Um conto sobre as almas e suas máscaras…
“Ora, faz o que bem quiser” – diz-me Lídia sempre que venho propor mais uma de nossas conversas a beira de seu lago. Não é sempre que consigo achá-la em casa, pois sua morada é distante – alguns séculos no passado – e somente podemos chegar até lá nos raros momentos em que há esta distinta paz na alma. Lídia é bela e gosta de conversar sobre tudo, menos sobre a acusação de que ela e as irmãs exigiram um sacrifício…
“Há de ser toda a Lei: que não fiquem inventando mitos sobre nós! Deixem-nos cuidar das águas, cuidem de sobreviver que nós cuidamos de viver” – é quando ela fala isso que consigo sentir que, apesar de meio-deusa, ela é ainda tão mortal quanto nós. Dizem que a linguagem é sempre uma ficção, e que nada que pode ser descrito por palavras corresponde à realidade. Ora, mas isso é óbvio, me surpreende que as pessoas creiam que mitos tratem da realidade em que sobrevivemos – não, eles tratam de heterônimos, de máscaras para as almas.
Pessoa também foi amigo de Lídia, mas se despediu lá pelo passado e não pôde mais se defender nem se explicar… Dizem que inventou tantos heterônimos que ele próprio era um desconhecido de si mesmo, uma mitologia feita pessoa. Dizem que tudo o que há de real em Pessoa é sua poesia, e isso basta. Ora, mas ele fica muito agradecido, só não entende como podem ter vasculhado toda sua obra e ter convenientemente esquecido de publicar exatamente à parte em que ele fala de si mesmo. Pessoa vivia uma vida oculta, apenas isso – “está tudo lá explicado” – ele dizia a Lídia…
A linguagem trata sempre de dois mundos, o transitório e exposto, e o oculto e permanente. O mundo oculto não possuí movimento algum, apenas essência, e por isso empresta seus mitos ao mundo transitório, onde cada grão se move e vibra em turbilhão, onde absolutamente tudo está catapultado rumo a imensidão. Todos os heterônimos de Pessoa falavam sobre isso, e eram todos mitos de um homem só, de uma só essência… Depois que se compreende, é simples.
Mas eu sempre trago a questão das disputas religiosas e anti-religiosas para Lídia. E ela sempre me diz mais ou menos assim: “deixem que se digladiem pelos seus espantalhos de mitos, nós aqui não temos nada a ver com isso… No fim, tudo se resume a questão da sobrevivência sobre a vivência. São como símios que precisam impor-se ante seu pequeno grupo, mas ocorre que ninguém poderá jamais domar o pensamento alheio; ao menos não o pensamento que se encontra livre, do tipo que ainda consegue enxergar a essência por detrás de todas essas máscaras…”
“O amor, o amor é o que importa, o que nos une a todos em uma teia de luz” – ela geralmente completa… E são nesses momentos que percebo que sua beleza não está na superfície, na menina de seus olhos, mas bem mais aprofundada, como pequenos cristais de calcário capazes de refletir ao Sol mesmo lá debaixo, por dentre todo o lodo de seu lago.
Eu tenho visitado e conhecido esses mitos, essas almas… Tudo o que há são almas – algumas puras em sua ignorância, outras que se comprazem na própria ignorância e insistem em caminhar em círculos; ainda outras que sofreram já o suficiente, deixando o rastro de seu sangue em diversos espinhos da floresta. E existem as bem-aventuradas, que evitam espinhos e sangue, e chegam tão mais depressa na margem do lago das nereidas.
O amor sob a vontade, a vida sobre a sobrevivência, o dar sobre o receber, o buscar sobre o encontrar, a máscara sob a alma – “não, não é necessária mais essa máscara, agora você já pode nos ver como sempre temos lhe visto” – este é mais ou menos o caminho que leva a casa de Lídia. Tenho passado boas temporadas por lá…
raph’10
***
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
(trecho de poema de Ricardo Reis)
***
Nota: No meu conto eu faço um paralelo entre Lídia e o mito das nereidas, mas não tenho certeza se Pessoa tinha tal intenção. Em todo caso, não existe nenhuma nereida chamada Lídia, mas existe uma que se chama Ligea – há uma proximidade entre ambos os nomes.
