Devoradores de Maçãs

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Parte final da série “A ciência da inspiração” ver parte 1 | ver parte 2

Metáfora: Figura de linguagem em que há a substituição de um termo ou conceito por outro, criando-se uma dualidade de significado.

Um dos mitos mais conhecidos da humanidade trata de jardim do Éden, onde os primeiros humanos criados por Deus, a sua imagem e semelhança, viviam imortais, ociosos e aparentemente felizes. Isso foi até que eles resolveram comer os frutos (o mito fala em maçãs) da árvore do conhecimento do bem e do mal, da qual Deus havia alertado que eles não deveriam comer, ou conheceriam a morte. E o resto todos já sabem: Deus ficou furioso e os expulsou do Éden apenas com alguns trapos feitos de couro de animais, pois que agora um se envergonhava da nudez do outro. E Adão e Eva povoaram o mundo, muito embora o pecado de Eva tenha nos amaldiçoado por muitos e muito anos, até que Jesus veio pagá-lo para nós.

Joseph Campbell, grande estudioso do assunto, dizia que “o mito é algo que nunca existiu, mas que existe sempre”. Ele provavelmente queria dizer que os mitos tratam de verdades que existem fora do tempo, ou seja, que existem sempre. Todo grande mito da humanidade fundamenta-se em uma ou mais dessas verdades, dessa partícula de essência que emana da eternidade. Foi exatamente por isso que os sábios antigos tiveram o cuidado de popular suas histórias com vários desses mitos. Eles sabiam, certamente, que muitos aldeãos e camponeses ignorantes de sua época iriam interpretar tais histórias ao pé de letra, de forma literal – mas sem dúvida também tinham a esperança de tocar a alma dos outros sábios que viriam a Terra em épocas posteriores.

O mito do Éden é repleto de metáforas. Talvez a mais interessante delas seja exatamente o paradoxo do pecado pelo qual Eva foi condenada. Ora, antes de devorar a maçã, ela era sem dúvida ignorante do conhecimento (seja do bem, seja do mal). Se nunca houvesse comido o fruto proibido, estaria ociosa e imortal, por toda eternidade, em um jardim onde poucas coisas interessantes acontecem – mas seria feliz, acredita-se. Animais ignorantes também são “felizes” vivendo no meio selvagem; Entretanto, as pressões do meio-ambiente nunca os deixaram relaxar: na guerra do sofrimento e da fome, mesmo em meio a sua “felicidade”, presas e predadores lutaram pela sobrevivência por longos e longos anos. Não fosse por essa pressão da natureza, talvez a Terra estivesse até hoje populada por hominídios, ou nem mesmo isso, por roedores e outros pequenos mamíferos…

Pois foi exatamente quando adquiriu à consciência e o conhecimento do bem e do mal que o ser humano se tornou quem é. Por um lado, portanto, a metáfora do fruto proibido é apenas uma história fantasiosa, por outro, é uma explicação surpreendentemente avançada para a época em que foi escrita. Será que os rabinos judeus tinham ideia de que estavam a antecipar um dos grandes mistérios da evolução das espécies? Será que tinham pleno conhecimento daquilo que escreviam talvez guiados pela pura intuição? Acredito que a resposta não esteja nem tanto lá, nem tanto cá. Certamente os sábios antigos tinham noção de que lidavam com assuntos sagrados, e que os estavam passando adiante “cifrados” em metáforas dentro de mitos. Mas da mesma forma eles certamente tinham consciência de que não tinham como saber tudo, e é exatamente por isso que passavam tais símbolos para as gerações futuras – como uma mensagem numa garrafa arremessada no oceano, a espera de alguma praia onde existam seres mais sábios para decifrar seus enigmas.

Nós já ficamos com nós na cabeça ao abordarmos o conceito de programação genética. E, da mesma forma, já consideramos com carinho a possibilidade da mente humana ser o resultado da interseção de módulos mentais (naturalista, técnico e social). Além disso, também falamos sobre como a neurologia compreende a criatividade: o foco mental em novos estímulos e ideias, em fluxo e trocas constantes com as ideias que já dominamos em nossas respectivas artes ou disciplinas… Ora, em posse dessas informações, talvez o processo misterioso dos algoritmos genéticos não seja mais tão insondável.

