Uma rima rápida é como um trovão de poesia:
O retoar atordoa, e a luz se propaga com maestria.
Há quem leia as duas frases acima e passe adiante, desapercebido – "hmm tá bem, e o que tem isso?" – e há quem reconheça ali, ainda que de modo superficial, uma "fragância" de poesia. Não cabe a nós julgar o que tange a percepção de cada um: cada qual percebe aquilo que pode, aquilo que tem interesse e, sobretudo, aquilo em que mantém o foco mental.
Decerto poesias não enchem a barriga de ninguém. Pode-se dizer, de modo mesmo prático: e que adianta a poesia? Por acaso a poesia vai resolver a miséria do mundo? As guerras? A ignorância? – A poesia é uma forma de arte, uma simbologia do sentido do ser e do "estar vivo", a poesia não está aqui para resolver o problema do mundo, nem mesmo o problema de ninguém em especial. Somos nós que resolveremos nossos problemas, no meio do caminho talvez a poesia nos ajude, talvez não, mas fato é que há quem ame poesia e há quem nunca tenha sequer compreendido seu significado mais básico. Porque afinal somos assim tão distintos? Será possível que se aprenda a compreender poesia?
Não sei ao certo se aprende-se a compreender poesia. Mas tenho quase certeza que aprende-se a sentir o mundo, e não apenas racionalizá-lo – Será que o mundo é apenas aquilo que foi descoberto pela ciência? Nesse caso, será que antes da ciência descobrir que a Terra girava em torno do Sol, esta preferia seguir a crença comum de que era exatamente o inverso, de que era o Sol que girava em torno da Terra? Está óbvio que não: ainda que o mundo se limitasse ao que nossa razão é capaz de compreender, ainda assim teríamos uma infinidade de coisas desconhecidas a bailar pelo Universo a nossa volta.
Fazer, entoar, participar da poesia é celebrar todo esse "desconhecido" a nossa volta. É exatamente não racionalizá-lo, apenas, mas também tentar compreendê-lo pelo sentir, como quem tenta compreender uma fragância de perfume por seu cheiro, e não pelo logotipo da embalagem, ou pela lista dos produtos químicos em sua composição. Entoar poesia é estar aqui e agora, tão somente vivendo, em certo sentido, dentro da simbologia que aquelas palavras nos despertam em nosso íntimo.
Obviamente que a poesia acima é somente um exemplo auto-referente, que quando muito pode despertar certa simpatia em alguns admiradores de poesia, porém ainda assim serve como exemplo para que nos indaguemos acerca de certos símbolos em nossas mentes: o que será um trovão de poesia? Imaginamos um trovão no céu chuvoso, ou uma chuva de palavras descoordenadas? Será que o trovão se refere apenas ao sentimento de medo e deslumbramento perante a Natureza quando esta nos envia uma tempestade? Porque será que o retoar de um trovão atordoa? Será pelo som que faz, ou pelo sentimento ancestral que nos desperta? Será que entoar tem a ver com retoar? Será que se entoa poesia como a Naturza nos envia trovões? Será que a Natureza é um poeta impessoal? Será que Natureza é poesia em estado bruto? Será que, como a luz, os sentimentos se propagam em meio aos céus revoltos das tempestades? Será que essas indagações fazem parte desta poesia tão simples? Onde será que termina uma poesia?
Poderíamos ficar assim indeterminadamente. Difícil dizer se isso é racionalizar ou sentir. Talvez a mera tentativa de classificar um sentimento seja racionalizá-lo. Por isso o homem não se comunica somente por sons ou gestos, mas também por algo de misterioso e poético, um relance de olhar, uma expressão indeterminada, algo que chamamos "empatia", o dedilhar do violão de um bardo, o entoar de uma oração sacra, ou apócrifa, ou uma oração que se faz na hora, e nunca mais se repete, um eterno celebrar da vida e do desconhecido. O viver aqui e agora, sem medo, nem dó, nem pena, nem nenhuma expectativa além daquela que a Natureza já nos promete à todo momento: a expectativa de ser realmente real tudo aquilo que sentimos ou racionalizamos.
Como atordoa,
Como atordoa…
Entoar poesia.
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Comentário
Este texto foi escrito originalmente para servir de prefácio para meu segundo livro de poesia, Em seus mares (a imagem da capa se encontra no início do post). Você pode baixar o livro gratuitamente em PDF, visualizar no issuu, ou comprar a versão impressa no Clube de Autores. A versão impressa conta com algumas poesias exclusivas, uma delas será publicada aqui na minha coluna em breve…
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
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Respostas de 4
Não sou poeta. Bem que tentei, mas era medíocre, confesso… Sei sentir, mas não sei me espressar com a métrica e a beleza estética necessária. O curioso é que na livre associação a coisa flui tão bem… Já trabalhei muito com a livre associação na escrita, que é quase uma psicografia anímica. Você, as vezes, não tem a mínima idéia da palavra ou da frase até ela ser completada, isso quando você não a escuta na sua cabeça. Muitas vezes, até discorda completamente do escrito, mas você o sente ao escrever. Confesso, é meu melhor divã psicanalítico… Um poema de livre associação é como um trovão de um raio que cai ao lado: a luz e o som vêem juntos. A poesia, nesse estado, é o sentir o mundo, interno e externo… analisar o poema depois, é aprender muito sobre si mesmo… Recomendo a todos o que Jung chamava de um método de imaginação ativa e outros de livre associação. Nada como a poesia, a música e a dança para nos ligar aquela esfera chamada de Netzach e por que não, ao seu eu interior…
@raph – Oi Lucio, acho que, poeta ou nao, esta indo muito bem em conhecer a si mesmo… Boa sorte na estrada para dentro de si 🙂
Engraçado , essa semana mesmo falei muito sobre poemas com meus amigos.
Fernando Pessoa , poemas com relação a ocultismo e por ai vai , muita sincronicidade você falar sobre esse tema aqui.
Logo começo a ler sua obra e já estou indicando!
Abraços!!
@raph – Oi Yuri, valeu! Meus “guias” na poesia sao Pessoa, Gibran e Tagore 🙂
Sempre me identifiquei com o trovão e seus nuances, tenho a impressão que ele rasga o tecido da realidade, trazendo algo mais.
Precisamos de mais poetas, quando mais diversa a escrita, mais pessoas encontram sua própria poesia.
Paz e Luz
Rafael,
Tentei achar informações no blog “Textos para Reflexão”, mas não encontrei essa informação específica, então achei melhor perguntar aqui, pois conheço melhor esse site. Queria saber qual é o diferencial dos livros que vocês vendem em domínio público em relação ao de outras editoras. Por exemplo, qual é a diferença de “O Caibalion” que vocês vendem para o da Editora Pensamento?
Desde já agradeço.
@raph: Olá Paulo. A principal diferença de conteúdo são as traduções em si. No caso do “Caibalion”, a minha tradução é de 2017-2018, enquanto a da Editora Pensamento é consideravelmente mais antiga (exceto a da edição de capa dura, que foi “atualizada”). Outra diferença é que trabalho só com autopublicação, seja em e-books na Amazon, seja em “print on demmand” pelo Clube de Autores (as versões impressas). Assim, apesar de achar minhas edições somente online, elas NUNCA sairão de linha, estarão sempre disponíveis para compra (é até possível que ache as impressas em sebos, mas não sei se valeria a pena comprar, a menos que não queira receber pelo correio). Abs!