» Parte 2 da série “A ciência da inspiração” ver parte 1
Mente: 1. Conjunto das idéias e convicções de uma pessoa, concepção, imaginação, intelecto; 2. Capacidade de raciocinar ou aprender, inteligência.
Retornemos aproximadamente 200 mil anos no tempo, e observemos uma pequena comunidade de caçadores-coletores nas planícies africanas, berço de todos nós, os humanos. São ainda hominídios, humanos arcaicos, mas já possuem seus módulos mentais relativamente desenvolvidos: a inteligência geral foi herdada das outras espécies das quais evoluíram, e é responsável pelos processos básicos de instinto e sobrevivência; A inteligência naturalista desenvolveu-se ao longo da persistente guerra da fome – o conhecimento do terreno em sua volta, a análise dos rastros de presas livres deixados no solo, o cuidado para evitar plantas venenosas, etc; A inteligência técnica permitiu o manuseio de objetos e até mesmo a elaboração de ferramentas, como pedras pontiagudas que facilitam o corte da carne das presas abatidas; E, finalmente, a inteligência social evoluiu desde que reconheceram que caminhar pelo mundo em bandos era mais seguro do que enfrentar as caçadas sozinho.
Tais hominídios acabaram de retornar de uma boa caçada, e estão aproveitando o pouco tempo que resta de luz do sol no final da tarde… Alguns estão retalhando as carcaças para que a comida possa ser compartilhada; As mulheres e anciãos estão descansando, conversando, ou ensinando as crianças algumas regras básicas da vida em sociedade tribal; Já aqueles mais hábeis com os cinzéis estão afiando as pontas das lanças utilizadas na última caçada, ou ainda criando novas… Todas mais ou menos no mesmo formato, projeto de algum gênio primordial que se espalhou e manteve-se inalterado por dezenas de milhares de anos. Não havia muita criatividade, não havia muita inspiração, praticamente não existia a arte, nem a religião…
Avancemos então para cerca de apenas 50 mil anos atrás. No tempo da evolução das espécies terrestres apenas um piscar de olhos de meros 150 mil anos… Ainda estamos nas mesmas planícies do continente mãe, só que agora observando o retorno da caçada – igualmente bem sucedida – de uma comunidade de homo sapiens, humanos como nós, nossos avôs e avós ancestrais. Percebemos que eles continuam cortando as carcaças recém-abatidas (embora com instrumentos mais anatômicos e afiados, ainda de pedra), continuam fabricando novos instrumentos e afiando os desgastados, e as mulheres e anciãos continuam dando instruções básicas de vida social para os infantes. O que mudou, afinal?
Para os arqueólogos, os registros do solo dizem que mudou muita coisa, embora para os leigos talvez essa mudança passasse desapercebida. Ocorre que, na tribo de hominídios, cada grupo realizava sua tarefa em uma área em separado da aldeia; Já nos homo sapiens, todos faziam as atividades uns próximos aos outros, geralmente em torno da fogueira… Nessas longas noites de conversas e atividades após a caçada, muito do que somos hoje tornou-se possível.
Segundo o arqueólogo (sim, arqueólogo mesmo) Steven Mithen em “A pré-história da mente”, foi essa intercessão entre os módulos da mente primitiva que catapultou nossa inteligência a patamares inimagináveis para os humanos ancestrais. Subitamente, os dentes de animais caçados, que antes eram descartados, se tornaram decoração de colares; Colares estes que também serviam para demonstrar para outros membros (e mulheres, quem sabe) da mesma tribo quão bons eram os caçadores que os ostentavam; Da mesma forma, as pegadas deixadas na terra pelas presas tornaram-se também símbolos que demonstravam o tamanho e a direção em que o animal se deslocou; E logo tanto símbolos naturais quanto animais quanto os próprios homens se fundiram em pictogramas pintados em cavernas profundas – registros da história de um povo que se reconheceu como povo; Talvez ao mesmo tempo, surgiram os mitos, as forças naturais tornadas meio-homem, meio-animal, meio-espírito, meio-deus – a religião ancestral surgia em meio ao animismo e ao xamanismo, juntamente com a consciência de nossa vida e nossa mortalidade.
