O Relógio do Apocalipse é um relógio simbólico mantido desde 1947 pelo comitê de diretores do Bulletin of the Atomic Scientists da Universidade de Chicago. Se trata de um alerta para a iminência de uma guerra nuclear de larga escala, o que potencialmente significaria o fim da civilização humana. Segundo a analogia, quanto mais próximo da meia-noite, mais próxima estaria a humanidade de um apocalipse nuclear. Os ponteiros iniciaram com 7 minutos para a meia-noite, e chegaram a estar à apenas 2 minutos, em 1953, quando EUA e URSS testaram novas armas nucleares a poucos meses de intervalo um do outro. Hoje, ele marca 3 minutos para o fim.
É irônico como foi justamente a ciência quem nos levou mais próximo de um Juízo Final, um Armagedom real para a humanidade. A despeito de milênios de mitos e lendas acerca do final dos tempos, que muitos racionalistas sempre caçoaram, coube justamente a mais racional das invenções da mente humana o poder de nos levar, de fato, a uma guerra final. Claro que a ciência por si só não tem culpa alguma, os culpados somos nós, os seres que vivem neste mundo e, muitas vezes, consciente ou inconscientemente, trabalham para a sua aniquilação.
A palavra “apocalipse”, do grego apokálypsis, significa literalmente algo como “a retirada do véu”, o que geralmente é compreendido como alguma espécie de revelação divina. No entanto, como o Livro da Revelação no Novo Testamento bíblico trata justamente de uma elaborada metáfora para alguma espécie de fim dos tempos, o termo Apocalipse também se tornou uma espécie de sinônimo para fim do mundo na cultura popular.
De fato, numa análise esotérica do significado essencial de uma revelação divina, temos duas possibilidades que fazem todo o sentido: o fim de uma era, para que outra se inicie, ou mesmo a morte de uma persona, para que outra mais espiritual e profunda surja deste processo. No entanto ocorre que, muitas vezes, tanto o Apocalipse bíblico quanto os de outras doutrinas religiosas é visto não como o fim de um processo para que outro se inicie, mas simplesmente como o final de todos os processos, de todo o sofrimento e de todo trabalho, geralmente para ser substituído por um julgamento sumário de alguma divindade, onde uns serão condenados a sofrer eternamente num Lago de Enxofre, enquanto outros serão conduzidos a uma espécie de Jardim de Ócio Eterno.
A despeito do absurdo lógico de ambas as opções (uma divindade amorosa que permitiria que suas criações fossem torturadas brutalmente ad aeternum; seres amorosos que conquistaram uma passagem para um Céu de Escolhidos, sendo lá felizes mesmo sabendo que há muitos de seus irmãos sofrendo), é mais ou menos nisso que muitos povos e culturas, principalmente no Ocidente e Oriente Médio, colocaram todas as suas fichas. Durante séculos e séculos, depois de Cristo, e até mesmo antes, tivemos muitos crentes aguardando ansiosamente pelo final dos tempos, alguns com temor no coração, e outros simplesmente ansiando pelo fim desta terra… Todos eles na expectativa do prometido julgamento dos bons e dos maus.
E dificilmente os que creem nessas coisas veem a si mesmos como pertencentes aos não escolhidos, aos maus. Daí se tira que, muitas vezes, o seu desejo pelo Juízo Final parte muito mais do próprio julgamento que fazem dos seus irmãos do que genuinamente de um desejo de habitar o Jardim de Ócio pela eternidade, para fazer sabe-se lá o quê pelos milênios a perder de vista. Ou seja: pode ser preferível que o mundo acabe de fato, se com ele todos os gays que insistem em se beijar na rua e desafiar os mandamentos do Levítico sejam levados para o Inferno, ou se todos aqueles jovens metidos a besta que insistem em usar drogas ilícitas ardam nas forjas subterrâneas, ou se os políticos de um ou outro campo ideológico cumpram suas penas junto ao Tinhoso.
Claro, também há muitos que cansam de simplesmente esperar pela chagada de Cristo, e partem eles mesmos para provocar o seu próprio fim dos tempos, se radicalizando e chacinando os inocentes que encontram pela frente. Para nossa sorte, esse tipo de radical religioso ainda não dispõe de armas nucleares, somente das armas que as grandes empresas armamentistas dos países de primeiro mundo lhes vendem.