Crédito da foto: Bernd Vogel/Corbis
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
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Respostas de 5
Não há como lembrar que é impossível que algo fique ruim com uma boa interpretação de Pessoa. Ainda mais sendo Raph o intérprete. Hehe
@raph – Valeu, mas nesse caso acho que foi mais inspiração do que interpretação. Sabe quando não sabemos exatamente porque diabos escrevemos alguma coisa, e no entanto “surgiu de algum lugar”? É mais ou menos por aí 🙂
Raph
inspiração ou interpretação … rendeu essa bela composição.
Parabéns
@raph – Obrigado 🙂
“O amor, o amor é o que importa, o que nos une a todos em uma teia de luz”… muito legal o pensamento. Como escrito por Camões e cantado por Renato Russo, em “Monte Castelo”: “… é um estar-se preso por Vontade”.
Ver em parte dá um nó daqueles na mente… ao tatear o “elefante” pela tromba, me parece uma serpente, pelas patas, parece uma árvore… quando será possível montar o quebra-cabeças cósmico? Tenho que cuidar do sobreviver, mas não seria nada mal cuidar do viver, de vez em quando… Isso me lembrou um conselho de um Exú conhecido, dito há muitos anos, quando ele me perguntou como eu estava e eu disse que estava sobrevivendo. A resposta dele foi: “vc deve aprender a viver e não apenas a sobreviver”…
Falta muito…
Abraços
@raph – Então, onde ouvi isso primeiro foi na Carta do Chefe Seattle, e agora tenho refletido sobre isso por muito tempo. A conclusão que chego é que há muitas oportunidades para se viver no mundo moderno (onde temos geladeiras, por exemplo), mas mesmo assim continuamos optando por sobreviver na grande maioria das vezes. O Chefe Seattle disse assim (ao então presidente americano):
“O destino de vocês é um mistério para nós. O que vai acontecer quando todos os búfalos forem sacrificados? O que vai acontecer quando os recantos secretos da floresta estiverem passados com o odor de inúmeros homens e a vista das colinas verdejantes se macular com os fios que falam?
Será o fim da vida e o começo da sobrevivência.”
http://textosparareflexao.blogspot.com/2008/05/palavras-do-chefe-seattle.html
Raph, você falou dessa carta acabei lembrando do livro a teia da vida de Fritjof
Capra que tem como epígrafe uma parte desta carta:
Isso nós sabemos
Todas as coisa são conectadas
como o sangue
que une uma família…
O que acontecer com a terra
acontecerá com os filhos e fihas da terra
O Homem não teceu a teia da vida
ele é dela apenas um fio
O que fizer para a teia
estará fazendo a si mesmo.
Ted Perry (inspirado pelo Chefe Seattle)
Acharia o interressante o blog falar sobre o Capra,já que o autor foi um pioneiro em relacionar a fisica moderna com o pensamento oriental.
@raph – Um dos episódios da série de entrevistas “O Poder do Mito”, com Joseph Campbell, se inicia com o mesmo lendo uma versão resumida da carta (que é o texto que usei no meu blog). Sem dúvida acho que muita gente conheceu essa carta pela primeira vez ali, ou antes nos livros dele. Não fosse por Campbell, talvez tivesse sido esquecida… A carta é importante porque demonstra muito claramente que o estágio espiritual daqueles índios estava muito a frente dos colonizadores americanos. De modo que fica mais fácil classificar os colonizadores como os verdadeiros selvagens da história.
“nunca regressa”
acho que regressa assim, embora possa ser considerada uma pessoa/ser diferente.
As moléculas de água, através de seu ciclo natural, voltam a ser uma nascente e depois rio. Embora seja mais provável que tenha outro destino, nada impede que a mesma molécula de água volte a ser parte do mesmo rio que já foi um dia…