Häxan – Uma Especulação Cult


Häxan (1922) é um filme no estilo semi-documentário, uma obra prima do cinema macabro executada pelo cineasta Benjamin Christensen. Este é realmente um “filme maldito” e pode ser considerado o primeiro “cult” do mundo. Este filme, para o público ligado à bruxaria e paganismo modernos, pode parecer uma séria provocação. Mas não podemos excluir em momento algum seu valor histórico e cultural, isto porque ele retrata a crença popular e os variados vestígios históricos do que se acreditava que as bruxas faziam. Fica óbvio, por exemplo, que o criador do filme baseou-se largamente no Malleus Maleficarum e em algumas confissões obtidas dos julgamentos de bruxas. Na época de seu lançamento, ele foi censurado, banido e condenado em vários países, desde que suas imagens foram consideradas extremamente impactantes. Não podemos nos esquecer que em 1922 questionar os mecanismos pelos quais a cristandade foi firmemente assentada no ocidente criava um absoluto mal estar aos “justos e decentes” cristãos (e ainda causa). O horror tinha que permanecer sob a poeira do tempo, mas Christensen, sob o manto da razão de sua época soprou-a impiedosamente. Tomando como base a idéia de que muitas pessoas sofriam com as privações e misérias da Idade Média, ele classificou o fenômeno da bruxaria como um indício de histeria generalizada, onde todos viam a magia e o demônio nos lugares mais insuspeitos. De certa forma ele não estava errado, mas talvez um pouco limitado em termos de pesquisa.

A demonização de outras deidades que não fossem Jahveh já existia nos primórdios do cristianismo, com Paulo em sua carta aos Coríntios, onde ele diz claramente que as pessoas estão fazendo sacrifícios aos “demônios” e não a Deus. E assim, o tema central da Inquisição foi sempre um alegado culto ao diabo, e com o tempo com o desenrolar da Inquisição fez com que os relatos ficassem cada vez mais parecidos, contendo quase sempre os mesmos elementos, como um exemplo da Inquisição em Avignon, em 1.582, onde uma porção de bruxas foi considerada culpada:

“…tu e tuas associadas negaram a Deus, o criador de todos nos e a Santíssima Trindade nossa Criadora, e que tu tenhas adorado o diabo, aquele antigo e implacável inimigo da raça humana. Destes seus votos a ele, para sempre, e renunciaram a aos seus Santíssimos Batismos e seus padrinhos assim, juntamente com vossas partes no Paraíso e a herança eterna que nosso Senhor Jesus Cristo trouxe para vos e toda a raça dos homens, através de sua morte… Fostes habilitadas a voar através dos ares na calada da noite, na hora apropriada aos mais vis criminosos, e nos dias declarados estavam tão carregadas e transportadas pelo próprio Tentador; e ali na comum sinagoga das bruxas, feiticeiras, hereges, conjuradores e adoradores do diabo, acenderam um fogo imundo e após muitas alegrias, danças, comendo, bebendo, e brincadeiras obscenas em honra de vosso presidente Belzebu, o Príncipe dos Demônios em forma e aparência de um bode negro deformado e horrível, e o adoraram, em obras e palavras como verdadeiro Deus… e convidaram-no sob o nome de verdadeiro Deus e invocaram seu auxílio.”

O que fica claro aqui é o critério de que elas não adorem a Jahveh. E já que todo o resto pertenceria ao reino de Satanás, pode-se especular que qualquer deidade que elas adorassem iria imediata e invariavelmente ser sincretizada com o “Príncipe das Trevas”.

A Inquisição tentou, durante as investigações dessas pessoas, fazê-las confessar terem chamado o diabo em seu auxilio. A última execução por acusações de bruxaria ocorreu em 1.802. O ponto de viragem aqui é a comissão que foi criada em Viena, em 1.756, com o objetivo de erradicar a superstição e promover o julgamento racional. A caça as bruxas foi proibida pela comissão, e quaisquer reclamações de bruxaria eram consideradas originárias de “mentes delirantes” que projetavam suas fantasias na realidade. O estatuto final da comissão foi lançado em 1.767, De Cultibus Magicus, por Konstantine Franz von Cauz, que comemorou o triunfo da argumentação racional sobre a superstição e a ignorância. Mesmo que essa mentalidade racional e gradualmente ateísta tomasse forma no continente, existiam aqueles que juravam a crença na existência da bruxaria e na eficácia da magia. (Nicholaj de Mattos Frisvold – Artes da Noite, pg 303)