Neste baile da ignorância humana, é curioso pensar como, ao menos até aqui, as armas de destruição em massa talvez tenham freado uma nova e derradeira Guerra Mundial, ao contrário do que muitos poderiam imaginar. Explica-se: até o advento das armas nucleares, guerras destruíam cidades, e às vezes países inteiros, mas não podiam destruir a civilização humana como um todo. Hoje, uma guerra nucelar pode fazer justamente isso. Hoje, o Armagedom deixou de ser uma metáfora mitológica para se tornar uma possibilidade real. Hoje, aqueles que detém o poder de lançar ogivas nucleares sabem muito bem que, num cenário de guerra nuclear total, pressionar o botão vermelho será essencialmente um ato de suicídio.
Mas nem todo Apocalipse é um Apocalipse global. Há muitos povos e territórios da Terra que sofreram os seus próprios Juízos Finais. Desnecessário dizer que até hoje em dia eles estão em pleno processo, particularmente no Oriente Médio e arredores, ironicamente o grande berço das civilizações humanas.
Como narra um memorável anúncio dos Médicos Sem Fronteiras, “podemos ser violentos, insensíveis, cruéis, egoístas, indiferentes, mas só quem pode salvar a vida de um ser humano é outro ser humano”. O MSF atua justamente para amenizar o Juízo Final alheio.
Voltando ao Apocalipse como revelação, como final de um estágio para o início de outro, recorro à história de vida de minha amiga Debora Noal, psicóloga do MSF, brasileira: pouco antes de ser convocada para a sua primeira missão humanitária no Haiti, há quase uma década, Debora morava numa cobertura de frente para uma praia paradisíaca de Aracaju, e tinha um emprego público na área médica.
Então, como ela mesma relatou numa reportagem da Época, “Pedi demissão, larguei tudo […] Porque era uma missão de urgência. Entreguei o apartamento, deixei os móveis no meio do corredor porque não tinha condições de distribuir tudo rápido. O que não é possível carregar comigo é porque não é meu. E acho que, se você se apega a alguma coisa que é material, isso quer dizer que você está plantando sua raiz por uma estrutura material. Eu quero ter raiz, mas raízes aéreas, que eu possa levar para onde eu quiser”. E após o Haiti, Debora foi ajudar mulheres brutalmente estupradas e infectados pelo vírus ebola em algumas missões humanitárias nos cantões mais afastados dos olhares da Grande Mídia, em plena África…
Como Debora estava tão preparada para substituir suas raízes terrestres por raízes aéreas, senão por um processo de Apocalipse pessoal? Senão por haver colocado sua própria vida mundana em segundo plano, e a Alma do Mundo, a alma e o coração de todos os seres, acima de tudo o mais? Não há Revelação maior do que este Amor que brotou aos borbotões do coração de minha amiga.
E, se ainda nos convém falar em mitologia, que a praia em Aracaju seja o Céu, que as periferias do Congo sejam o Inferno, e que Debora seja o Anjo… Tampouco existe mitologia mais bela, pois que trata exatamente da realidade, de como as coisas de fato o são. Pois só quem pode salvar a vida de um ser humano é outro ser humano. E só quem pode salvar a própria vida é o próprio ser em si.
Assim sendo, sempre que se sentir abatido pelo peso deste mundo de chumbo, pense sobre os pensamentos que lhe vêm à mente, pense sobre de onde eles de fato surgiram, e para onde pretendem lhe levar. Há muitos que desejaram modificar o mundo inteiro, e terminaram por se regozijar com a promessa do Juízo Final, e assim perderam seu entusiasmo, e se deixaram afogar no charco dos hábitos moribundos… Mas há alguns, alguns de nós, que pensaram em mudar primeiro a si mesmos, e ser a própria mudança que desejam ver neste mundo.
Passo a passo, mudaremos a nós mesmos, a vizinhança e o mundo inteiro. Se a vida já não tem qualquer outro sentido, que tenha este. Afinal, a despeito da crença e do desejo de muitos, nossa história ainda não acabou… Gritem meus irmãos, gritem pela alma adentro: ainda não acabou!
***
Para encerrar, gostaria de descrever em maiores detalhes a autoria e o cenário das duas fotos que ilustram este artigo:
A primeira, no topo, é da Reuters e mostra uma multidão de refugiados (na grande maioria palestinos) do Campo de Yarmouk, em Damasco na Síria, em fevereiro de 2014. Eles estavam tão somente aguardando a distribuição de alimentos pela ONU. Em abril de 2015 este campo foi atacado e controlado pelo Estado Islâmico, mas foi recuperado pelo governo sírio alguns meses depois. Yarmouk está ativo há mais de meio século.
A segunda, ao longo do texto do artigo, é de um jovem fotógrafo da Faixa de Gaza, Emad Nassar, e foi tirada em junho de 2015. Ela mostra um pai palestino dando banho na filha e na sobrinha, no pouco que restou inteiro de seu apartamento em Gaza. A Faixa de Gaza é um dos territórios mais densamente povoados do mundo, e vive um Apocalipse permanente há muitas décadas.
