Ainda baseado no excelente trabalho de pesquisa de Paulo Dalgalarrondo em seu livro Religião, psicopatologia e saúde mental, continuarei colocando alguns trechos e misturando com meus comentários, desta vez numa análise histórica do pensamento humano acerca das religiões, através dos séculos:
Na Grécia antiga, Xenófanes (570-460 a.C.) foi um dos primeiros a formular uma análise crítica da religião, questionando a Divindade e o que dela se pode saber. Ele não afirma a inexistência dela, ao contrário, sugere que ela existe, mas é inalcançável pela mente humana. Para ele, o que os homens fazem nas suas religiões é nada mais do que projetar nos deuses suas vãs opiniões. Pode parecer um pensamento óbvio hoje, não para a época (basta ver os deuses grego-romanos e seus defeitos), mas, mesmo tendo em vista as religiões de hoje – que colocam Deus acima das concepções humanas – algumas doutrinas ainda carregam consigo traços dessa concepção antropormofizada de Deus, seja em adesivos de carro (“Deus é fiel”) ou em passagens do Velho Testamento.
Entre os romanos, historiadores apontaram a relação entre crença religiosa e alienação, sobretudo política. Políbio (séc II a.C.) afirmava que, sendo as massas populares instáveis, cheias de paixões e ira irracional, devem ser contidas pelo medo do invisível, pelo temor aos deuses que os líderes políticos conseguem engendrar. Tito Lívio (59-19 a.C.), ao comentar sobre o organizador da religião romana (Numa), afirma que este sabia que “a melhor maneira de controlar um povo ignorante e simples é enchê-lo de medo dos deuses”.
Vamos agora ao séc 19, onde analisaremos as religiões modernas.
Ludwig Feuerbach (1804-1872), ao analisar a religião cristã, trabalha com a noção de que Deus seria o interior do homem projetado para o exterior. Nesse processo de projeção do homem em Deus reside, para Feuerbach, uma alienação fundamental, pois, embora a religião seja a relação do homem consigo mesmo, ela é experienciada como uma relação do homem com outra coisa, externa a ele. Sua essência torna-se outro ser. A alienação será faltal, pois “para enriquecer Deus, o homem deve empobrecer-se; para que Deus seja tudo, o homem deve ser nada”. Para Feuerbach, este seria o pecado fatal da religião cristã (e possivelmente de toda religião). O que é interessante notar é que, dentro do Novo Testamento, mais especificamente nas parábolas de Jesus, vemos o movimento de trazer Deus (ou o Divino) para dentro das relações sociais (Sermão da Montanha, parábola do bom samaritano, etc). Aliás, isso foi insistentemente colocado por Jesus, então não se pode dizer que é um pecado da doutrina cristã, mas talvez das religiões cristãs que se apossam da mensagem e a distorcem, especialmente inculcar culpa, medo e inferioridade, e assim conseguir controlar os fiéis.
Com base nisso Karl Marx (1818-1883) conclui que foi o “homem quem fez a religião, não foi a religião (ou Deus) que fez o homem”, e desdenha a religião como “o ópio do povo”.
Já Robertson Smith (1889) acreditava que a religião não é o produto de uma elaboração intelectual, e sim o fruto de uma cultura, de um conjunto de costumes, de uma organização comunitária que contrói e desenvolve seus ritos. Desse processo ritual se desenvolvem os mitos, ou seja, as legitimações ideológicas e as teorizações religiosas. Outra teoria evolucionista que ganhou grande influência na concepção científica da religião foi a de James George Frazer (1854-1941), que acreditava em três estágios da evolução da humanidade: magia, religião e, finalmente, no topo, a ciência. Segundo ele, a magia está na raiz de todas as religiões, e permanece como resquício quando a religião passa a dominar: “a religião consta de dois elementos, um teórico e outro prático, a saber, uma crença em poderes mais altos que o homem e uma tentativa deste para propiciá-los ou aproveitá-los”. Vemos isso constatado na Umbanda, Candomblé e (quem diria) nas comunidades evangélicas mais populares, bastando ligar a TV pra ver a fogueira disso, a corrente de oração daquilo, o óleo sagrado daquilo outro, a rosa ungida e todos os talismãs e “poderes mágicos” (milagres) que Deus confere aos que estiverem naquele grupo.
