Aos 14 Xamãs.


O som… distante; de um avião. Passa sorrateiro e longe, pontos vermelhos e azuis, num céu completo. Este participa de mim, do que sou, do que fora naquele instante.
Na memória diálogos acirrados em discussões sobre métodos e formas, tantas formas. Enquadrando os laços.
Meu corpo cansado enquanto levito em perspectivas antes debatidas de forma rápida durante o dia. Falei que o desejo é passível de ser desmerecido e portanto substituído pelo simples ato. Do ato de ser somente tal ato.

“(…)se o ser ao se apoderar do ato, pensa, e ao pensar o ato discorre.” Quem vem primeiro? – Ainda dividimos deliberadamente sem culpa.
O que dividimos é a nós… esse “ser”, e dividi-lo nada mais é do que apoderar-se de si, mas quando pensamos, que nos apoderamos, separamos o ato que é daquilo que se avalia ao pensarmos; colocando nas mãos a nós mesmos por medo de simplesmente ser.
O medo neste contexto é de fato algo fora, que vem de dentro, mas acontece fora. Ao aceitarmos que o ato só vale se pensado. Mas tal ato não pensa sobre si sozinho, por que fracioná-lo em dois instantes distintos, despedaçando a unidade em três?
Ser, portanto é o único momento real; mas pensamos. Somos a irrealidade do que fomos outrora, ao nos vetarmos. Considerar portanto que o ato pensa é dar cabo que o pensar é um ato, tão factual quanto. E se ser é real, pois necessariamente atua, ser também é pensar. Delegando portanto assim ao ser plena consciência sobre si. No entanto pensamos e duvidamos do que somos, ao pensarmos novamente para assim agir duas vezes.
Vezes somos acometidos por esta percepção, de que simplesmente fomos. O corpo fala tanto quanto o que se fala pela alma e o espírito pulsa. Claro que quando avaliamos exercemos em nós e para nós cognitivamente o ato de pensar, separando do ato em si e fomentando possibilidades. Mas isso não deveria nos ensinar a como ser, para que noutro instante simplesmente sejamos… um?
Vemos sempre uma razão para não ser e isso se demonstra de várias formas enjaulados pelos gostos, pelas cores, pelos humores. O ser humano não é livre, tendo em vista seu ciclo no meio dos testes e das formas certas. Ele se enquadra ao pensar sobre si, toda vez que vem a ser. Pois julga aquilo que já é, aonde deveria supostamente já saber ser. Simplesmente ser.
Mas essa função simples ocorre indiscriminadamente, trazendo às vistas uma sensação de segurança e conforto, já que ninguém é dono de si, pensar então sobre si é mais seguro.
Quando vejo alguém “bom” naturalmente já vejo tantas ações boas, mas estranhamente ao ligá-las ao possível gerador destas ações me sinto atingido pela suspeita: este de fato é capaz de ter tais tinos? E assim dividimos não só a nós, o tempo todo. Por isso o outro facilmente invade cantos em que não chega a tocar de fato, já que não somos simplesmente, averiguamos para ser. Dois momentos que se replicam, já que quando confirmamos que somos bons, agimos bondosamente pela segunda vez… mas não agimos, pois reproduzimos o ato de antes vetado e ironicamente perdemos de ser genuínos. Já que o resultado é um rosto pálido sem vida e sem cor.
Assim sorrimos falsificadamente dia e noite, e quando de fatos sorrimos somente, nos sentimos estranhos por termos sido um; uno.
Basta refletir no sorriso que brota nesses instantes de unidade, no rosto do outro. Como se fosse um só sorriso, que não deseja ser sorriso. Simplesmente é o sorrir.
E se pensarmos no ator, muitos destes se destacam ao conseguir a sincronia de agir e olhar, iludindo-nos, parecendo a nós um único estar. Alguém uno… e choramos tanto quanto ele chora, pois somos quebrados e achamos que não sabemos de fato quem é esse que somos. Assim o ser é o ator, único inteiro, unificado em seu ato… sendo ele o ser, nós somos a divisão, que pensa e age, criando um humor que agora é de todos, impressionados por chorarem juntos e sorrirem eufóricos batendo palmas para aquele que ao deixar de atuar, também se perde, agradecendo emocionado à salva de palmas dos que se encontram na cavea.
Apagaram-se as luzes.
E nesses dias, nesses poucos dias atrás eu me dividi. Dividi-me por um sofrimento, uma consternação diante de uma noticia dura da realidade. Sofri comedidamente ao saber que 14 Xamãs foram brutalmente assassinados no Peru, pelo menos 07 de certeza foram, já que foram os únicos corpos que encontraram até agora. Foram assassinados por um grupo Sectário Protestante, e ao que tudo indica até o prefeito do lugar está envolvido. Isso alterou consideravelmente meu humor e segui 14 dias fazendo algumas orações e elevando meu pensamento. Já que é indiscutível a perda que todos nós acabamos tendo, seja de conhecimento humano, de ervas medicinais, do conhecimento acerca de si mesmo que tais homens abarcavam, além claro da perda do povo deles, de um líder, da suas histórias pessoais, da identidade deles, pois um Xamã é tudo isso, é a força política, espiritual e moral de uma tribo, é o que transmite normalmente as histórias deles mesmos à posteridade, aos netos e bisnetos, ao próximo Xamã. Curiosamente o argumento usado para justificar tais mortes por facão, tiro, pancadas ou pedradas foi o demônio. Alegaram que eles estavam possuídos pelo demônio, como numa clara guerra santa, demonstrando que ainda somos alvo do terror do antigo mundo onde homens eram queimados em fogueiras e muitos batiam palmas extasiados. Estes queimados não se dividiam, eram dor somente.
Sendo assim termino minhas reflexões acerca do ser. Não pretendo impor tal pensamento e sim discorrer a respeito dele, já que não existe melhor meio do que a troca de saberes. O que tratei aqui não está terminado, mas demonstra um pouco do que se passa em minha mente nesses últimos tempos. Seja portanto livre para criticar, mas principalmente para desenvolver comigo até onde pudermos.
E que por fim esse texto, esses momentos que dediquei a escrevê-lo, a pensar em tudo o que pensei, seja em homenagem a tais homens inteiros, destes que não se vê nem ao menos um arranhão.
Djaysel Pessôa