O que cada uma das fotos têm a ver com o meu artigo, deixo que cada um de vocês interprete e sinta por si só…
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
Ad infinitum
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Respostas de 9
Muito bem elaborado e um choque de realidade
Parabéns Rafa!
@raph: Valeu Felipe, foi um sentimento que deixei dançar na minha mente por um bom tempo, até que finalmente achei que era hora de tentar traduzir em palavras 🙂
Sério, minha visão sobre os principais culpados sobre a situação atual do Planeta, são as mentes sádicas por trás das Grandes Instituições que mantém esse Sistema Globalista Predatório, utilizando de acumulo de riquezas… Só observar, que cena triste, na África os pobres não tem o que vestir e nem o que comer, suas terras são sugadas, estão do “lado de fora” desse Sistema, sendo roubados e expostos, para que os ocidentais os vejam e sintam dó… Ah mano, é lamentável? Ainda tem esse negócio das fotos? Pense, altos fotografos e agencia se promovendo e ganhando dinheiro nas custas da desgraça alheia….
É muito triste isso!
Mas ótimo post, parabéns, me fez refletir bastante, olha até escrevi essas bobagens kkkkkkk
@raph: Olha, no caso da segunda foto em específico, é de um jovem fotógrafo que de fato vive na Faixa de Gaza. Ele recebeu um prêmio por seu trabalho e inclusive teve dificuldades em deixar Gaza para ir receber. Então, neste caso, nem é pelo dinheiro não (ele ganharia muito mais se simplesmente não voltasse para casa). Abs!
Perfeito, lindo, magnífico!
Parabéns pela reflexão!
@raph: Obrigado 🙂
Rafael Arrais, seu artigo é muito lúcido. Nunca me interessei em acompanhar o que vc escreve, mas depois desse arquivo, o teu pensar chamou a minha intenção pela identificação: sobre o cartaz homofóbico concordo com voce: apesar da bestialidade eles os “puros, os religiosos” que se acham-nem sabem que são máquinas programadas vivendo numa matrix- tambem tem direito de se manifestarem desde que o façam com respeito cristão. É difícil ter respeito cristão, pois aqui mesmo neste Brasil estamos em guerra. Quanto a Débora, voce é um privilegiado por ser amigo de um ser desse quilate: enjoy! Nunca pensei que viveria para assistir o que está acontecendo, parece um filme: tanta merda, tanto despedício de energia quando poderíamos nos dar as mãos e ter um progresso não só científico mas geral inclusive mental e partir para vivermos tendendo ao máximo de tudo que é bom. Tanta coisa para ser descoberta, tantas ciências e tecnologias, tantos pensamentos para sairmos desse limite bundão que vivemos.
Enfim esse é o tempo. Cada um colhe o que pode de tanta estupidez.
Paz e Evolução a voce!
@raph: Sim Carlos, o que mais dói é imaginar em que mundo (menos infernal, mais celeste) estaríamos vivendo com um pouco menor ignorância e intolerância a quem é ou pensa diferente de nós… Abs!
AINDA NÃO ACABOU!!!
Muito bom.
@raph: Só acaba quando termina, mas se termina, recomeça!
Que post!
Como uma criatura pode ser capaz dos atos mais vis e dos atos mais nobres?
@raph: Pois é Luiz, é por conta desta reflexão que acho memorável o anúncio do MSF…
Muito bom o seu artigo, Rafael! Obrigado por compartilhar. Mas que coincidência você comentar sobre o seu livro Ad Infinitum. Comecei a lê-lo nesse domingo e estou gostando. A forma como você transmite as suas ideias, através de um diálogo, lembrou-me do filme Ponto de Mutação, baseado no livro de mesmo título do Fritjof Capra. Além, é claro, de nos remeter à tradição dos diálogos platônicos. Parabéns pelo livro!
Parabéns, também. pelos belíssimos poemas e pelas reflexões do seu maravilhoso “49 noites antes da colheita”!
@raph: Valeu Alexandre! Na verdade se não me engano esse filme se chama “Mindwalk”, mas é realmente baseado no livro do Capra. Aliás, eu vi esse filme pouco após lançar o livro, por indicação de outro leitor que justamente achou o “Ad Infinitum” parecido hehe. Mas a grande surpresa do meu livro ficou mais para o final mesmo, não darei spoilers… Abs!
Você tem razão, Rafael, o título original do filme, em inglês, é Mindwalk, mas aqui no Brasil ele recebeu o título de Ponto de Mutação. Eu tinha o filme em VHS. Costumava passar para os meus alunos. Abs!
Sensacional Rafael!
@raph: Valeu 🙂