» Parte 2 da série “Todas as guerras do mundo” ver parte 1
Soldados! Não vos entregueis a esses brutais… Que vos desprezam… Que vos escravizam… Que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois!
(Chaplin, em O Grande Ditador)
A Coreia do Norte está situada na parte norte de uma península no extremo leste do continente asiático, entre a China e o mar que a separa da ilha do Japão. Como alguns devem saber, a península foi governada pelo Império Coreano até ser anexada pelo Japão, após a Guerra Russo-Japonesa de 1905. Ela foi dividida entre zonas de ocupação norte-americana (sul) e soviéticas (norte) em 1945, após o final da Segunda Guerra Mundial. A Coreia do Norte recusou-se a participar da eleição supervisionada pelas Nações Unidas, feita em 1948, que levava à criação de dois governos coreanos separados para as duas zonas de ocupação. Ambos, Coreia do Norte e Sul, reivindicavam soberania sobre a península inteira, o que levou-os à Guerra da Coreia, em 1950. Um armistício de 1953 terminou o conflito; no entanto, os dois países continuam oficialmente em guerra entre si, visto que um tratado de paz nunca foi assinado.
A Coreia do Norte se autodenomina uma república socialista, mas na prática sabemos que se trata de uma ditadura comunista que ficou presa ao passado, e tem enormes dificuldades de dialogar com um mundo cada vez mais globalizado. Em 2009, os quatro loucos aventureiros que apresentam o programa Não Conta Lá em Casa, do canal de TV a cabo Multishow, e costumam visitar áreas de conflito para nos trazer uma visão genuinamente brasileira da situação, conseguiram adentrar a Coreia do Norte valendo-se de sua “diplomacia sem noção”, como eles mesmos alegam. A despeito das cenas surreais que foram mostradas no programa, como as guardas de trânsito da capital Pyongyang fazendo sinais para um trânsito inexistente (quase não há carros lá), ou quando dedilham rock & roll no violão numa escola de música, e percebem que os adolescentes de lá nunca haviam ouvido coisa igual, a cena que nos interessa aqui é a conversa que eles têm com algum oficial de alta patente do governo ditatorial.
Devemos dizer que eles não são tão “sem noção” assim – surpreendentemente, quem inicia a conversa é o próprio militar, que parece ter uma curiosidade genuína em aproveitar aquele raro momento de contato com jovens vindos de um país tão distante, teoricamente neutro na questão das Coreias (no que também poderia ser interpretado como um perigoso interrogatório). Em todo caso, papo vai e papo vem, um de nossos heróis “sem noção” levanta a questão mais espinhosa sem papas na língua: “É sabido que a China protege os direitos da Coreia de fazer testes nucleares. É mesmo tão necessário fazer esses testes tão perto do Japão?”. O oficial então responde com sua versão dos fatos: “Você sabe que tivemos uma péssima experiência como colônia do Japão por mais de 40 anos. A Alemanha compensou todos os países que atacou, mas o Japão não compensou nada. Todas as 200 mil mulheres que eles usaram como escravas sexuais e os 8 milhões usados como força de trabalho… Eles torturaram nosso povo. Ao menos que eles compensem nosso país, nossa relação não irá melhorar. Nossos testes nucleares não visam atacar nenhum outro país, mas defender o nosso”.
Finalmente, o militar pergunta: “Qual a melhor maneira de resolver a tensão em nossa península?”. Ao que nosso sábio “sem noção” responde: “Acho difícil para um brasileiro responder essa pergunta, pois não temos tantos episódios de guerra recentes, como vocês têm. Eu poderia dizer – esqueçam o passado –, mas imagino que seja muito difícil”…
Não sei se concordam comigo sobre a importância desse tipo de diálogo, mas em todo caso ele toca na essência do que manteve tantas e tantas guerras ocorrendo pelo mundo, com breves intervalos de paz entre elas. De certa forma, todas as guerras do mundo são uma mesma guerra, e o que devemos é tratar de tornar os intervalos de paz cada vez mais duradouros.