Esta é apenas uma teoria de Mithen, mas acredito que seja muito bem fundamentada. Essa união de módulos mentais, essa divina fluidez cognitiva, faz-se representar até os dias de hoje… Já se parou para perguntar por que a maioria das pessoas passa cerca de 2/3 de seu tempo de convívio com qualquer outra pessoa falando sobre relacionamentos com outras pessoas, ou os relacionamentos de famosos, ou quem morreu e quem nasceu? Ou porque revistas com fotos imensas de modelos de beleza que não possuem muito espaço para texto vendem que nem água? Ou simplesmente porque apreciamos tanto uma boa fofoca? Ora, Mithen sabe: porque nossa fluidez cognitiva nasceu de nosso convívio social ancestral – nada mais justo que dediquemos tanto tempo a ela ainda nos dias atuais. Ou pelo menos, se ainda nos identificamos com nosso lado animal…
Nós trocamos idéias, trocamos palavras, trocamos símbolos uns com os outros constantemente. Nosso maior dom não é a visão ou a audição ou nem mesmo a racionalidade, mas antes de tudo, a capacidade de interpretar símbolos. Um dom sim, mas que muitas vezes pode se tornar também uma maldição – principalmente quando mal fazemos idéia da extensão de tal capacidade.
A criatividade é a capacidade de reformular o que conhecemos, em geral sob a luz de uma informação nova, e de desenvolver um conceito ou uma idéia original. A fim de ser criativa, uma pessoa precisa ser crítica, seletiva e inteligente.
O processo criativo transcorre, segundo a ciência, da seguinte forma: nossos cérebros são bombardeados de forma contínua com estímulos, sendo que a maior parte é ignorada. Essa “exclusão” garante que usemos as informações mais relevantes para direcionar nossos pensamentos. A abertura de nossas mentes para informações novas promove o arranque do processo criativo. Para isso, o cérebro desativa a atenção aguda, identificada por eletrencefalograma como ondas beta (estado de alerta) e permite o aparecimento de ondas alfa, amplas e lentas (estado de relaxamento mental e ociosidade). Desse modo, os estímulos, que de outra forma poderiam ser ignorados, tornam-se conscientes e ressoam com as memórias, gerando novos pensamentos e idéias que podem ser tanto originais quanto úteis. Pois é, deve ser por isso que as pessoas têm a maioria das boas idéias no cafezinho, e não durante um dia estressante de trânsito e trabalho nas grandes cidades…
Os artistas que dominaram suas disciplinas têm uma base de conhecimento que sustenta melhorias e mudanças a partir da repetição e/ou reorganização dos padrões simbólicos que eles já dominam. Tal habilidade permite que esses processos rodem na inconsciência, liberando a consciência para a absorção e reconhecimento de estímulos inteiramente novos. Pessoas assim possuem uma alta capacidade de retornar a um estado de alerta mental quando reconhecem uma nova idéia, pois de forma recorrente as submetem a uma avaliação crítica rigorosa – “será que isto combina ou acrescenta algo a minha arte?”. Os estímulos, os símbolos que sobrevivem a esse segundo processo de pensamento criativo tendem a ser valiosos e, portanto, julgados como genuinamente originais.
Sejamos então todos artistas de nossa própria vida, pois que ela sempre será nossa obra mais importante. Após a longa caçada, após tantas noites de conversas em fogueiras amedontrados e extasiados com a imensidão da noite a volta, de alguma forma fomos guiados por essa vasta natureza a uma certa fluidez de pensamento. Em todos esses dias de homens, aprendemos passo a passo a compartilhar símbolos, idéias, pensamentos, e emoções… Nem sempre temos sido bem sucedidos em reconhecer tudo isso que há de sagrado em torno e mesmo dentro de nós – seja no mecanismo, seja no sentido. Mas o que importa é que podemos aprender com nossos erros, e melhorar um pouco, um pensamento de cada vez.