Vamos falar, por exemplo, de poesia: da mesma forma que gerações de algoritmos se digladiam no meio-ambiente do problema a ser resolvido, todos os estímulos que os poetas enviam para suas mentes – através de seus olhares sempre atentos aos menores detalhes da natureza à volta – nada mais são do que algoritmos em busca da solução de sua próxima poesia. A grande diferença é que, ao contrário dos programadores, os poetas geralmente sequer tem ideia de qual é o problema a ser resolvido – de certa forma, para eles, as soluções chegam junto com os problemas, embora nenhuma solução seja realmente a derradeira, e todos os problemas sejam quase sempre infinitos. Nessa batalha mental travada por estímulos ambíguos e aparentemente sem relação uns com os outros, ninguém sai derrotado, pois o fruto é sempre uma nova legião de metáforas. E estas maçãs são divinas, jamais proibidas… Os poetas são verdadeiros devoradores de maçãs!

Vejamos uma dessas “soluções”, pelo grande poeta místico, Gibran Khalil Gibran:

Na floresta só existe lembrança dos amorosos
Os que dominaram o mundo e oprimiram e conquistaram,
seus nomes são como letras dos nomes dos criminosos
Conquistador entre nós é aquele que sabe amar
Dá-me a flauta e canta!
E esquece a injustiça do opressor
Pois o lírio é uma taça para o orvalho e não para o sangue

Neste belo trecho do poema “A floresta”, é impossível chegar a uma compreensão efetiva do que o poeta quis dizer sem usar ao menos parte de nossa emoção e nossa intuição juntamente com nossa razão… Mesmo assim, ficará sempre aquela dúvida se realmente compreendemos todo o bem e todo o mal deste belo fruto da inspiração de Gibran. O lírio é uma taça para o orvalho, e não para o sangue – quantas e quantas interpretações e conceitos contidos em apenas uma frase.

Há ainda outros poetas que conseguem inserir metáforas dentro de metáforas dentro de ainda outras metáforas… Quando Fernando Pessoa diz que “o poeta é um fingidor, finge ser dor a dor que deveras sente”, ele está nos trazendo para uma análise existencial da qual a solução jamais será algo racional, objetivo, tal qual 2+2=4. Nesse sentido, é possível que os algoritmos genéticos sejam extensões de nossa racionalidade, aplicadas a problemas descobertos por nossos cientistas e matemáticos, e que tudo o que fazem é poupar seus cérebros de rodar trilhões de cálculos, antecipando uma solução que em séculos passados seria inviável. Entretanto, na poesia pode ser mais depressa ainda: a solução chega junto com o problema. A diferença é que na poesia a solução jamais será final, e após termos devorado todas as maçãs do Éden, teremos de sair nós mesmos em busca de mais conhecimento – ainda que o velho barbudo tenha se esquecido de nos expulsar…

Muito do debate acerca da existência de Deus se resume ao ancião das metáforas do antigo testamento bíblico – sim, pois o Deus de Jesus é sempre um coadjuvante, que intervém apenas por emanação de pensamentos, e não de forma “direta”. Esses debates se parecem mais com debates entre crianças que brincam em uma praia – uma delas constrói um castelo de areia e diz que “esta é a cidade de deus”… Enquanto outras crianças com senso crítico mais desenvolvido esperam as ondas da maré chegar e destruir os castelos, e então bradam convictas: “Viram! Não lhes disse que este deus tinha pés de barro?”.

Ora, mas e se o reino de Deus estiver em sua volta? E se ele abarcar não só os castelos de areia, como cada grão de areia da praia, e cada gota de água do mar, e cada nuvem e cada pássaro a planar pelo céu, e cada sol a flutuar pelo Cosmos, e cada partícula a bailar por nosso cérebro e nossa alma?

Einstein dizia que “a ciência sem a religião é manca; a religião sem a ciência é cega”. Ora, um dos grandes cientistas de nosso tempo, em sua maturidade, defendia uma “religiosidade cósmica”, baseada na presença de um poder racional superior, revelado no universo ainda oculto ao conhecimento da ciência. Muitos outros cientistas e filósofos foram teístas, deístas, panteístas, agnósticos, etc. Para quem possuí muita ciência, fica muito difícil apostar que tudo o que há surgiu do nada como numa “passe de mágica cósmico”. No mínimo, é preciso admitir que tal questão não pode ser compreendida hoje, e talvez jamais possa… De qualquer forma, pela lógica, também se faz necessário concordar com Espinosa (como Einstein, aliás, concordou) quando este afirma em sua “Ética” que “uma substância não pode criar a si mesma”…

