, nem mesmo Bauman foi capaz de nos dizer…
Entrevista com Zygmunt Bauman no programa Milênio, da Globo News. Vinte e poucos minutos altamente recomendados.
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[1] Devido ao pouco espaço, estou trazendo alguns conceitos de forma superficial. Para se aprofundar melhor em alguns dos assuntos tratados neste artigo, recomendo consultarem alguns outros posts: A história do ouro; Padrão-fé (*TdC); O dinheiro que não existe; A lâmpada centenária; Nosso planeta, nossa casa; e finalmente Onde está o seu deus? (*TdC)
Crédito das imagens: [topo] AFP (Elizabeth II conversa com o decano David Ison ao deixar a Catedral de St. Paul); [ao longo] Anônimo.
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
Respostas de 9
Muito bom o texto
Como pensador que sou, fico intrigado aonde tudo isso vai nos levar
pois estamos em uma nova era, que seria a era da expansão da consciência,
mais o que vemos é que nosso futuro (nossas crianças e nosso jovens) serem ceifados de uma maneira tão avassaladora(erotização e o consumismo) que quase eu disse “quase” me faz desanimar……
enquanto EU acha que a partir de mim eu possa mudar a realidade a minha volta vou continuar…..
@raph – Eu acho muito boa a frase do Tolstói que diz mais ou menos assim: “todos pensam em mudar o mundo, mas poucos pensam em mudar a si mesmos”. Acho que, acima de tudo, é hora da gente, principalmente dos jovens, compreender que não adianta ficar esperando os governos resolverem a situação… A mudança vai ter de passar por cada um de nós, por um novo pensamento, que é somente através do pensamento que abandonaremos de vez uma era, para começar a elaborar a próxima. Cada pequeno passo, cada nova ideia, fará parte disso. Mas não precisa, e nem deve, ser algo apenas intelectual – precisamos mesmo de ideias pragmáticas, que possam ser postas em prática no curto ou médio prazo… Abs.
Esse Zygmund Bauman é um palhaço mesmo. Só rindo… Eu estudei esse cara na Faculdade. Curte só a história do “Comédia”:
Olha, eu sou o respeitadíssimo Zygmund Bauman, “intelectualóide” de Extrema Esquerda que foi conivente com os 20 MILHÕES de assassinatos nos campos de concentração, os Gulag,da ex-URSS e que, fui expulso de lá e fui procurar asilo num dos países centrais da Democracia Liberal: a Grã-Bretanha, que durante séculos expandiu, nada mais nada menos, que O MAIOR IMPÉRIO REACIONÁRIO DA HISTORIA (!!!) e que defende o que eu mais odeio no universo: a sociedade de consumo.
…
Sério, eu não vou fingir que tenho metade do conhecimento que esse cara acumulou. Mas ele, como Karl Marx, que também se refugiou na Inglaterra, é um hipócrita.
Por que não foi para a China, Laos, Vietnã, Cuba ou Coréia do Norte pedir asilo? Mas não, lá não existe o conforto dos modernos bens de consumo ou Liberdade de Pensamento que ele era contra quando morava na ex-URSS, inclusive. Que voltasse para a Polônia ou Israel, já que é judeu polonês, e defendesse suas idéias para salvar e remir os seus… Ops! os Judeus, esse grande povo, já conheceram a face monstruosa do Socialismo (Nacional, de Extrema Direita) com Hitler; e os Poloneses, deram um dedo em riste para a pinta na cabeça do Gorbachev e seu Socialismo (Internacional, de Extrema Esquerda).
Meu amigo, eu não sou “Hater” ou Anti-semita. Tenho certeza que você colocou esse texto com A MELHOR DAS INTENÇÕES, para reflexões e tal. Eu louvo sua pessoa pela iniciativa, mas peço que você me dê o benefício da dúvida: Zygmund Bauman é uma sombra débil e contraditória de um fanatismo ideológico torpe e cruel.
Eu sou Republicano, sério, mas prefiro uma monarquia democrática, do que uma república totalitária; prefiro um consumismo decadente do que um “Nacional-Comunismo” em flor.
Felicidades e obrigado.
@raph – Bem, o que posso dizer é que não sou de esquerda (nem de direita), e muito menos comunista. Eu sou um cara que gosta de pensar, e refletir sobre o pensamento dos outros também. É claro que eu sei que a história de Bauman é meio contraditória, mas na realidade ele me parece muito mais um socialista decepcionado com os rumos totalitários de onde quer que a utopia comunista tenha tentado se estabelecer, do que propriamente um hipócrita. Bauman não saiu da Polônia para divulgar o comunismo mundo afora, ele saiu exatamente porque viu que o comunismo não estava dando nem um pouco certo… Desde então, ao que parece, ele tem se focado no lado filosófico do marxismo, e não no político.
Mas o que importa é que a crítica de Bauman é bastante pertinente. Eu não estou (e nem ele o está) defendendo um “consumo zero”, mas sim uma reflexão acerca de nossos hábitos consumistas cada vez mais sem nexo. Eu tenho certeza que ninguém **precisa** trocar de celular a cada 6 meses. Nem de carro a cada ano. E, se voltarmos um pouco no tempo, veremos que décadas atrás ainda chamávamos manutenção para consertar uma TV ou uma geladeira quando davam defeito, hoje em dia a gente simplesmente compra uma nova… O problema aqui não é ideológico, não é propriamente uma questão de demonstrar um suposto “vazio existencial” em quem procura TER e não SER (embora ele quase sempre exista), mas algo muito mais urgente: se mantivermos tais padrões de consumo, o mundo não irá suportar. Ou melhor, o mundo continuará aqui, nossos bisnetos é que talvez já não estejam mais… Abs.