Idéias, idéias são tudo o que há além da natureza que aqui já estava quando chegamos. Idéias são tudo o que iremos deixar em retribuição. Reconheçamos então quais são as idéias que nos levarão a frente, e quais são âncoras disfarçadas de pipas, prontas a nos deixar fixados no mesmo lugar por mais uma vida inteira.
Sejamos caçadores então, e façamos de nossa caça uma verdadeira arte: cacemos não para sobreviver simplesmente, mas para viver, viver plenamente, viver em harmonia, conectados com a infinita teia da vida a nossa volta. Cacemos idéias que se escondem além da galáxia mais distante e no menor pedaço de átomo que fomos capazes de enxergar. Cacemos o horizonte à frente, cacemos os mecanismos e o sentido desse turbilhão universal, cacemos a nós mesmos, cacemos ao amor. Enfim, cacemos pela enorme felicidade e a enorme paz que essa caçada nos proporciona.
» Na continuação, metáforas, poesia e o grande programador cósmico…
***
Crédito das imagens: [topo] Becoming Human; [ao longo] Werner Backhaus/dpa/Corbis
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
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Respostas de 12
Belíssima postagem, Rafael.
A propósito, o que você acha do papel do nosso cardápio no desenvolvimento da consciência? Terence McKenna gostava de discursar sobre isso, dizendo que a expansão das nossas percepções e do potencial da nossa imaginação foi comandada, sobretudo, por uso de substâncias psicoativas na dieta alimentar (principalmente cogumelos) ao longo de milhares de gerações humanas. Sem isso, muito possivelmente, não estaríamos com mentes tão capazes de interpretar símbolos e, consequentemente, a criatividade seria muito menos do que é hoje.
Isso sem falar nas bebidas de cogumelos psicodélicos fermentados usados por xamãs e que, certamente, deram grandes idéias pra humanidade nos primórdios da civilização.
Enfim. A famosa afirmação de que “somos o que comemos”.
O que você acha desse tipo de teoria da evolução da consciência?
Grande abraço.
@raph – Oi Alan, obrigado.
Sobre o “somos o que comemos”, isso faz muito sentido mesmo se levarmos em consideração apenas a ciência dita oficial… Porém, não tenho experiência de uso e nem conhecimento suficiente sobre substâncias psicoativas para dar meu pitaco. Tenho esse livro na minha lista, entretanto, e após ler ele provavelmente terei muito mais bases para falar alguma coisa: “Sobrenatural – Os Mistérios Que Cercam a Origem da Religião e da Arte”, de Graham Hancock, Ed. Nova Era – http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/3536201/sobrenatural-os-misterios-que-cercam-a-origem-da-religiao-e-da-arte/
Abs!
*slow clap*
Oi sincronicidade, quanto tempo! Como você está?
Estive estes últimos dias pesquisando estados alterados de consciência, a arte como forma de magia e até um pouco de xamanismo e hoje senti uma vontade anormal de ver o tdc xD
Tudo graças ao social.. e tantas pessoas se comportando de modo tão egoísta =/
Não que seja muuuuuuuito relevante, mas até onde eu aprendi, a atenção aguda é caracterizada por ondas Beta. O Alpha é um estado alterado de consciência já (especialmente nos dias de hj).
O legal de Alpha é que em Alpha os dois hemisférios trabalham de forma harmônica e sua capacidade cerebral melhora bastante, especialmente coisas como memorização, etc.
Ah, Alpha está muito associado aos sonhos tbm (é onde ocorre o REM).
Gama e delta é realmente associado à “criatividade”, mas, na minha opinião, de forma mais específica ao acessar planos de consciência mais elevada.
O foda é que a gente tá tão acostumado a trabalhar na frequência Beta e Alpha que não consegue, muitas vezes, trazer à consciência o que sabe em Delta e Gama.
@raph – Olha, eu confesso que não tenho conhecimento específico sobre isso, mas minha referência foi o texto do “Livro do Cérebro” da DK, que no Brasil foi lançado nas bancas em 4 edições, pela editora Duetto: https://www.lojaduetto.com.br/produtos/?idproduto=1445&action=info
(Antes de mais nada, me corrigindo: onde eu falei Gama, era Teta)
Bom, há um risco claro de eu estar errado, mas eu tomo por base o que foi ensinado na AMORC e na Pró-Vida, com algumas complementações de coisas lidas e comentários da minha namorada (que é psicóloga e fez uns cursos em Neurofeedback).