E se Deus for um grande programador cósmico? E se nós formos parte dos algoritmos divinos que ele inseriu em sua criação? E se no núcleo de cada átomo, nos filamentos de cada DNA, em cada um de nosso neurônios, nas partículas etéreas de nossa alma, não estiverem inscritos códigos sagrados que ditam que este Cosmos nada mais é do que um problema em solução? E se formos nós mesmos os personagens e co-criadores desta poesia infinita? Navegando dentre raios cósmicos e poeira de estrelas, é impossível participar deste problema sem estarmos encharcados de Deus por todos os lados e a todos os momentos…

O reino de Deus sempre esteve a nossa volta. Nós jamais fomos expulsos do Éden. Tudo o que falta é compreendermos isso – que o Éden jaz, antes de mais nada, em nossa consciência… E que Deus ou o Cosmos jamais foram uma solução, jamais uma muleta na qual pudéssemos nos acomodar, mas sim um grandioso problema que vem sendo solucionado passo a passo, inspiração por inspiração. Nós devoramos uma maçã de cada vez…

Na floresta não existe nem rebanho, nem pastor
Quando o inverno caminha, segue seu distinto curso como faz a primavera
Os homens nasceram escravos daquele que repudia a submissão
Se ele um dia se levanta, lhes indica o caminho, com ele caminharão
Dá-me a flauta e canta!
O canto é o pasto das mentes,
e o lamento da flauta perdura mais que rebanho e pastor

Gibran Khalil Gibran, trecho de “A floresta”.

***

Crédito das fotos: [topo] Guto Lacaz (exposição "Einstein no Brasil"); [ao longo] Marcos Homem

 

O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.

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Respostas de 11

  1. Se formos ser literais, Deus não expulsou os homens do Paraíso porque ficou bravo, mas sim porque “agora nada impede que eles comam do fruto da Árvore da Vida e se tornem como um de nós”.
    A quem deus estava se referindo com “nós” é um mistério.
    @raph – Bem, foi o próprio Rabi da Galiléia quem disse: “vós sois deuses, nalgum dia farão tudo que faço e ainda muito mais…”

  2. É engraçado que na biblia não fala que é a maça a fruta proibida.
    Como suspeitos temos a maça, o centeio, a banana,, tamarindo e uva
    E estudar o motivo dessas frutas terem sido as escolhidas já engrandesse o indivíduo.

  3. Depois arruma o titulo está maças. Diferente de maçãs.
    Não leva a mal mais dá para entender como outra coisa.
    ótimo texto, parabéns.
    @raph – Obrigado, corrigi também todas as “maças” ao longo do texto 🙂

    1. hehe é porque “maça” ou no plural “maças” seria referindo-se a uma arma medieval, ai poderia mudar o foco do texto.
      Novamente parabéns pelo texto vou até deixar separado para ler com calma em casa, vejo no trabalho e reflito em casa as noites sobre os textos postados aqui no teoria da conspiração.
      Abraços.
      @raph – É, esse é o tipo de erro de gramática que o corretor do Word não ajuda muito, já que a palavra “maça” também existe hehe, mas boa reflexão em casa, afinal esse é o objetivo da coluna e do meu blog 🙂

  4. Ih… esse Deus parece mais um vilão que um Programador Cósmico, a Potencialidade de Tudo etc etc etc. Quando lemos o Gênesis notamos que ele parece mais um tipo de antagonista menor de narrativas: temeroso, pequeno, limitado. E não estava sozinho, como o “nós” e alguns Salmos dão a entender. Aliás, esse era o entendimento dos gnósticos, que concebiam esse Deus como mau e o Deus de Jesus como um Ser Superior e inatingível. Minha dúvida é: os gnósticos construíram sua interpretação a partir de textos anteriores, escritos pelos judeus. Por que os judeus conceberiam seu deus supremo como uma divindade assim, que chegava a temer que os humanos se tornassem como ele?
    @raph – Olha eu vou dar minha opinião, e apenas opinião mesmo, porque nunca estudei o Antigo Testamento mais a fundo: existem muitos espíritos de grande capacidade intelectual e, porque não dizer, magística, que NÃO possuem um nível compatível de moral ou sabedoria… Muitos deles chegaram a Terra banidos de mundos “superiores”, o que lhes levou a crer que os espíritos terrenos estariam mais para seus “serviçais” do que qualquer outra coisa… Não quer dizer que sejam maus (ou muito maus), mas que ainda não conseguiram deixar o ego totalmente de lado. São esses que gostam de ser chamados de deuses e senhores de exércitos e etc. E essa é a minha opinião 🙂