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Respostas de 12

  1. Nuss O.O,não faz nem 10 minutos que postei um coment pedindo pro DelDebbio colocar mais Xamanismo no blog.
    Cassildis huahua
    @Djpes:Sincro… =]

  2. Acabei de postar na página do meu blog no Facebook, pouco antes de ler seu artigo, achei que tinha a ver também:
    “Se existir um Rei Diabo mestre de todo mal, bastará mandar nossos melhores evangelizadores para convertê-lo, e o mal sumirá de todo o mundo… Ah, se fosse assim tão fácil!”
    Abs
    raph
    @Djpes: E esse Rei Diabo é circunstancialmente mais presente do que o Rei Crístico… e pelos que mais se prostram diante deste. Curioso…
    Abs

  3. Eu tinha visto essa notícia dos Xamãs que foram mortos. É muito triste que ainda haja tanta separação a ponto dos cegos matarem os que tem olhos pra ver. Foi uma bela homenagem.
    @Djpes: =]

  4. “Basta refletir no sorriso que brota nesses instantes de unidade, no rosto do outro. Como se fosse um só sorriso, que não deseja ser sorriso. Simplesmente é o sorrir”
    Não se sorri mais para ser Um, ou mesmo se come, ou se lê. Hoje se sorri para ser parte do continum do ciclo social, seja da piada, seja do ridículo, se come para sobreviver, se lê para absorver conhecimento.
    Apenas os Iluminados sorriem de Verdade, comem de Verdade, leem de Verdade.
    Eles os fazem como se fosse a primeira vez, não estão imitando o passado, não atuam…
    O presente é sua estadia eterna…no past…no future.
    Aiiiii, como eu queria ser como eles, mas não tenho o que é necessário, atuo até para o meu fracasso. Minha máscara, minha persona, meu sofrer, meu mal, meu eu.
    “você deitada na pedra, que inveja dessa pedra,..”Djavan.

  5. Cara, não tinha visto essa noticia mas postei ao mesmo tempo que você no meu blog um texto sobre a falsa crença de que a inquisição acabou…
    Isso sim é sincronicidade, o resto é só coincidência mesmo… heheheh
    @Djpes: apesar de ser uma péssima coincidência, mas é verdade… =/

  6. Assisti Ágora outra vez nessa semana, é um filme que me traz um sentimento terrível de perda. É assim que as notícias sobre esses assassinatos me fazem sentir também. Me faz pensar quão forte podem ser a ignorância e a maldade, e que as coisas não mudaram tanto de Alexandria pra cá.