Me ensinaram que as frequências cerebrais são APROXIMADAMENTE: Beta 21~14 hertz, Alpha 17~7 hertz, teta 7~4 hertz e Delta 4~aproximadamente 0.
Mas tem discussões a respeito… tem gente que fala que Beta vai até 28. Pessoalmente eu gosto de pensar em: Delta até 3,5, teta de 3,5 a 7, alpha de 7 a 14 e beta de 14 a 28. Por quê? Porque é bonitinho numericamente.
Além disso, tem gradações, né? Alpha profundo… Beta Acelerado… e por aí vai.
A Wikipedia tem um artiguinho sobre eletroencefalograma que dá uma boa idéia: http://en.wikipedia.org/wiki/Electroencephalography
A bem da verdade, tem uma grande zona cinzenta… e a Ciência vai se atualizando e acrescentando coisas novas (ondas Mu, por exemplo).
Em termos de atenção, tem variações no meio do caminho… Beta (até onde eu sei) é o estado de atenção padrão em que vc está procurando estímulos sensoriais (vendo, ouvindo, cheirando, etc.)
Alpha já é um Estado Alterado de Consciência caracterizado por um relaxamento… é onde vc sonha. Em alpha tem um monte de coisas legais (mais fácil memorizar, permite a concentração melhor, tem alguns fenômenos psíquicos envolvidos).
Teta e Delta tbm tem outras coisas envolvidas, mas o grande tchãs é conseguir manter a consciência nesses estados alterados de consciência.
Na verdade… mesmo Alpha tem uma galera com certa dificuldade.
Os nomes dados não são muito relevantes, óbvio… o importante mesmo é saber a qual estado vc está se referindo, pra quê ele serve e como acessá-lo…
@raph – Pois é, a parte dos títulos para cada “frequencia”, acredito que tudo o que disse acima apenas complementa o que foi dito no artigo, então obrigado…
@raph – Na verdade, após uma “pesquisa rápida” aqui, vou consertar o artigo porque acho agora que você está certo e a minha referência estava errada 🙂
Ola, belo texto
sobre os comentários, gostaria de acrescentar algumas coisas. Realmente as ondas betas estão relacionadas à vigília, ou seja, ao nosso estado ordinário, enfim é a que estamos usando ao ler um texto, ou fazer nossas atividades diárias. Mas, elas também são as ondas do sonho durante o sono. Nos sonhamos na fase REM (movimentos rápidos dos olhos, em inglês). Outro nome para essa fase, se vc optar pela nomenclatura da escola europeia (francesa para ser mais exato) essa fase seria chamada de sono paradoxal, pois apresentamos o mesmo padrão de onda da vigília. O que difere então o sonho da nosso estado desperto? é que no sonho, não há movimentos musculares, com exceção (além obviamento do coração rs) dos músculos oculares, daí a relevância do movimento ocular refletido na nomenclatura de sono REM.
as ondas alfas estão relacionados àqueles períodos meio nebulosos do despertar, onde sonho e realidade se misturam, é a primeira fase do sono (as ondas como foi dito vão realmente se lentificando conforme o sono progride,,, até acelerar novamente no sonho e após ele vai lentificando-se novamente até nosso próximo sonho na mesma noite. cada repetição dessas é considerada um ciclo. “ciclamos” em media a cada noventa minutos dormidos.
Para terminar, gostaria de copiar uma parte do que vc escreveu
“Os nomes dados não são muito relevantes, óbvio… o importante mesmo é saber a qual estado vc está se referindo, pra quê ele serve e como acessá-lo…”
Paz e luz a todos
Excelente !!
excelente texto, lindo final.
abraços
@raph – Valeu Victor, Abs 🙂
Gosto do seu jeito de escrever. A leitura flui com muita facilidade.
Otimo texto.
@raph – Obrigado 🙂
Ao infinito e além!
À caçada!