A Guerra da Coreia não é propriamente um embate ideológico, mas uma luta por território e riquezas, como é afinal a razão de todas as guerras, mesmo as religiosas. O comunismo soviético e o capitalismo americano são apenas sistemas políticos, mas as nações não vão à guerra por achar que sua visão de mundo pode trazer benefício às nações vizinhas, seu real objetivo não é evangelizar ideologia alguma, mas pura e simplesmente conquistar mais território, e mais riquezas. Ao menos, é uma razão bastante simples de se compreender…
Mas, e qual é a melhor maneira de evitar que uma nação, necessitada ou não, invada outra em busca de riquezas? Ora, uma delas é estabelecer um claro equilíbrio de poder, onde o poderio militar de uma ou algumas nações forme uma ou mais potências muito superiores às demais, de modo que as outras nações se abstenham de arriscar invasões. O problema dessa “solução”, no entanto, é que ela não impede que as potências invadam outras nações, ou extraiam suas riquezas de forma autoritária (ou oculta, “maquiada” pela mídia). Uma solução que parece mais duradoura e, em todo caso, que é até hoje a melhor solução que os países encontraram, é estabelecer a diplomacia e um vigoroso mercado econômico entre as nações, de modo que a escassez de recursos de um país possa ser equilibrado pela venda de outros recursos que possua em excesso, e assim por diante… É claro que essa economia globalizada não é imune à manipulações, protecionismo, desequilíbrios e injustiças sociais, mas ao menos é muito melhor do que sangue, tiros de canhão e bombas nucleares.
O que um longo período de paz entre as nações pode nos permitir, entretanto, é que percebamos que, afinal, não existem nações, e que no fundo, todos nós somos bastante parecidos, quando estamos abertos para uma conversa amigável, amistosa, e quem sabe, “sem noção”. Fosse um dos quatro apresentadores do Não Conta Lá em Casa um descendente de japoneses que migraram ao Brasil após a Segunda Guerra, ele provavelmente teria enormes dificuldades em ter uma conversa tão amistosa com o oficial coreano. Mas, que impediria tal amistosidade, senão sua aparência nipônica, senão a pressuposição do coreano de que aquele brasileiro faria parte da “nação japonesa”, a mesma que estuprou suas mulheres e torturou seu povo há sabe-se lá quanto tempo? Tampouco o oficial nalgum dia refletiu sobre o fato de que, após a rendição do Japão aos EUA, eles ficaram proibidos de sequer ter um exército, e que por isso mesmo faz muitos anos que não nasce no Japão alguém que tenha qualquer coisa a ver com os estupros e torturas de quase um século atrás. O que mantém essas chagas abertas, afinal? O mito das nações!
Este é exatamente o título do livro de Patrick J. Geary [1], historiador americano, que basicamente defende a tese de que uma nação é um construto intelectual, ideológico, e não tem bases naturais nem tampouco científicas. Não é tão difícil de entender: assim como hoje vemos negros jogando em times de futebol de países europeus, pois são filhos de africanos que migraram para a Europa há décadas, e, portanto, já nasceram nos países que defendem, da mesma forma que ocorre no futebol, ocorre em tudo o mais. Se a nação fosse algo natural, deveriam haver raças no mundo, e os habitantes de um dado país europeu deveriam ser descendentes diretos dos ancestrais que colonizaram aquela dada região há milhares de anos atrás. Porém, a ciência e arqueologia modernas, juntamente com os testes de DNA, já provaram que só existe uma única raça humana, o homo sapiens, e nos deram fortes indícios de que ela provavelmente originou-se em alguma parte do continente africano, e depois migrou para toda a Terra. Se vamos falar em nação da maneira que Hitler e outros ditadores falavam, só podemos falar numa nação global, composto por todos os países e todas as regiões onde ainda caminham os homo sapiens.
Segundo Geary, “o processo específico pelo qual o nacionalismo emergiu [nos últimos séculos] como uma forte ideologia política variou de acordo com a região, tanto na Europa como em outras partes. Em regiões carentes de organização política, como na Alemanha, o nacionalismo estabeleceu uma ideologia com o fim de criar e intensificar o poder do Estado. Em Estados fortes, como França e Grã-Bretanha, governos e ideólogos suprimiram impiedosamente línguas minoritárias, tradições culturais e memórias variantes do passado em prol de uma história nacional unificada e língua e cultura homogêneas, que supostamente se estendiam a um passado longínquo”. E, não se enganem, “o ensino público de qualidade” também sempre foi à ferramenta ideal pela qual o mito das nações foi construído na era moderna… Hoje, porém, ele talvez não faça mais sentido, mas não significa que os currículos escolares estejam sendo atualizados.
Antes de encerrar, porém, devemos tomar cuidado com os termos aqui utilizados. Reflitamos… Nação, do latim natio, de natus (nascido), é a reunião de pessoas, geralmente do mesmo grupo étnico, falando o mesmo idioma e tendo os mesmos costumes, formando assim, um povo, cujos elementos componentes trazem consigo as mesmas características étnicas e se mantêm unidos pelos hábitos, tradições, religião, língua e consciência nacional.