No início do séc. XX, Emile Durkheim propõe uma nova compreensão da religião, definindo-a como “uma coisa eminentemente social”, produto – e, mais importante, produtora – da sociedade. Como Feuerbach, Durkheim formula que os homens, ao adorarem os deuses, estão adorando a si mesmos. Entretanto, essa projeção-idealização se dá em um contexto coletivo, social. Todavia, a religião não representa a sociedade como ela é (real, concreta), mas sim de um modo ideal. Isso pode ser mais ou menos vislumbrado no judaísmo e no islamismo, pois são religiões que não se atém a uma geografia, nem mesmo a uma cultura regional, e sim a uma cultura religiosa (no caso do judaísmo ainda pesa o fator descendência). A teoria de Durkheim difere da de Marx porque não crê que a religião se limite a traduzir, em outra linguagem, “as formas materiais da sociedade e suas necessidades imediatas e vitais”. A categoria do sagrado, essência da religião, relaciona-se à noção de força, de poder especial:
(Durkheim, 1977)
Não é novidade nenhuma que a religião tem um papel transformador nas pessoas, que vencem desafios impostos pela classe social com dignidade e obstinação. Isso é chamado resilência, e pode ser conferido in loco por quem for ao Coque, uma enorme comunidade marginalizada pela violência, onde a ONG Neimfa (Núcleo Educacional dos Irmãos Menores de Francisco de Assis) se instalou e, através das religiões (católica, evangélica, espírita, budista, hinduísta e umbandista) e da ciência (psicólogos, médicos, professores), fornece suporte físico, psicológico e espiritual para mais de 300 famílias, com resultados visíveis.
Max Weber (1864-1920) tem uma visão mais pragmática e funcional da religião, imaginando-a não como um sistema de crenças, mas sim “sistemas de regulamentação da vida que reúnem massas de fiéis”, voltando-se para o sentido que o ethos religioso atribui à conduta. Em seus textos Weber visa expor como as religiões geram ou constituem formas de ação e disposições gerais, relacionadas a determinados estilos de vida. Na análise do protestantismo, por exemplo, vemos essa relação, quando Lutero usa a palavra Beruf tanto pra se referir à vocação religiosa como ao trabalho secular (embora o autor diga que a afinidade do protestantismo com o espírito do capitalismo e do progresso como o entendemos hoje só remonta ao início do séc. XVIII). Assim, o pedreiro passa a servir a Deus construindo casas, o padeiro, fazendo pães, o comerciante, vendendo e comprando. Nessa linha, Deus não solicitava mais imagens ou templos ornados, mas determinada disposição em relação à vida cotidiana, à inserção e ao trabalho no mundo secular; trata-se do ascetismo intramundano, que nos lembra um pouco a filosofia zen budista de procurar estar dentro do mundo (não procurando algo fora dele), praticando sua religiosidade através das ações (mesmo as mais mundanas).
A ética protestante representa uma ruptura em relação à ética católica tradicional. A negação da devoção aos santos e seus milagres, a recusa a certos sacramentos e uma nova perspectiva de relação com o sagrado e com as ascese configuraram uma religiosidade menos ritualista e mágica e mais intelectualizada. O fiel protestante, racional, disciplinado e, fundamentalmente, previsível, é também o operário capitalista, necessariamente previsível e disciplinado. Assim, Weber busca articular o ethosreligioso com o ethos econômico no decurso da história. Segundo ele, pra cada formação religiosa há tipos específicos de “comunalização religiosa” e de “autoridade”. Dois tipos formulados por Weber são a “igreja” e a “seita”. A igreja implica um certo projeto universalista, que a coloca para além de laços tribais, familiares ou étnicos, assim como um corpo sacerdotal profissional, dogmas e cultos fundamentados em escrituras sagradas que se racionalizam e se institucionalizam progressivamente. Já a “seita” diz respeito a tipos de associações voluntárias de fiéis, que se caracterizam por uma certa ruptura com a sociedade mais geral. Os fiéis não seguem “profissionais religiosos”, mas autoridades carismáticas. Interessante notar como a Igreja católica entrou num movimento de reafirmação onde está cada vez mais distante da sociedade geral, admoestando os “católicos de fim de semana” e procurando valorizar os dogmas dentro de um núcleo doutrinário, excluindo o aculturamento… Quase uma seita.