Nem a Maçonaria ou o Rosacrucianismo fugiram do estigma “satânico”. Pelo contrário, o impulso anti-absolutista destes explicava o ódio virulento expresso pelos defensores da ortodoxia cristã, que viam a isto como uma heresia anti-Igreja, o “trabalho do Diabo” (cf. Roy Porter, em Bruxaria e Magia no Iluminismo, vol V da série de Ankarloo e Clark, Witchcraft and Magic in Europe).
Podemos argumentar que o satanismo é nada menos do uma heresia cristã, uma conseqüência oportuna da teologia maniqueísta, já que claramente o satanismo organizado é nada mais do que uma reação contra o cristianismo e apresenta um contraste a vergonha, culpa e repressão trazidas ao homem através do cristianismo. Contudo, desde a metade do século XV, o satanismo seguiu bruxas e feiticeiros como uma sombra indesejada e às vezes enigmática, mas o Satanismo, per se, só pode ser datado de 1.966 e a abertura da Church of Satan por Anton Szandor La Vey.
Enquanto Christiansen declara a histeria como motivador principal das ilusões que afligiam as alegadas bruxas, as investigações históricas e antropológicas apontam outros diversos fatores que poderiam estar em jogo. Uma delas é o sincretismo sobrevivente no catolicismo, com seus deuses antigos repaginados e adaptados ao reinado de Javeh, ainda muito presente em diversas vertentes de Bruxaria Tradicional.
O segundo fator ausente no filme-documentário é o uso de enteogênicos, tanto proposital quanto acidentalmente, o que explica muitos relatos de vôo e transformação.

O terceiro fator reside no impacto romântico dos escritos de Jules Michelet, Charles Godfrey Leland e K. J. Huysmans, o que em última instância criou uma adoção respeitosa de títulos que antes eram passivos como movimento de contra-cultura, numa espécie de rebelião à opressão e miséria impostas pelo cristianismo.O quarto fator é o padrão de repetição histórica: o estereótipo do Sabbath das Bruxas foi definido como uma congregação (por vezes chamada de “Sinagoga de Satã”, já que concomitantemente judeus eram tão condenáveis quanto bruxas) de homens e mulheres antropófagos. Alegadamente eles se reuniam em luxuriosos banquetes noturnos nos quais crianças eram servidas como prato, onde adoravam o Diabo e se lançavam a qualquer tipo de promiscuidade ou de atos criminosos. Mas acusações semelhantes já haviam sido feitas no passado, contra os bogomilos (cujos aderentes sobreviventes compõem a ancestralidade do que hoje conhecemos como Bruxaria Tradicional Basca), cátaros e valdenses. Aparentemente, a sociedade sempre temeu e odiou aqueles que estavam às margens do caos ordenado do homem comum.Na época da concepção do filme, ainda se acreditava que a histeria era a causa do sonambulismo e da cleptomania, o que hoje sabemos não ser verdadeiro. Até mesmo a idéia do que é a histeria mudou. No capítulo 7 do filme fica claro que todas as terminologias e exemplos que o filme utiliza são fundamentados na psicanálise. Como em 1:41h do filme, quando uma personagem diz ser atentada por forças desconhecidas, que tanto nos remetem ao imaginário da Idade Média de demônios, como a perspectiva psicanalista das forças ocultas doinconsciente. E quem eram as histéricas da psicanálise?