Pois bem, esta é uma definição que pode se adequar as enciclopédias, mas não ao mundo real. Da mesma forma que um jogador negro da seleção de futebol alemã pode não ter a mesma cultura, a mesma religião, e muito menos a mesma cor de pele da maioria dos outros jogadores, ele é, não obstante, um alemão. Quando ele marca um gol, são todos os alemães do estádio que comemoram, todos os homo sapiens que decidiram torcer por aquele time de futebol. E assim é com tudo o mais: no fundo, tanto a seleção alemã quanto o Bayern de Munique são apenas times de futebol. É tão somente uma ilusão ideológica que determina que os times da Copa do Mundo precisam ter apenas jogadores nascidos ou naturalizados nesta ou naquela região do globo. Ninguém nunca viu uma fronteira na face da terra – mesmo assim, em nossas mentes, elas ainda existem.
Talvez fosse mais proveitoso usarmos outro termo… Pátria, do latim patria (terra paterna), indica a terra natal ou adotiva de um ser humano, onde se sente ligado por vínculos afetivos, culturais e históricos. O termo também pode significar somente o ambiente ou espaço geográfico em que discorre nossa vida. Em raízes ainda mais antigas, o termo liga-se ao latim pagus, que significa “aldeia”, e que também deu origem ao termo “pagão”. Ora, como muitos devem saber, toda nossa cultura e religião ancestrais nasceram de aldeias, e xamãs, e as práticas espirituais do paganismo. Além de anteceder a “nação” em milhares de anos, o termo ainda nos oferece a liberdade de considerar que nossa pátria não é somente o lugar onde nascemos, mas também todos os locais onde escolhemos um dia morar, e todos os amigos, e todos os amores que construímos pelo caminho.
Dulce et decorum est pro patria mori… Horácio [2] talvez estivesse certo: pode ser belo e doce morrer pela pátria, defendendo aqueles que realmente amamos daqueles que os querem dizimar; E não propriamente lutando em guerras supostamente ideológicas, baseadas em mitos acerca de povos que nunca foram exatamente o nosso, nos incitando a matar inimigos que, tampouco, jamais foram os nossos. Apenas para que um opressor obtenha o território e as riquezas de outro opressor.
A mais nobre função de um soldado é lutar pela paz, e pela liberdade daqueles que se encontram atrás dos muros dos castelos e das trincheiras nas fronteiras imaginárias. Até que um dia, muros e fronteiras, e balas e canhões, não tenham mais razões de ser. Esta sim, é a única beleza possível da guerra, seja na vitória, seja na morte.
» Na próxima parte, a estrela inimiga…
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[1] O mito das nações, lançado no Brasil pela Conrad Editora.
[2] Poeta e filósofo romano (65 a.C. – 8 a.C.).
Crédito das imagens: [topo] Divulgação (apresentadores do NCLC na Coréia do Norte); [ao longo] Divulgação (Cacau, jogador brasileiro naturalizado alemão, comemora seu gol na Copa do Mundo de 2010, quando defendeu a seleção da Alemanha); Google Image Search/Anônimo
O Textos para Reflexão é um blog que fala sobre espiritualidade, filosofia, ciência e religião. Da autoria de Rafael Arrais (raph.com.br). Também faz parte do Projeto Mayhem.
Ad infinitum
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Respostas de 7
Verdadeiramente somos participantes da Sagrada Missão da Luz em trazer o “céu” para este plano e nossas vidas. Gaia é um ser vivo e somente o verdadeiro amor e fraternidade, que anseiam pela paz, farão com que as barreiras das ilusões ideológicas sejam dissipadas contribuindo pouco a pouco para a sua completa restauração.
Seu belo livro está na lista caro Frater Rafael.
@raph: Obrigado, boa leitura 🙂 Namastê.
P.P.
bem legal seu texto.
agora aproveitando que você começou com Coréia do Norte, gostaria de compartilhar 1 link.
Eric Lafforgue é um fotógrafo, visitou 6 vezes a Coréia do Norte, depois virou persona non grata.
http://www.ericlafforgue.com/category/stories/
Tem dois links no site dele que falam sobre lá, é bem legal, e hilário em algumas partes, como a pérola:
“-Why do they give plastic gloves to the people eating
hamburgers in the fast food places?
-Mr Eric, it’s because we haven’t gotten used to getting dirty
when we eat yet.
-Is it true that Kim Jong Il created the hamburger?