Weber também se preocupa com as relações entre religiosidade e os diferentes grupos sociais. Assim, para as classes oprimidas politica, social ou economicamente, as crenças preferidas estariam relacionadas à possibilidade de “redenção” ou “compensação”, enquanto as classes privilegiadas e dominantes buscam formas de religiosidade que permitam “legitimação” das relações sociais estabelecidas. O espiritismo cumpriu muito bem ambos os papéis no Brasil quando, em plena ditadura militar, foi bem aceito pelos dois lados (militares e a população oprimida pela ditadura).
Peter Berger (1985) acredita que os homens são congenitamente forçados a impor uma ordem sinificativa à realidade, e aí entra o sentido da religião, como um escudo contra o terror.
Sigmund Freud (1856-1939) vê a religião como uma ilusão infantil, um sistema de defesa socialmente contruído com o qual o homem lida com sua condição fundamental de desamparo e sentimentos ambíguos em relação à figura paterna. Freud, assim, ignora o sentimento de transcendência e resilência que a religião aparentemente proporciona, preferindo colocar a experiência religiosa de eternidade e fusão como o Todo como um sentimento que não teria origem transcendental, mas sim algo intelectual/afetivo, como um retorno à experiência primeva do bebê, fundido com sua mãe. Embora Freud reconheça a religiosidade como vivência humana importante, tende a considerá-la derivada de outras experiências, não sendo, assim, uma experiência primária. Já a relação do Homem com Deus é apenas a projeção da relação com o pai (aimago paterna). Daí as relações intensas e ambíguas que surgem, como o Pai/Deus poderoso, dominante, protetor, onipresente, punitivo, odiado, vítima do ódio dos filhos e redentor.
Já Erik Erikson (1902-1994) relaciona a religião com a imago materna, ou seja, a experiência primeva com a mãe, a separação e a tentativa sempre recorrente de reencontro.
Carl Gustav Jung (1875–1961), como sempre, vai além do seu mestre e postula a religiosidade como elemento natural do psiquismo humano, uma parte constitutiva e essencial da natureza do próprio homem. Dessa forma, a religiosidade seria, por assim dizer, um instinto. Mas isso não quer dizer que as representações de Deus e dos elementos sagrados de cada cultura não sejam fenômenos socialmente construídos, mas sim baseadas num fundamento religioso humano universal.
Mas, para Jung, nem tudo na religiosidade é expressão dos recônditos da alma humana. Determinadas crenças, dogmas e ritos podem ser, de fato, recursos sociais protetores contra a experiência religiosa originária, imediata e, potencialmente, avassaladora:
Como vimos, a religião cumpre os mais diversos (e importantes) papéis na humanidade. Ela é social, é psíquica, é estruturadora, reguladora, é instintiva, projetiva, espelhada, transformadora, é cultural, espiritual, etc. Todos os pensadores acima não conseguiram englobar a multitude de aspectos da religião em uma teoria, mas a soma deles nos dá uma boa idéia de como precisamos encarar com respeito a religiosidade, não no aspecto do outro, mas de nós mesmos (que aspecto dela estamos trabalhando em nós nesse momento?).
Respostas de 3
Cadê Nietzsche???
Nietzsche está morto.
Poderia situar geograficamente o “Coque”?.
Obrigada pelo texto e seus comentários ..e pelo fantástico poder de síntese.