As histéricas eram a grande atração médica do final do século XIX. Mulheres que apresentavam convulsões, delírios, paralisias e falas desconexas. Nos séculos da Idade Média poderiam até serem consideradas possessas, mas não numa época demarcada pela franca ascensão do Positivismo enquanto doutrina, quando o ceticismo e a Ciência estavam dispostos a provar que tudo não passava de doenças nervosas e que não havia nada de sobrenatural. O problema é que o buraco era mais embaixo: Na histeria não há nenhuma alteração fisiológica no campo da neuroanatomia (pelo menos era o que se acreditava e havia se constatado na época).
Como lidar então com isso? Como poderia a Ciência materialista explicar esses fenômenos que afetavam um número grande de mulheres (e eventualmente homens) das mais diferentes classes sociais? Pois bem, é importante sinalizar que estamos no século XIX, muito antes de movimentos feministas, uma época em que as mulheres tinham um papel subserviente aos homens. Muitos médicos da época, diante da incapacidade do tratamento orgânico, alegaram que a histeria era uma doença de fingimento, chegando a fazer piadas como que o remédio para a histeria era “penis normalis dosim repetatur”, ou seja, pênis normais em doses constantes. Mas veja como é interessante: essa frase dita por um eminente médico da época em tom jocoso estará sendo mais tarde postulação central para a obra de Freud.
E já que Freud entrou em nossa história, o fundador da psicanálise também estava muito intrigado por essa doença quando foi para a França estudar com Martin Charcot sobre o fenômeno da histeria. Charcot utilizava o método da hipnose para o tratamento das histéricas, pois uma vez em transe hipnótico, ele ordenava para que elas tivessem os seus sintomas curados, e enquanto elas permaneciam em transe, seus sintomas desapareciam. Eram braços paralisados que voltavam a se movimentar, pessoas com falas desconexas que conseguiam construir uma história… Mas uma vez que o transe terminava, os sintomas retornavam.
Freud vai relacionar a doença nervosa com a sexualidade. A repressão da atividade sexual é vista como desencadeadora de fatores patogênicos, algo que até faz sentido para a realidade do século XIX, e imagine então para uma Idade Média onde a sexualidade é vista como pecado! Para o fundador da psicanálise, a civilização se repousa sobre a supressão das pulsões, pois para podermos viver em sociedade, cada indivíduo renuncia a uma parte de seus atributos, que pode ser uma parte de seu sentimento de onipotência, suas inclinações vingativas ou agressivas de sua personalidade. É, entretanto, indispensável certa quantidade de satisfação sexual direta e qualquer restrição dessa quantidade poderia estar se relacionando com a neurose. É preciso ressaltar aqui que não apenas nisso reside a neurose para Freud, pois há toda uma relação das vivências infantis de um indivíduo com a sua constelação familiar, a história do ser humano como espécie, as estratégias que inconsciente desenvolve para manter seu funcionamento, mas pelo que o filme vem a tratar no capítulo 7, não é necessário continuarmos nesta linha.
No tratamento da histeria, Freud vai então abandonar a hipnose e adotar o método de associação livre (esse mesmo conhecido da pessoa que deita-se no divã, fica falando coisas aleatórias e eventualmente é questionada pelo psicanalista). Para a “cura”, ele irá se aproveitar do fenômeno da transferência, um fenômeno caracterizado pelo investimento da autoridade em uma figura, dando um poder inconsciente a este significante. O fenômeno da transferência também seria comum às curas xamãnicas, passes espíritas e supostos pastores evangélicos que fazem curas milagrosas.
A histeria não é nenhum grande mal ou uma doença extraordinária. Na verdade, grande parte da população seria histérica, pois para Freud, todos os ditos “normais” são na realidade neuróticos, não havendo alguém totalmente saudável. Entretanto, segundo os psicanalistas, possivelmente com o movimento de liberação sexual dos anos 60, sintomas mais extremos não são tão freqüentes. Mas os comportamentos característicos de histeria ainda hoje seriam observáveis, segundo os mesmos. De qualquer modo, cabe questionar ainda se histeria seria realmente uma doença, ou algo que os existencialistas chamam de “uma forma de estar no mundo”. Cairíamos em uma simplificação grotesca e num discurso normativo se pensarmos apenas em patologias. É válido também destacar que ao invés de pensarmos em possibilidades que vêm para se excluir, podemos imaginar que são fatores que aparecem para somar. Ao invés de pensarmos que se é uma coisa ou outra, pode ser uma coisa e outra.
Desde que toda a natureza e qualquer forma de prazer carnal pertenciam ao domínio de Satanás, e assim não é difícil entender o apelo dos licenciosos Sabbaths das Bruxas, e que muitas das tais “histerias coletivas” nos conventos tenham sido gerados a partir da repressão sexual, em especial nas vidas monásticas impostas às mulheres daquela época. Também não é difícil entender o apelo do Sabbath quando se está lidando com toda a opressão, doença e miséria que marcaram todo o período medieval. As próprias crenças que o ser humano cria para se relacionar com o Divino são importantes fatores que marcam um determinado contexto. Reduzir o fenômeno que chamamos de ‘bruxaria” apenas a uma doença é um erro do filme, um esforço cético baseado em conceitos psicanalíticos para a explicar os fenômenos sobrenaturais aos nossos olhos não acostumados para compreender essas situações.
Apesar das falhas contextuais no filme, existem ali elementos interessantes, como feitiços escatológicos, as danças circulares e a referência clara aos ungüentos de vôo. Não só isso, o filme firmemente aponta o dedo para o modo em que as mulheres velhas e feias eram (e em muitos casos ainda são) tratadas, bem como os maltratos que os pacientes psiquiátricos são sujeitos ainda hoje nas instituições que deveriam estar tratando deles. Só por isso, já vale a pena assistir este filme.

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Respostas de 4

  1. ESPETACULAR!!!
    Parabéns pelo trabalho de pesquisa tão magistral e profundo… quem dera todos no mundo inteiro tivessem o entendimento real de tão fabulosos estudos…

  2. Para a trajetória de Freud na sua pesquisa sobre a histeria e o desenvolvimento da psicanálise, sugiro o filme “Freud Além da Alma”, cujo roteiro recebeu a contribuição de ninguém menos que Jean Paul Sartre.

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