-Yes, it is! In 2009!”
http://ericlafforgue.com/wp-content/uploads/20-in-DPRK-.pdf
http://ericlafforgue.com/wp-content/uploads/north-korean-delete-this.pdf
@raph: A Coreia do Norte é provavelmente a sociedade mais surreal de todos os tempos (ao menos neste planetinha aqui)..
Muito bem escrito teu texto. Ele me traz na memória um personagem do livro da Guerra dos Tronos. Ele não aparece como um dos principais, se bem me lembro era um padre ou pastor errante (ou algo do tipo), ele comentava que os plebeus, e podemos nos considerar plebeus nos dias de hoje, iam para guerra não sabendo o porque, geralmente com seus familiares (pai, irmão, etc), e iam perdendo os companheiros, até andar em volta com desconhecidos. Tornando-se assim, algo como zumbis, ou sombras, apenas vagando e seguindo ordens. O pior disso, é que essas pessoas fazem isso apenas para suprir necessidades egoístas e egocêntricas de imperadores, reis, monarcas ou o diabo a quatro (e são esses “monarcas incríveis” que querem aparecer depois nas histórias como os “enviados de Deus”). O coreano, que disse que quer “vingança” contra os japoneses, me lembra um pouco os plebeus que não sabem o que querem mais, mas no caso dele, sofreu uma lavagem cerebral do exército, muito comum em qualquer exército nos dias de hoje (e no passado também).
@raph: É isto. O próprio Game of Thrones, muito inspirado na história real, particularmente na Guerra das Rosas [War of the Roses], é um retrato bastante fiel de como as guerras são realizadas somente pelo desejo de alguns por territórios e riquezas… Eles inventam um monte de razões lendárias para o motivo de suas guerras, e se iludem e se corrompem com seu suposto poder sobre a Terra, mas no fundo continua sendo uma razão tão simples quanto roubar o estoque de grãos da tribo vizinha, e se possível, os campos dela tb.
Magnífico texto…
pena que as ideias e ideais de pessoas com mente aberta raramente penetram nas casas das famílias antes dos pais e as escolas começarem a doutrinar as crianças… Poucoas são as sortudas que possuem pais mais sensatos.
Eu mesmo fui iludido pelo patriotismo durante esse período em que os adultos vomitam suas “verdades” sobre as mentes despreparadas, porém, mesmo depois de crescer e notar que o patriotismo é idotice, ainda sobraram resquícios dessa mentira em meu coração, frequentemente invocadas por um ego ignorante e orgulhoso em seus sonhos de ser amado ou temido como o Sr. Presidente da República.
@raph: Vamos tentar usar o termo “nacionalismo” neste caso. Conforme digo no fim do artigo, “patriotismo” vem de pátria, terra paterna, o lugar onde crescemos, ou qualquer lugar em que nos sintamos acolhidos, ou qualquer lugar que amemos 🙂
O que me leva a concluir que apenas “saber” não é o suficiente. Ou pelo menos, “saber” como admitir uma verdade com essa mente mundana. É preciso “saber” em um nível mais essencial… simplesmente ler e concordar com os argumentos desse seu texto ainda não elimina o patriotismo do nosso subconsciente… ainda fica algo lá no fundo…
Tenho medo do futuro das crianças do futuro… se ninguém fazer algo, a tendencia é só aumentarem a quantidade de ilusões que eles vão absorver antes de serem capazes de se defender…
@raph: Acredito que a resposta do Chefe Seattle ao Presidente em Washington resuma tudo o que precisamos realmente saber sobre o “amor a Terra”:
“O Presidente em Washington diz que deseja comprar a nossa terra.
Mas como pode comprar ou vender o céu, a terra? Essa idéia é estranha para nós. Cada parte dessa terra é sagrada para o meu povo. Cada agulha de pinheiro brilhante. Cada grão de areia da praia, cada névoa na floresta escura. Cada característica é sagrada na memória e na experiência do meu povo.
Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores são nossas irmãs. O urso, o veado, a grande águia são nossos irmãos. Cada reflexo na água cristalina dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz do meu pai. Os rios são nossos irmãos. Eles levam nossas canoas e alimentam nossos filhos.”
Continua em http://textosparareflexao.blogspot.com/2008/05/palavras-do-chefe-seattle.html
Abs!
raph
Seu texto me fez refletir sobre uma coisa:
Que os senhores da guerra, utilizam de nobres ideais, para esconder seus desejos mesquinhos… mas quantos de nós somos senhores de guerra? É necessária a guerra?
@raph: É por isso que a série se encerra, na próxima parte, com a única guerra que pode encerrar as demais, ou pelo menos mudar efetivamente o mundo: a guerra da alma, a guerra de dentro. Abs!