    1. Vinicius, não falo pelos judeus que escreveram o “Antigo Testamento”, nem pelos que conceberam as narrativas presentes nele. Provavelmente, o que eu vou dizer não seria aceito por quase nenhum judeu atual também – não que seja grande novidade… Bem, vou deixar a minha “opinião”.
      O “Deus do Antigo Testamento” é uma colcha de retalhos de outros deuses venerados pelos povos contemporâneos dos hebreus, caldeus, canaanitas, persas em geral etc. O deus que cuidava das plantações não é o mesmo que cuidava do exército. O deus que guiou o povo no deserto não é o mesmo que eles encontraram em “Canaã”.
      Claro que achar que é o mesmo traz a visão de um Deus Louco (esquizofrênico, com múltiplas personalidades, sádico). Mas, por ser um panteão, cada deus tinha também suas limitações. Um não tinha piedade, mas outro tinha; um perdoava demais e virava a p…/bicho de estimação dos outros deuses; um cuidava de fazer crescer a vida, outro de terminar com ela…
      E, como os deuses eram limitados, todos tinham medo dos seres humanos. Pois deuses são arquétipos rígidos, e o ser humano é maleável. Logo, o ser humano evolui, transcende suas limitações e se torna melhor que seus próprios deuses.

  5. Em “O Poder do Mito” Joseph Campbell faz uma observação interessante sobre a expulsão do Éden, não exatamente nestas palavras: “Adão e Eva foram expulsos do Jardim do Éden por comerem do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Mas o que é Cristo senão a própria Árvore da Vida?”. É o próprio Cristo que fala em diversas passagens, como esta: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo. João 6:51”.
    Se o próprio Cristo diz que viveremos para sempre, será que não é hora de entendermos real e profundamente, o que quer dizer “Nosce te ipsum”, ou seja, “Conhece-te a ti mesmo”? Pois, não é VOCÊ, Deus? Estamos a 2000 mil anos adorando um cristo fora de nós enquanto podíamos estar agora, neste momento contemplando o Xristos que há em cada um de nós. Podíamos ser Beleza ou muito mais, entretanto, teimamos em viver incessantemente nO Reino, em Maya. “Não basta olhar para si. É preciso SER VOCÊ.”
    @raph – Porque apesar de todo eclesiástico, ou seguidor de igrejas, ser religioso, nem todo religioso é seguidor de igrejas. E o religare a Deus ou ao Cosmos obviamente é muito mais uma questão interna do que externa, e o reino de Deus, como disse Jesus no Ev. de Tomé, já está a nossa volta, mas não o enxergamos… É o tipo da coisa que requer tempo, dedicação, vontade… Não se trata de uma barganha com Deus – “te dou minha fidelidade e você me dá o Céu”, mas antes um sentimento de plenitude de significado, de compreensão de que tudo o que há existe através de Deus, que estamos encharcados dele por todos os lados, e que é sobrtudo através do amor que estamos em contato mais direto com a eternidade. Não há porque fazer barganha com Deus: tudo já nos foi dado, basta percebermos.

  6. O “nós” vem do conceito de que o deus judaico não é um ser. Ele seria ao mesmo tempo todos os seres, vários e um apenas.
    “Eloim” é uma palavra no plural, sem gênero…. ou, conforme diriam alguns, de gênero duplo, incluindo o gênero feminino e o masculino no mesmo nome.
    É mais ou menos o mesmo que o plural real usado na antiguidade. Um rei absoluto não dizia “eu farei” ou “eu concedo”. Ele diria “nós faremos” ou “nós concedemos”, porque “l’etat c’est moi “. Um rei absoluto não fala por sí, mas por todo o Estado.
    Jeová não falaria como um homem sentado em um trono, mas como o conjunto de toda a criação, suponho.

  7. Belíssimo texto Raph, deverás eslarecedor. Parabéns!
    O que mais me impressiona aqui no blog é o nível dos comentários, chega a ser absurdo o quando engrandecem/complementam os “posts”.
    Vida longa ao TdC!
    @raph – Verdade, pelo menos eu no meu blog e o MDD aqui no próprio TdC já criamos posts retirados de comentários, eles engrandecem e complementam sem dúvida alguma, e essa é a grande vantagem do TdC ser quase uma espécie de comunidade ou fórum de ocultismo e espiritualidade (e, claro, ainda temos o Projeto Mayhem tb).

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