  7. Djason meu caríssimo! Gosto da sua escrita, lembra-me o tempo labiríntico expressado por Luis Borges, com a diferença que esse tempo de Borges se perde por fora, para fora, é um encontro com o próprio fora: é como esse inconsciente múltiplo de que nos fala C. Lispector. A unidade é múltipla, é a imanência de sua própria natureza. Lamento junto com você essa perda inestimável, não para uma sociedade ou uma cultura qualquer: apenas o pensamento perde com isso. @Djpes: perfeito! Somos demasiados Humanos para sentirmos a perda a que somos levados a questionar. A moral e principalmente a moral religiosa (essa bestialidade dogmática), sempre nos empurrará para abismos cada vez mais profundos: a divisa, a separação, a opressão a repudia ao diferente são categorias de forças que convêm neste mundo convencional: somos demasiados humanos para abandonarmos o mundo das formas. Don Juan, esse personagem conceitual, portanto um filósofo, nos diz no intuito de mostrar, como o jogo do duplo serve à consciência, como sua vontade de durar se revela um modo de mascarar a transformação. @Djpes: esse trecho exemplifica bastante acerca do que trato aqui. Ainda vivemos os tempos de caça as bruxas! A dobra, ou a torção filosófica, cria no lugar do intervalo (o pequenino cérebro), o instante e é nesse e desse lugar que conseguimos pensar a forma, ou seja, é nele e por ele que estabelecemos e definimos interiores e exteriores, mas nunca como um xamã para fixarmos limites. Este modo de ação determina a nossa experiência da matéria como solidez, a transformação, os nossos hábitos neste caso, não passam de motivos que embelezam a vida, não existe essências duráveis e imutáveis, assim como não existe moral divina, ou lei superior. @Djpes: a moral divina, ou lei superior, é um substrato de nossas próprias aspirações E o que há de mais habitual em nós (além de nós mesmos) que nossa relação com os objetos que nos circundam? Estamos rodeados de máquinas produzindo objetos que sirvam de espelhos onde possamos nos deleitar com essa essência permanente e imutável que acreditamos possuir. Podemos pensar o sentido em lugar de sentir o poder (isso faz o xamã), @Djpes: e isso é deveras triste! e não é isso o que fazemos. Mas não esqueçamos que sentido é um particípio passado e que o verbo que serve de referencia também pode ser conjugado em outros tempos, como por exemplo, o gerúndio. Trata-se de tempos diferentes… Como os tempos da magia, ou os tempos místicos (eu já estudei muito isso Djason, difícil de acreditar né?). @Djpes: você ainda estuda, só trocou os nomes para satisfazer-se! =P Tempos de passagem, não de duração, de medição, de objetivação. A essência não é o produto, mas a própria ação; por isso quando don Juan responde a Castañeda sobre a realidade dos sonhos, dos aliados ou dos mundos, o critério do mestre é que o real é o que pode agir (em nós e nunca por nós); @Djpes: tornar as coisas próprias do ser passíveis de serem reais é um bom passo para tornar esse aforisma uma condição concreta. É a própria Ação que vem de fora. Os hábitos fazem essências, sim; os hábitos fazem corpos, mas há corpos e corpos! Liberar o corpo do fazer cotidiano ao que o limita o nosso compromisso com a razão e a linguagem é uma das principais tarefas do guerreiro, pois somente desta forma (não é bem uma forma… a que don Juan se refere quando diz que é preciso “parar o mundo”) se tornam possíveis outros modos de percepção. O xamanismo é um termo que agrupa um conjunto de múltiplas práticas de invenção, construção, expressão, imaginação e ou experimentação dos possíveis veículos que são os corpos dos xamãs: muito antes de instrumentos de comunicação, ou sujeitos ou objetos de interpretação, ou representação; o xamã é um corpo expressivo que traz consigo as potencias inomináveis da vida.
    @Djpes: simplesmente grato!

  8. ahuahauhauhauahuahauahuahauhauahuahauhaua
    vai t* no c* djason!
    Minha disciplina é a vida rapá!
    @Djpes: uahuahauhauhau alterei o termo por que o Google gera feedbacks negativos… =]
    E em nenhum momento discordei disso! =P heheheh

  9. Há algum tempo atrás eu li que no judaísmo há um conceito muito amplo chamado Paranassa.
    No texto um rabino é roubado e ele discorre sobre isso falando, aquilo que é roubado de mim, desde o inicio já não me pertenceu, mas aquilo que pertence a mim, não é possível que se tire de mim, por que é o que eu sou. Assim os invólucros externos os acessórios, podem ser tomados, divididos, queimados.
    Mas o que eu “sou” preenche toda a essência da minha alma, o lugar imóvel “o templo de Melquisedec”, todo esforço de uma vida não pode ser perdido mesmo que não se chegue à vitória, a cada momento o rio da vida acrescenta parte daquilo que somos. A vitória será apenas o que “somos”, o caminho já se encontra em nossos corações.No final, as vidas dos Xamãs nunca puderam ser roubadas, e as mascaras de fanatismo e dor apenas vive enquanto vive a sua própria doença.
    Eu estava ouvindo uma musica e dizia, você é o arquiteto e o pedreiro de sua própria jaula.Talvez esses assassinos vivam, olhando vida dos outros por uma minúscula janela estejam colocando tijolos em muros ao seu redor e no final ficaram presos olhando como loucos para as pessoas que passam, pensando que os que passam é que estão presos.
    Mas como todos são budas em potencial, deve-se apenas “ser” e esperar que a cura chegue pela dor ou pelo amor.
    Como sempre , seus textos são demais!
    @Djpes: Agradecido deveras. =]

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