Cruuuzes! Fiquei até tonta com tanta lucidez!
Posso publicar este texto em meu Facebook? com os devidos créditos, claro…
@raph – Claro, se publicar lá, dá o crédito para nossa página no Facebook: http://www.facebook.com/textosparareflexao
Abs.
Ótimo texto para reflexão!
Percebo que ainda sou muito influenciado por esse estilo de vida sem sentido de consumo desmedido.
Me esforçando para mudar!
@raph – A sugestão nem envolve uma mudança tão radical assim, na verdade acaba sendo também uma boa lição de economia pessoal… Ah não ser que você seja milionário 🙂
Talvez não devamos nos ater a uma Era específica. Viver muitas Eras em uma, ter sociedades plurais, ter pessoas que são múltiplas personas, isso seria um grande avanço ao meu ver.
Já quanto ao consumismo… não sei. Sou pão-duro desde pequeno, mas não me privo de gastar com aquilo que gosto. Muito de minha felicidade se baseia em consumo, mas, para mim, isso é perfeito. Diminui as interações sociais -que, em excesso, me estafam-, diminui meu período de tédio e aumenta minha absorção de informação, conceitos, ideias, reflexões (consumo mídias-especialmente livros e filmes- em grande quantidade). Não acho que seria mais feliz sem esse consumo. De fato, lembrando-me dos tempos em que não podia tê-lo, tenho a certeza de que não seria.
Não porque ‘antes eu via o comercial e não podia comprar e hoje posso’ mas porque não tinha recursos para bancar os custos daquilo que eu gosto de fazer – ler, me entreter, me informar.
Oi Raph!
Como sempre, um texto que bate na cara e nos deixa a pensar: o que posso fazer pra mudar esse mundo? Isso me lembra as revoltas estudantis ao redor do mundo. Muito se espera da geração jovem que vem por aí, mas muitos se sentem desaparados, perdidos no meio de tanto lixo (literalmente) que acabam desistindo. Acho que isso só mudará quando cada um, jovens e pessoas mais maduras, enxergar que temos sim o poder para mudar: é só olhar para dentro de si, e fazer a mudança. Parece pouco, mas se fosse assim, 7 bilhões de mudanças seria A mudança no mundo.
Bjs!
@raph – Uma coisa que acho que vai ser essencial as novas gerações, é que aprendam a filtrar a informação relevante do “lixo”. Porque informação é o que não falta, em um mês vemos mais anúncios do que nossos bisavós viram a vida TODA. A cultura também nem sempre é uma cultura popular, mas uma cultura “ditada pelo mercado”… Aprender a, como os filósofos de outrora, identificar as questões mais profundas, relevantes para o espírito humano (e falo num sentido geral), será cada vez mais essencial a todos nós. Afinal, a gente só muda, e com isso muda o mundo, quando o pensamento muda. Um pensamento de cada vez…
Ótimo texto Raph! Parabéns.
É bem por ai o caminho. Enquanto as pessoas se acham no consumo irracional os valores se perdem em seus caminhos. Eu vejo que a humanidade está acordando desta ilusão do “ter”, e nosso papel, no sentido de pessoas mais esclarecidas, é diciminar estas idéias. Na verdade, temos que abraçar esta causa e lutar silenciosamente, one-to-one, como já é feito a muito tempo, porém, com um “contingente” bem menor comparado ao que temos hoje. Para muita gente, falta coragem para dizer que repudia todo este sistema.
Ainda somos a minoria, fato. Mas devemos crer que o universo conspira a favor de quem trabalho pelo bem.
Continue escrevendo!
Paz profunda.
@raph – O grande problema é a estagnação. Contra ela, a Natureza preparou uma grande crise climática, e dessa forma agora não temos muita alternativa: se não chegamos na próxima era pela sabedoria, agora chegaremos pela dor, ou com uma boa dose de dor… Ou não chegaremos… Mas tenho esperança que chegaremos 🙂
Sinceramente, eu prefiro ter um grande imperador(Como M.Aurélio em Roma) que saiba o que fazer com a mao de ferro do que ter que ver diariamente essa palhaçada da democracia do gado. Hoje a tirania é tao presente quanto a época da Revoluçao francesa, mas o que é horrivel nos nossos dias é que ela é aceita e votada pelo povo.
@raph – Na verdade faltam é governantes como Marco Aurélio na política atual. Ele nem precisaria ser um Imperador, pois já seria naturalmente aceito pelo povo, ou pela maioria do povo (esperamos). A grande questão talvez seja a equação da nossa “democracia” atual: não mais 1 pessoa/1 voto, mas 1 dólar/1 voto.
Porém, nunca foi tao facil ter acesso a cultura, a arte, a ciência. Nao é maravilhoso poder com uma ferramenta como a internet ter acesso as mais belas paginas dos grandes da musica? E as mais interessantes obras da literatura, dos escritores e filosofos de todas as eras? Quanto conhecimento temos a nossa disposiçao…
Hoje temos a faca e o queijo na mao. So falta cortar o queijo. Mas nao cortamos, que vergonha…
@raph – Mas é para isso também que existe a overdose de cultura inútil. Temíamos a ditadura do autoritarismo, mas o que temos agora é a ditadura das celebridades, da música pop e etc. O problema não é nem existir a cultura inútil, o problema é o patamar que nossa sociedade a coloca, muito acima da cultura tradicional folclórica, da filosofia, da ciência, da poesia, da espiritualidade, etc.
Muito obrigado pela coluna! Sempre conhecemos e confrontamos boas idéias por aqui.
@raph – Obrigado vc 🙂
Post muito bom raph
Obrigado 😉